02 Outubro 2018
Após as massivas manifestações feministas de 29 de setembro, respondidas com marchas pró-Bolsonaro no dia seguinte, em escala muito inferior, o Brasil entra na última semana antes do primeiro turno das eleições gerais em clima de nova polarização. Esgotada a dicotomia com os tucanos, agora o candidato petista abençoado por Lula tem tudo para passar ao segundo turno contra a chapa militar e neofascista.
A análise é de Wladimir Pomar, um dos fundadores mais famosos do PT e dirigente nacional do partido entre 1984-1990.
“O que fazer? Abandonar o ringue porque há o perigo de o adversário puxar um revólver e atirar? Em política, como expressão da luta de classes, há sempre esse perigo. De qualquer modo, na falta de outras opções, a esquerda e o centro democrático não deveriam ter dúvidas em quem votar, independentemente de gostar ou não do Haddad e do PT”, analisou, a respeito de uma polarização que pode intoxicar de vez as relações políticas e institucionais do país.
“A autocrítica realmente não veio, mas terá de vir mais cedo ou mais tarde pela imposição não tanto dos resultados eleitorais, mas dos desafios colocados pela situação brasileira”.
Dessa forma, tem claro as principais barreiras a serem superadas por um eventual mandato presidencial de Fernando Haddad, ataca a agenda ultraliberal bombardeada pela mídia empresarial e afirma categoricamente que não há saída sem um fortalecimento do papel do Estado.
“O país só sairá da crise em que está afundado se o Estado assumir a liderança nos investimentos para reindustralizá-lo. Terá que regulamentar os investimentos estrangeiros de modo a orientá-los para áreas de atendimento não só ao mercado interno, mas também para a disputa internacional, realizar uma reforma tributária progressiva em substituição à tributação regressiva atual e, com tudo isso, criar as condições para a superação do desemprego, das desigualdades sociais, dos déficits vergonhosos na infraestrutura (ponto chave: ferrovias), educação, saúde, saneamento básico etc.”, enumerou.
A entrevista é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 01-10-2018.
O que avalia das principais campanhas eleitorais até aqui? Tivemos debates à altura dos desafios que o país tem pela frente?
O país está num quase atoleiro e os debates estão longe de tratar os desafios com a profundidade necessária. Mesmo porque, para o centro e para a direita, o problema consiste em esconder tais desafios, enquanto a esquerda, em geral, ainda faz confusão entre o que é necessário para acumular forças e dividir os adversários, e o que realmente é estratégico para mudar a face do país.
Como enxerga um segundo turno entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad? Não teríamos uma polarização tóxica e perigosa?
É possível que ocorra essa polarização. No entanto, o que fazer? Abandonar o ringue porque há o perigo de o adversário puxar um revólver e atirar? Em política, como expressão da luta de classes, há sempre esse perigo. De qualquer modo, na falta de outras opções, a esquerda e o centro democrático não deveriam ter dúvidas em quem votar, independentemente de gostar ou não do Haddad e do PT.
Como analisa a estratégia do PT de segurar a candidatura Lula até o limite dos prazos e depois a escolha da dupla Haddad-Manuela D’Ávila?
Na verdade, parece que a estratégia da maioria da direção do PT era o Plano B desde o início. Pelo que pude acompanhar, a estratégia de segurar até o limite acabou sendo empurrada goela abaixo porque o golpismo e o judicialismo não deram outra alternativa a ela. Com isso, a estratégia de segurar a candidatura Lula acabou sendo a melhor alternativa, embora com um candidato que tem pouco a ver com as características que marcam Lula.
Em muitos artigos dos últimos anos o senhor afirmou a necessidade de autocrítica petista a respeito de práticas que terminaram com a condenação penal de alguns de seus principais nomes históricos. A autocrítica não veio. O que isso anuncia de um possível novo governo federal do partido?
A autocrítica realmente não veio, mas terá de vir mais cedo ou mais tarde pela imposição não tanto dos resultados eleitorais, mas dos desafios colocados pela situação brasileira. Se Haddad vencer, só conseguirá enfrentar os problemas econômicos, sociais e políticos que estão na ordem do dia se tiver clareza daqueles erros e da necessidade de evitar que ocorram novamente. E, se perder, aí será por pressão das bases do PT, muito mais intensa do que todas as que já enfrentou até hoje.
Quais iniciativas seriam factíveis numa eventual presidência de Fernando Haddad?
O país só sairá da crise em que está afundado se o Estado assumir a liderança nos investimentos para reindustralizá-lo. Terá que regulamentar os investimentos estrangeiros de modo a orientá-los para áreas de atendimento não só ao mercado interno, mas também para a disputa internacional, realizar uma reforma tributária progressiva em substituição à tributação regressiva atual e, com tudo isso, criar as condições para a superação do desemprego, das desigualdades sociais, dos déficits vergonhosos na infraestrutura (ponto chave: ferrovias), educação, saúde, saneamento básico etc. etc.
Sem desenvolver economicamente o país com forte participação e regulação do Estado é bobagem falar no resto, que demanda altos investimentos públicos e privados. É preciso produzir riqueza para poder empregá-la em benefício do povo.
De outro lado, como imagina o antipetismo novamente na oposição do governo federal? Não teríamos chance enorme de uma repetição da ruptura que houve com Dilma ou de um golpe de forma até mais desabrida?
Se nos submetermos a essa dicotomia é difícil achar uma saída. O problema da Dilma é que ela foi derrubada não por seus defeitos, mas por suas qualidades. Os defeitos apenas deram maior chance para a vitória do golpe. Portanto, o antipetismo tem por base não os defeitos e erros do PT, mas fundamentalmente suas qualidades. Os erros e defeitos somente são a chave para tentar liquidar esse partido da vida pública.
Portanto, pode ocorrer processo idêntico. Se o PT reconhecer e corrigir seus defeitos e seus erros (é pena que vários petistas achem vergonhoso, não uma qualidade), a chance de enfrentar com sucesso os ataques aumentará. Mas também aumentará o antipetismo de quem quer manter o país na linha do atraso, dependência, subordinação, desnacionalização e profunda desigualdade social. Portanto, ruim por ter cães, pior por não tê-los.
Um cenário de pressão golpista aliado a um clima de ódio social não adiaria mais ainda uma reconstrução das esquerdas e, tal como afirmado por muitos analistas, sua necessidade de se reaproximar do povo?
Engraçado, eu penso justamente que quanto maior a pressão golpista e o clima de ódio social, maior deveria ser a necessidade não só de se reaproximar do povo, mas de recriar laços íntimos e organizacionais com as camadas da base da sociedade. Tenho repetido isso há muito tempo e espero que, tanto o PT quanto as outras organizações de esquerda, se deem conta dessa necessidade estratégica. Na verdade, disso depende todo o resto.
Há caminhos para a esquerda dentro da institucionalidade de um sistema em crise profunda e globalmente generalizada? “Mudar o Estado por dentro” ainda é uma consigna a ser considerada?
Os caminhos da esquerda não são parte de uma livre escolha. São parte do enfrentamento de uma realidade concreta, de inúmeras contradições econômicas, sociais, políticas e ideológicas, que se modificam tanto através de reformas progressistas e conservadoras de diferentes tipos quanto por transformações revolucionárias.
E não é a esquerda, por mais revolucionária que seja, que cria as condições para tais transformações revolucionárias. Como dizia um mestre no assunto, revoluções só ocorrem quando os de baixo não suportam mais viver como até então e os cima não mais conseguem dominar como até então.
Assim, enquanto a crise da institucionalidade não chegar a tal ponto, cabe à esquerda navegar por dentro dela e lutar por reformas democráticas e populares, inclusive do próprio Estado, que a cacifem para agir quando for posta diante daquela situação.
Enxerga que estamos de fato sob a ameaça fascista? Indo adiante, enxergaria uma responsabilidade dos setores associados ao “mercado”?
O fascismo voltou a ser uma ameaça por toda parte, não só no Brasil. Isso está relacionado, por um lado, com as crises de realização do capitalismo nos países centrais. Entre estes, os Estados Unidos talvez sejam o exemplo mais evidente, com a brutal elevação da produtividade do trabalho e, como consequência, com o aumento acentuado do desemprego estrutural e da miséria. Acenar com a subordinação de outros países para resolver tal situação é uma das miragens do fascismo norte-americano.
Por outro lado, em países capitalistas retardatários como o Brasil, economicamente atrasados, dependentes, subordinados, desnacionalizados e com profundas desigualdades sociais, acenar com governos “fortes”, capazes de resolver na porrada todos os problemas, tornou-se a miragem local, embora seus partidários não gostem de ser chamados de “fascistas”.
Mas, em ambos os casos, o fascismo é criação de um “mercado capitalista em crise profunda” e deve ser combatido sem vacilação porque, como mostrou a história, é capaz de barbaridades e destruições humanas sem paralelo.
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“Quanto mais pressão golpista e ódio social, mais necessidade de recriar laços com as bases da sociedade”. Entrevista com Wladimir Pomar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU