02 Outubro 2018
“Se as lideranças da Igreja não limparem a bagunça dos abusos sexuais, a autoridade civil o fará. Mas a autoridade civil só pode lidar com os crimes da Igreja; não pode restaurar a Igreja. Somente os fiéis podem fazer isso – e os bispos devem lhes dar espaço para isso.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em Commonweal, 01-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dietrich Bonhoeffer disse celebremente que Deus não concedeu nenhuma Reforma ao cristianismo estadunidense. Também é verdade que Deus não concedeu nenhuma Contrarreforma aos Estados Unidos. Mas, com a última fase da crise dos abusos no país, isso pode estar mudando.
A profundidade e a magnitude dessa crise – assim como a sua distinta combinação de corrupção clerical e divisão teológica – pioram a situação mais do que qualquer crise desde aquela que abalou a Igreja há cinco séculos. A crise atual pode não levar a uma divisão formal da Igreja como a Reforma levou, mas pode levar a um longo período de cisma não declarado.
Assim como no século XVI, a questão não é se a Igreja Católica sobreviverá a essa era de escândalos, mas com que forma a Igreja sobreviverá. A crise dos abusos claramente não é mais apenas um escândalo, nem mesmo uma série de escândalos. É, pelo menos nos Estados Unidos, uma revolução na Igreja que pode levar tanto à reforma quanto à marginalização moral e cultural do catolicismo.
A questão, então, é como reformar melhor a Igreja, especialmente nos Estados Unidos, que é o epicentro dessa crise. Algumas interpretações da crise, como a ideia de que toda a hierarquia é corrupta até a raiz e deve ser totalmente substituída por leigos, deram força a ideias da Igreja que parecem pouco compatíveis com o catolicismo.
Mas aqueles que têm o poder de parar o sangramento e iniciar um processo de reforma verdadeira parecem estar incapacitados. Faz parte da cultura eclesiológica daqueles que foram promovidos na Igreja com João Paulo II e Bento XVI acolher a renovação espiritual, mas não a reforma institucional.
Exatamente agora, a liderança hierárquica da Igreja – tanto dos bispos quanto da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos (USCCB) – está em pânico: quase todos os dias, novas denúncias enfraquecem a sua autoridade. Não está claro qual caminho a seguir eles têm em mente.
Do outro lado do Atlântico, o Vaticano está agora lidando com aquela que se tornou uma crise global, que certamente chamará muita atenção no Sínodo dos bispos sobre os jovens, que será aberto no dia 3 de outubro. Um dia antes de se encontrar com a delegação da USCCB, Francisco anunciou uma reunião extraordinária dos presidentes de todas as Conferências Episcopais no Vaticano, marcada para o fim de fevereiro. Não é um consistório de cardeais, nem um sínodo organizado pela secretaria permanente do Sínodo dos Bispos. Trata-se do primeiro encontro do gênero, que pode ser entendido como o reconhecimento de Roma de que a crise dos abusos não pode ser enfrentada adequadamente a menos que Roma e as dioceses locais trabalhem juntas.
Ainda não sabemos o que estará na pauta dessa reunião. Mas sabemos, sim, que Roma não pode esperar para agir. E a Igreja dos Estados Unidos também não pode esperar para ver o que acontece em Roma.
Deixando de lado o enorme problema de investigar as denúncias individuais no relatório do Grande Júri da Pensilvânia e todas as questões levantadas pelo “testemunho” de Viganò sobre McCarrick, a questão de longo prazo é como consertar um tecido eclesial que foi rasgado como nunca antes.
Pode-se pedir que o Vaticano lide com os bispos acusados de encobrimento e de assédio sexual, mas não se pode esperar que o Vaticano lide rapidamente com o problema eclesial maior: como curar a Igreja desse país da corrupção sem matá-la ou dividi-la ao meio. Neste momento, o paciente parece muito fraco para a cirurgia.
Então, por onde começar? Deixe-me oferecer algumas propostas.
Primeiro, vamos parar com as agendas de reforma não relacionadas com a crise em questão. A única agenda deveria ser agir em favor das vítimas e dos sobreviventes de abuso, livrar-se da corrupção e reconstruir a unidade da Igreja. O resto pode esperar; de fato, eu receio que deva esperar.
A instrumentalização da crise dos abusos – transformando-a em uma alavanca para a própria causa, não importa o quão remota essa causa possa ser em relação ao escândalo – só torna a crise mais profunda. Tendências cismáticas surgiram nos últimos anos por causa da crescente influência, na Igreja e no mundo da política, de grupos de influência e de defesa, lobbies e think tanks. Pode-se ver os efeitos dessa tendência no modo como o “testemunho” de Viganò foi elaborado e disseminado.
O problema é ainda mais complicado porque não se restringe apenas a um lado do espectro ideológico. Ele é muito mais visível no lado conservador, onde normalmente há mais dinheiro envolvido, mas ambos os lados se tornaram parte dessa dinâmica viciosa. Na minha opinião, a radicalização das propostas de reforma corre o risco de dividir a Igreja em um momento em que ela já está particularmente fraca. (Uma revelação: eu não acho que o diaconato das mulheres ou a ordenação de viri probati – “homens casados provados” – ao sacerdócio sejam reformas perigosamente divisivas.)
Amplas demandas de reformas inspiradas em uma compreensível fúria anticlerical facilitam que os representantes do status quo (clerical e leigo) fechem todas as vias de reforma e insistam que somente eles são leais à Igreja.
Segundo, os leigos precisam fazer um melhor uso das instituições eclesiais já existentes e, sempre que necessário, ajudar a criar novas. O caminho a seguir não é o anti-institucionalismo. Isso só ajudaria aqueles que já têm acesso às melhores instituições extraeclesiais que o dinheiro pode comprar e que as usam para influenciar a Igreja. Isso já está acontecendo.
A sinodalidade é o melhor modelo eclesiológico para uma Igreja que quer sair dessa confusão. O pontificado de Francisco ofereceu oportunidades para uma Igreja sinodal, apesar de algumas claras limitações e pontos cegos, o que também pode ser encontrado no documento sobre a sinodalidade publicado há alguns meses pela Comissão Teológica Internacional.
Instituições de sinodalidade já existem (por exemplo, o conselho presbiteral, o colégio de consultores, os capítulos de cônegos e o conselho diocesano de pastoral), mas eles foram destruídos nas décadas desde que o Concílio Vaticano II os criou.
Existem outras instituições de sinodalidade que ainda não existem e devem ser criadas (por exemplo, comitês nacionais e diocesanos que representem os leigos católicos, conselhos leigos para as investigações feitas para a nomeação de bispos). Por fim, existem instituições que não foram construídas para a sinodalidade, mas podem fornecer um espaço para a reforma institucional neste tempo extraordinário, como as escolas e universidades católicas.
Este momento de fúria anticlerical não deve nos cegar para a importância das instituições: elas podem criar espaço e liberdade. No longo prazo, a informalidade e a espontaneidade não são suficientes; elas limitam as possibilidades das nossas relações, que também exigem algum tipo de estrutura. Como David Michael afirmou recentemente em um artigo da Commonweal sobre os casamentos suecos, “a formalidade cria espaços em que os amigos podem dizer a seus amigos que os amam”.
Quanto à criação de novas instituições de sinodalidade, há um lugar óbvio para se começar. Nós temos uma conferência de bispos católicos. Mas não temos uma conferência de leigos católicos. Os leigos católicos têm o direito de solicitar à Igreja institucional espaços e tempos para a interação e a deliberação que pertencem a toda a Igreja, não apenas ao clero.
A crise dos abusos eliminou não apenas uma grande dose de confiança na Igreja, mas também falsos construtos teológicos do poder da Igreja. Das muitas crises relacionadas que o escândalo dos abusos revelou, há uma crise de representação vicária na Igreja. O clericalismo absorveu essa representação, com os resultados desastrosos que agora estão diante de nós. Falsos construtos teológicos do poder da Igreja – e espiritualidades baseadas neles – são aquilo que fizeram com que membros da hierarquia destruíssem as instituições de representação existentes ao longo dos últimos 50 anos e se recusassem a levar em consideração a criação de instituições para a representação leiga na Igreja global.
Durante muito tempo, a Igreja institucional recuou em relação à sinodalidade e à representação leiga ao opor a legitimidade dogmática à legitimidade democrática, lembrando-nos que a Igreja deve a sua autoridade à sua instituição divina, não ao consenso popular. Mas a fundação não democrática do poder na Igreja Católica nem sempre exclui o uso de procedimentos formalmente democráticos. O Papa Francisco abriu as portas para tais procedimentos, mas os bispos dos Estados Unidos (e não apenas nos Estados Unidos) não parecem interessados.
Isso tem que começar em algum lugar. O paradoxo é que, neste momento de “queda livre” para a hierarquia católica neste país, são apenas os bispos que podem criar momentos sinodais para toda a Igreja – não apenas para aqueles doadores poderosos com uma agenda fixa. Cabe aos bispos organizar eventos sinodais diocesanos locais – e isso deveria acontecer antes da reunião de fevereiro dos presidentes das Conferências Episcopais com o papa.
A hierarquia dos Estados Unidos não deveria permitir que fundações católicas ricas e poderosas liderem isso. Iniciativas partidárias só vão piorar a crise. As únicas vozes que tais iniciativas amplificam são as vozes daqueles que já são muito influentes.
O ressurgimento da sinodalidade faz parte do reconhecimento tragicamente tardio por parte da Igreja de que ela não tem mais nenhum controle territorial (em que os bispos governam as suas dioceses como se fossem feudos), mas deve se mobilizar a fim de ir ao encontro do mundo. Tal mobilização requer o apoio e a colaboração de todos os fiéis, não apenas do clero. A crise dos abusos, pelo menos, abalou a complacência dos bispos, o que é uma coisa boa.
Dado o dramático colapso da credibilidade da hierarquia, os católicos neste país têm algumas opções: uma delas é apenas esperar enquanto a hierarquia consome a si mesma, derrubando toda a Igreja consigo, e depois tentar reconstruir a Igreja dos Estados Unidos a partir do zero. (Adeus continuidade!)
Outra possibilidade é fugir para uma pequena comunidade de fiéis (também conhecida como “Opção Bento”). Isso significaria abrir mão não apenas do mundo secular, mas também do restante da Igreja, incluindo as vítimas e os sobreviventes de abuso.
Outra possibilidade ainda é permitir que os agentes do status quo se apresentem como reformadores, enquanto usam cinicamente a crise dos abusos para encerrar a verdadeira reforma.
Seria melhor, creio eu, exigir da Igreja institucional espaços eclesiais que pertencem ao povo de Deus, e não à hierarquia. Se as lideranças da Igreja não limparem a bagunça dos abusos sexuais, a autoridade civil o fará. Mas a autoridade civil só pode lidar com os crimes da Igreja; não pode restaurar a Igreja. Somente os fiéis podem fazer isso – e os bispos devem lhes dar espaço para isso.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Sínodos não são apenas para bispos: como os leigos podem ajudar a reformar a Igreja. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU