02 Mai 2018
A única forma de salvar o poder papal do positivismo pontifício no catolicismo global é com a sinodalidade.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por La Croix International, 01-05-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Faggioli estará na Unisinos Porto Alegre, nos dias 23 e 24 de maio, participando do XVIII Simpósio Internacional IHU. A virada profética de Francisco. Possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo. Na ocasião ministrará as conferências O Papa Francisco na história papal do século passado e a periodização do seu pontificado e A universalidade e o (não)lugar político da Igreja no mundo de hoje.
Uma delegação da Conferência dos Bispos da Alemanha estará em Roma nesta semana para se reunir com autoridades vaticanas e o Papa Francisco. Depois, dentro de algumas semanas, será a vez de todos os bispos do Chile irem à cidade para uma série própria de conversas com o papa.
Esses dois encontros lançam uma luz sobre a complexidade da globalização da Igreja Católica.
Teoricamente, os bispos locais têm autoridade para resolver os problemas que serão discutidos em Roma – para os alemães, trata-se do acesso não católico à comunhão em certas circunstâncias, enquanto para os chilenos se trata da crise dos abusos sexuais.
Mas a realidade é que uma solução local que divirja da aplicação legalista das regras “pelo livro” – mas que ao mesmo tempo seja coerente com a unidade da disciplina católica – requer uma discussão com o bispo de Roma.
As divisões internas dentro dos episcopados nacionais são outro fator importante que requer uma consulta ao papa.
Essas próximas reuniões não vão ocorrendo no contexto de um pontificado empenhado na centralização da autoridade na Igreja. Muito pelo contrário. O Papa Francisco está tentando reviver a dimensão colegial e sinodal da governança da Igreja.
Mas um dos maiores paradoxos do seu pontificado é que, embora ele esteja encorajando os bispos e os leigos a reivindicarem sua voz e seu espaço, estes têm hesitado em aceitar a oferta do papa.
Esses encontros em Roma são uma das tentativas de dar início a um novo modelo para a governança da Igreja.
Não é insignificante que esses bispos viajem ao Vaticano para se encontrar com o papa, para uma visita que é ad hoc, e não para as habituais visitas ad limina. Eles se encontrarão com o papa, e não com a Cúria Romana.
Não é nenhuma novidade que um papa se encontre com bispos no Vaticano em um esforço para abordar situações extraordinárias.
João Paulo II fez isso em 2002, quando chamou os cardeais e as lideranças da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos para Roma para deliberar sobre a crise dos abusos sexuais. Bento XVI fez isso em 2011, quando recebeu os bispos do Japão para discutir as tensas relações entre o Caminho Neocatecumenal e suas Igrejas locais.
Mas esses encontros parecem ter adquirido um novo significado com o Papa Francisco. E podem indicar o início de uma nova prática eclesial, típica da eclesiologia da globalização católica.
É um quadro complexo e uma tarefa difícil. A explicação mais óbvia, mas também simplista, para a dificuldade de desenvolver novas práticas sinodais é que as pessoas que hoje dirigem a Igreja Católica são clérigos que fizeram suas carreiras em uma era que não encorajava a colegialidade e a sinodalidade.
Mas há outras razões mais sérias – duas em particular.
A primeira diz respeito à relação entre a Igreja Católica e o “Zeitgeist”, ou o espírito dos nossos tempos.
A eclesiologia católica, tanto em suas expressões teóricas quanto práticas, não vive no vácuo. A redescoberta da colegialidade e da sinodalidade da Igreja Romana na segunda metade do século XX, sem dúvida, fazia parte do movimento teológico de ressourcement, assim como de aggiornamento do Vaticano II.
Mas também fazia parte de uma nova consciência política e civil católica que, no rastro de duas guerras mundiais, passou a entender o valor da democracia em oposição ao autoritarismo e ao totalitarismo.
O problema hoje é que o desafio e o convite do Papa Francisco para abraçar a colegialidade e a sinodalidade estão ocorrendo em um momento em que o consenso católico sobre a compatibilidade da tradição da Igreja com a cultura democrática está em crise.
Essa é uma das implicações político-culturais do ressurgimento do tradicionalismo católico no mundo ocidental – a nostalgia de uma era em que o catolicismo era definido pela antimodernidade e pelo antiliberalismo.
Entre todas as tendências antimodernas e antiliberais do catolicismo romano hoje, o ultramontanismo pode ser o menos perigoso (e não estou dizendo isso apenas por causa do homem que é o atual papa).
Francisco está fazendo sua proposta sobre colegialidade e sinodalidade em uma Igreja e em um mundo que se tornaram – por diferentes razões – céticos em relação à democracia e ao antiautoritarismo. É um daqueles momentos em que realmente podemos apreciar o fato de que o catolicismo aprecia a ideia de ser “contracultural”.
Mas seu contraculturalismo, nesse contexto, consiste em promover a liderança sinodal e colegial em um mundo cada vez mais liderado por homens fortes e aspirantes a ditadores (inclusive em alguns países tradicionalmente “católicos” como as Filipinas ou a Polônia).
Nesse sentido, a ênfase de Francisco na sinodalidade tem uma mensagem política que os católicos deveriam lembrar quando contemplam a triste situação de suas instituições políticas. Uma Igreja que continua sendo marcada pela governança tecnocrática, autoritária e clerical tem pouca credibilidade para criticar tais situações políticas.
A segunda razão diz respeito à relação entre o desenvolvimento da ideia do papado entre os séculos XIX e XX, e a incipiente globalização da Igreja Católica que o Papa Francisco encarna.
Dito de forma simples, a sinodalidade é mais urgente hoje do que no século XX por causa dessa nova relação entre a globalização e o papado. Formalmente, a definição do ministério papal ainda se baseia nas definições do Vaticano I (1869-1870) e do Vaticano II (1962-1965).
A tradição da Igreja Católica na definição da autoridade papal é “conservadora” no sentido de ser cautelosa.
Os dois Concílios Vaticanos e a Igreja que eles moldaram, rejeitaram as interpretações extremistas do primado e da infalibilidade papal. Os católicos sempre estiveram conscientes, em grande parte, dos limites dos poderes papais.
Mas a “descrição de trabalho” do ministério papal também depende de outros fatores. Um desses fatores, por exemplo, é o papel que o papado desempenha em uma Igreja que agora está profundamente presente no mundo das mídias.
Nesse sentido, mesmo que a infalibilidade continue fazendo parte do arsenal do papado, embora não seja mais usada, devemos reconhecer que o primado papal na Igreja cresceu significativamente nos últimos 150 anos. O conceito de infalibilidade é inaceitável para uma Igreja amiga da mídia, enquanto o primado se encaixa perfeitamente com o nosso fascínio pelo conceito de liderança.
Esse é um desdobramento alinhado com a transição da Igreja para uma nova fase de sua globalização – uma enorme diversificação das culturas dos católicos em todo o mundo.
A mudança do catolicismo de uma Igreja eurocentrada para uma Igreja global significa que os papéis de liderança na Igreja – incluindo e especialmente o do papa – serão ocupados por católicos de origens muito diversas.
As diferenças entre Francisco e Bento XVI são apenas um exemplo. O movimento pendular atualmente em curso provavelmente não se limitará à transição de um teólogo da Communio para um teólogo da Concilium (para mencionar duas escolas diferentes de pensamento teológico da Igreja pós-Vaticano II), mas poderia ser muito mais amplo.
O risco é de que essa mudança possa reintroduzir a tentação do positivismo papal – “Isto é verdade apenas porque o papa disse” – e de que esse positivismo possa, por sua vez, expor a Igreja a transições difíceis onde não haja mais um modelo teológico-cultural dominante.
O positivismo papal sempre foi um risco. Mas poderia ser fatal em uma Igreja em que a transição de um papa para outro, em que cada um vem de origens completamente diferentes, desperte sensibilidades teológicas amplamente diferentes em toda uma série de questões – como a justiça econômica e social, as mulheres na Igreja, paz e guerra, a sexualidade e assim por diante.
O que o atual pontificado está nos mostrando não é apenas a inversão de posições entre os católicos liberais (que agora tendem a ser “ultramontanistas” porque gostam do Papa Francisco) e os católicos conservadores (que agora tendem a ser os “católicos à la carte” porque não gostam dele).
Francisco está mostrando um paradoxo maior aqui. A única maneira de salvar o poder papal do positivismo papal no catolicismo global é com a sinodalidade.
Em outras palavras, se todos concordamos que o positivismo papal é perigoso e se levamos em consideração a possibilidade de um movimento pendular na cultura teológica dos futuros papas, a única maneira de salvar o poder papal na Igreja global é a criação de espaços para a Igreja sinodal da qual Francisco está falando.
Ainda não sabemos o modo e a forma que a Igreja Católica globalizada assumirá. Temos apenas alguns exemplos de instituições católicas que refletem essa mudança de época. A mais visível é o Colégio dos Cardeais, no qual o Papa Francisco introduziu muitos mais membros do “Sul global”.
A globalização da Igreja nos mostra que há uma diferença entre ser um católico global e ser um católico liberal.
Primeiro, porque Francisco vem da Igreja global, mas ele não é o papa liberal que às vezes é acusado de ser.
Segundo, porque podemos ver a partir do estado do mundo em 2018 que a globalização não produziu uma consolidação do liberalismo político e cultural – muito pelo contrário. A mesma ligação entre a globalização e a ascensão do antiliberalismo está ocorrendo também na Igreja.
Isso para dizer que a globalização católica provavelmente não levará a uma desregulação do catolicismo, mas sim a um tipo diferente de regulação. A globalização católica ainda precisará ser “governada”, mas de um modo diferente – e governada mais – do que a forma financeira e econômica por meio da qual a globalização foi governada e regulada.
Isso implicará um tipo diferente de governança da Igreja, mas, mesmo assim, governança.
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Sinodalidade e o desafio de governar uma Igreja Católica globalizada. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU