02 Outubro 2018
Na esteira do testemunho fiel e profético das primeiras comunidades cristãs, a Pastoral da Juventude (PJ) quer, por meio desta nota, reafirmar o seu compromisso com o projeto do Reino de Deus, encarnado no Cristo e seguido pela Igreja. Diante do momento atual de crise(s) no nosso país, a corrida eleitoral fez emergir discursos e propostas que colocam em disputa diferentes projetos de sociedade e de humanidade.
Por isso, atenta aos valores do Evangelho, aos ensinamentos da Igreja e aos anseios reais da sociedade – especialmente das juventudes, dos/as pobres e oprimidos/as – a PJ utiliza deste instrumento objetivando provocar a reflexão e orientar as nossas bases e lideranças para uma tomada de posição mais consciente e coerente, à luz da nossa fé e da nossa missão.
Primeiramente, é preciso reconhecer e reafirmar o projeto de sociedade que nós acreditamos, defendemos e buscamos, a Civilização do Amor! Tal projeto se fundamenta centralmente em Jesus Cristo, quando o mesmo afirma “Eu vim para que todos tenham vida, e vida em abundância” (João 10, 10). Jesus é categórico: seu projeto é a vida para todos e todas, não apenas para uns poucos privilegiados. E não se trata de uma vida qualquer. Não! Jesus quer vida abundante, ou seja, vida plena de dignidade, respeito e direitos que possibilitem a felicidade e realização para todas as pessoas.
Como realizar tal projeto? O próprio Jesus nos disse “Eu dou a vocês um mandamento novo: amem-se uns aos outros. Assim como eu amei vocês, vocês devem se amar uns aos outros” (João 13, 34). Ora, e como foi que Ele nos amou? Entregando a própria vida em favor da vida de todos e todas. O Amor foi, em Jesus, a chave de sua missão e de sua doação ao projeto de Deus. Eis ao que somos convocados como cristãs e cristãos: amar e amar, sem medida!
A nossa Igreja, por sua vez, reconhece e professa o Amor de Deus em Cristo como sendo seu caminho e seu horizonte. Em diversos documentos a Igreja reafirma o seu compromisso com o Amor enquanto fundamento central de sua missão. Aqui, devido a reflexão de cunho social que é o foco, faremos menção a Doutrina Social da Igreja (DOCAT, 2016), na qual se afirma: “O fio condutor de Deus na Criação é o Amor.
Portanto, o plano de Deus é que o homem ame e responda ao seu amor e assim ele próprio pense, fale e atue no amor” (n. 1). O mesmo documento ainda reforça que a vocação humana é o amor (n. 15) e que pelo exercício do amor devemos renunciar a violência (n. 16).
Avançando para um ideal de organização da vida em sociedade, a Doutrina Social da Igreja assume como um de seus princípios o Bem Comum, ou seja, o conjunto de condições sociais que possibilite a todos/as atingir a plenitude da vida (n. 87). Neste sentido, afirma-se expressamente: “O fim de cada pessoa individual é realizar o bem. O fim da sociedade é o Bem Comum” (n. 87). Tal princípio é de tal forma imperativo, que mais adiante se esclarece: “A propriedade privada não pode estar acima do bem comum, porque todos os bens devem servir a todos os homens” (n. 91). Este princípio deve então ser encarado como prioridade, especialmente em atenção aos mais pobres e excluídos, conforme também alerta o documento: “Ou os pobres estão no coração da Igreja, ou então a Igreja trai a sua missão” (n. 94).
É necessário destacar que, nesse caminho pelo Bem Comum e pela “vida em abundância” – caminho do Amor em Cristo – não há espaço para: julgamentos e condenações (cf. Mateus 7, 1-5; João 8, 1-11); egoísmo e individualismo (cf. Marcos 10, 17-31); fundamentalismo e legalismos (cf. Mateus 12, 1-14; Lucas 14, 1-6); preconceitos (cf. João 4, 1-26); privilégios (cf. Mateus 20, 17-28). A vida está em primeiro lugar, sempre! Nos cabe servir a vida, no anúncio e na prática do amor, na denúncia e na luta contra as estruturas que produzem morte.
Por tudo isso é que a PJ se engaja politicamente na construção da Civilização do Amor, uma sociedade fraterna, sem violência, justa e igualitária, com o direito à vida digna e plena para todas as pessoas e particularmente para os pobres, marginalizados e oprimidos. Fica claro, portanto, que é este o projeto de sociedade e de humanidade que devemos mirar como horizonte, e no qual devemos basear nossas escolhas, nossos discursos e práticas – no momento atual especialmente o nosso voto.
Neste segundo ponto, relacionamos e alertamos sobre algumas questões eleitoreiras que se colocam na contramão do mandamento evangélico do Amor e que, portanto, ameaçam o valor inviolável da vida e impõem obstáculos no caminho rumo à Civilização que sonhamos. Nas palavras de profecia que abrem esta Nota – “Quanto a nós, não podemos nos calar sobre o que vimos e ouvimos.” (Atos 4, 20) – reconhecemos o sentimento e a consciência que nos move no compromisso com o projeto libertador de Cristo. E é com base nisso que nos posicionamos contrariamente ao avanço das seguintes pautas:
Redução da Maioridade Penal
Proposta que defende reduzir a maioridade penal (hoje em 18 anos) para idades menores, sob o argumento de que isso reduziria a violência. Juntamente com a Igreja, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a PJ já se posicionou inúmeras vezes e é historicamente contrária a qualquer proposta de redução, por entender que isso, além de ferir os direitos fundamentais de adolescentes e jovens, não é a solução adequada e efetiva para sanar ou mesmo amenizar o problema da segurança. Ao contrário, apenas agravaria ainda mais a violência.
Revogação do Estatuto do Desarmamento
Proposta para revogar a lei do estatuto do desarmamento, permitindo o porte de arma de fogo para qualquer cidadão comum, com o intuito de supostamente garantir a sua proteção e defesa. Novamente junto a CNBB, a PJ é contra tal medida, entendendo que armar a população somente contribuiria para gerar mais violência, em oposição a cultura de paz que defendemos.
O Atlas da Violência 2018 mostra que a maioria dos homicídios no país é praticado com armas de fogo (71,1% dos casos em 2016), e são os jovens grande parte das vítimas, com crescimento nacional de 23,3% de homicídios contra jovens entre 2006 e 2016 (ano em que foram assassinados 33.590 jovens no país). Ainda segundo o Atlas da Violência, se não fosse pelo Estatuto do Desarmamento, o número de homicídios no Brasil seria 12% maior que o registrado.
Congelamento de Gastos Públicos
Em 2016 foi aprovada uma mudança constitucional que congelou o limite dos “gastos” públicos da União (incluindo saúde e educação) pelos próximos 20 anos, com a finalidade de controlar e frear o déficit nas contas públicas. Na prática, a medida representa mais um duro golpe nos direitos básicos da população mais pobre, que necessita dos serviços públicos (já precários).
A juventude que necessita de educação pública de qualidade, de acesso à saúde, cultura, lazer e oportunidades, está entre as mais prejudicadas com o teto de gastos, sofrendo com o corte no orçamento de programas e políticas públicas federais. Em favor da vida dessa população, somos contra o congelamento aprovado! Defendemos que o controle das contas públicas deve se fazer cortando privilégios e regalias de quem muito têm, e jamais retirando direitos já escassos de quem mais precisa.
Reforma Trabalhista
Em vigor desde 2017, a Reforma Trabalhista alterou inúmeros dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), alterou inúmeros direitos de trabalhadores/as sob o pretexto de “flexibilizar e modernizar” a legislação trabalhista. A PJ é contra tal reforma, pois na realidade ela serve apenas aos interesses do Mercado, enfraquecendo as garantias e os direitos trabalhistas, tais como: a prevalência de negociações entre empregador e empregado sobre a legislação; a não obrigatoriedade de pagamento do piso ou salário mínimo na remuneração por produção; imposição de limites aos pedidos de indenização por danos morais sofridos pelo trabalhador; terceirização irrestrita para todas as atividades; permissão para mulheres grávidas trabalharem em locais insalubres; enfraquecimento dos sindicatos; etc.
Todas essas mudanças favorecem a precarização das condições de trabalho e o subemprego, realidades que atingem direta e principalmente os/as jovens que estão ingressando no mercado de trabalho. E isso num cenário em que o desemprego é maior entre jovens de 14 a 24 anos, chegando a 5,6 milhões de jovens desempregados/as no primeiro trimestre deste ano, dados do IBGE.
Militarização das Escolas
Proposta que defende a adoção de gestão, disciplina e metodologia militares no âmbito da educação e das escolas públicas, sob a justificava de combater a violência e outros problemas vividos nas escolas.
A PJ é contra as propostas de Militarização, pois reconhecemos a incompatibilidade destas com o projeto de uma educação que seja crítica e libertadora, que respeite as diferenças e busque a transformação social. É esta a educação que a juventude quer, merece e precisa, uma educação para a autonomia e emancipação, não para a repressão e dominação.
Projeto/s “Escola Sem Partido”
Propostas que visam limitar e censurar a liberdade de cátedra de professores/as sob o pretexto de evitar que estes/as possam “doutrinar ideologicamente” crianças e jovens estudantes. Assim como sobre o ponto anterior, a PJ é contrária ao “Escola Sem Partido”, pois compreendemos que o argumento da chamada “doutrinação” é apenas uma falácia de grupos conversadores que querem a permanência da sociedade tal como ela é: desigual e excludente, com privilégios de poucos sendo sustentados pela miséria de muitos. Além disso, defendemos que a liberdade é um princípio fundamental à formação crítica, sendo direito fundamental e inegociável a todo/a educador/a.
Fascismo
Este último ponto talvez seja o mais crítico, por ser ele o mais abstrato. O que tratamos aqui como Fascismo não é uma proposta concreta em si mesma, mas um conjunto de ideias e práticas que tem na sua base o radicalismo político autoritário e violento. Em nossos dias, o Fascismo se expressa nos discursos de ódio que dizem “bandido bom é bandido morto”; na naturalização da desigualdade entre homens e mulheres; no preconceito velado e explícito contra LGBTI+; na negação do racismo estrutural e enraizado que oprime e mata os/as negros/as todos os dias; no não reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e tradicionais; na intolerância religiosa e nos ataques contra as religiões de matriz africana; na defesa de que fazer a economia crescer – atender as necessidades do mercado – é mais importante do que atender as necessidades básicas e fundamentais da população pobre e marginalizada.
Ou somos cristãos e cristãs a favor da Vida, ou apoiamos tais posições. Pela vida plena para todos/as, especialmente para as juventudes, a PJ diz NÃO ao Fascismo em todas as suas horrendas expressões!
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Conscientes da complexidade do debate sobre as questões abordadas, preparamos em anexo desta Nota uma lista com referências, da Igreja e de entidades representativas da sociedade, que embasam e justificam nossa posição. Diante de tudo isso, fazemos um forte apelo para que todos e todas engajados/as na PJ reflitam profundamente sobre suas escolhas pessoais e mobilizem debates críticos nos diversos espaços coletivos em que atuam.
Mais do que nunca, precisamos ser coerentes com a nossa fé e nosso projeto de sociedade. E isto obrigatoriamente nos impõe o compromisso em não votar, não compartilhar e não apoiar os discursos, propostas e candidaturas (de indivíduos ou de partidos) que defenderam/defendem quaisquer das pautas acima citadas ou ideias similares. Ao contrário, devemos lutar contra tudo isso, escolhendo e apoiando candidaturas que se propõem efetivamente a garantir vida plena e digna para todos/as, em especial aos pobres, com políticas estruturais e consistentes, baseadas no respeito incondicional aos Direitos Humanos e nos ideais de justiça, equidade, diversidade e paz social. Somente assim poderemos chegar de fato ao Bem Comum como finalidade real da sociedade, assumindo concretamente a construção da Civilização do Amor.
Estamos certos e certas de que, nessa luta e nesse sonho, o Espírito Santo é que nos move na fidelidade ao projeto do Reino, encarnado em Jesus Cristo e seguido pela Igreja. Haverá, por certo, quem julgue “radical” ou até mesmo “ideológica” a nossa posição, mas aprendemos com o Mestre que se trata, na verdade, de evangelho e profecia (cf. Mateus 10, 10-12). Nosso santo padre e pastor, o Papa Francisco já disse: “Um cristão que não seja revolucionário neste tempo, não é cristão”. Seguimos firmes na esperança certa de que, juntas e juntos na revolução, a Vida vencerá a morte!
Anexos
1. Documentos e pronunciamentos da Igreja e organismos eclesiais
CELAM. Civilização do Amor: Projeto e Missão – Orientações para uma Pastoral Juvenil Latino-americana. Brasília: Edições CNBB, 2013.
CNBB. Evangelização da Juventude: Desafios e Perspectivas Pastorais. Documentos da CNBB n. 85. Brasília: Edições CNBB, 2007.
CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil: 2015-2019. Brasília: Edições CNBB, 2015.
CNBB. Cristãos leigos e leigas na Igreja e na sociedade. Documentos da CNBB n. 105. Brasília: Edições CNBB, 2016.
DOCAT – Como Agir? – Tradução popular da Doutrina Social da Igreja Católica. São Paulo: Editora Paulus, 2016.
NOTA da CNBB sobre a redução da maioridade penal (2013).
NOTA da Pastoral da Juventude (PJ) sobre a redução da maioridade penal.
CARTA do Fórum Nacional das Pastorais Sociais, Setor da mobilidade humana e Organismos da CNBB.
Manifesto Público de diversos organismos e pastorais da CNBB.
2. Referências de outras organizações da Sociedade
ONU publica artigo técnico sobre maioridade penal no Brasil
Agência da ONU se posiciona contra redução da maioridade penal no Brasil
“Escola sem partido”: a criminalização do trabalho pedagógico
Censura na Educação - entenda o que é o PL Escola Sem partido
ANPEd diz não ao Projeto Escola Sem Partido
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Reflexão e Orientação sobre as Eleições 2018. Nota da Pastoral da Juventude do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU