19 Junho 2018
Um passo para frente, um para o lado e um para trás. Essa é a dança da economia brasileira que a economista Laura Carvalho descreve no livro “Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico”, lançado em maio e que há três semanas está na lista dos mais vendidos do País, com mais de 10 mil exemplares comercializados. Doutora em economia pela New School for Social Research, de Nova YorK (EUA), professora da Universidade de São Paulo (USP), colunista da Folha de S. Paulo e integrante do grupo de trabalho formulou uma proposta de plano de governo na área de economia para o pré-candidato à presidência Guilherme Boulos (PSOL), Laura, 34 anos, esteve em Porto Alegre na última terça-feira (12) para lançar o seu primeiro livro. Entre uma visita à amiga também presidenciável Manuela D’Ávila e o evento na Faculdade de Economia da UFRGS.
A entrevista é de Luís Eduardo Gomes, publicada por Sul21, 18-06-2018.
Na entrevista, que foi concluída dois dias depois por telefone, Laura diz que prefere não se apresentar como a “economista” de Boulos, como seu nome tem aparecido na imprensa desde que passou a contribuir com o pré-candidato, porque está apenas participando da construção de uma proposta que ainda precisa ser aprovada pelo PSOL em assembleias para integrar o programa econômico oficial. Também por isso, diz não se ver no papel de oferecer um “respaldo” à candidatura de Boulos, que é visto pelo establishment como um “extremista”, quando não como “um perigo”, pela sua atuação como coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
“Eu acho que a sociedade, infelizmente, tem essa visão do que é extremista muito distorcida, porque as mesmas pessoas que acham que é extremista propor uma reforma tributária progressiva, por exemplo, são aquelas que não acham extremistas posições de simplesmente deixar numa sociedade como a brasileira o mercado agir livremente, acham que isso é uma posição equilibrada, quando, na verdade, nenhum país do mundo, nem no centro do capitalismo financeiro mundial, isso é o debate feito hoje”, diz.
A economista também avalia os motivos que levaram o Brasil a vivenciar o que chama de um “milagrinho econômico” entre 2006 e 2010, porque foi um equívoco do governo Dilma Rousseff adotar em seu primeiro mandato a “Agenda Fiesp” — calcada em benefícios fiscais para as grandes empresas –, como caminho que o Brasil deveria seguir para sair da longa crise econômica em que se encontra.
“O que eu aponto no livro é a compreensão de que temos desigualdades históricas, carências históricas, que vão desde a estrutura básica, saneamento, desigualdade de renda, desigualdades regionais, carências de acesso à saúde, acesso à educação pública. Essas carências históricas, num país do tamanho do nosso, também se apresentam como uma oportunidade para um programa econômico que vá funcionar, que é aquele que enxerga essas carências como o próprio eixo de investimentos públicos, de crescimento econômico”.
Qual é o teu envolvimento com a campanha do Guilherme Boulos?
Na verdade, o que eu fiz foi uma consultoria nessa fase inicial de sugestões e elaboração de uma proposta de programa na área de economia. A metodologia que foi estabelecida é que isso não define como será de fato o programa. A gente, num grupo de trabalho de economia, fez reuniões com uma série de economistas e representantes do partido, a maioria acadêmicos. A gente se organizou por temas, fizemos as reuniões para cada tema, chamamos especialistas em determinados temas. No final, compilamos um documento num formato bastante enxuto, mas um documento que tem um diagnóstico e um conjunto de propostas e entregamos esse documento, que vai ser apresentada em plenárias — que vão acontecer também para saúde, educação, são 17 grupos de trabalho. O nosso, a gente vai apresentar no dia 9 de julho, em São Paulo, e daí a etapa que segue, o que será feito desse documento, já é um debate que será do partido, não está claro para mim exatamente. É muito provável que o programa e aquilo que o candidato no final vai defender não seja exatamente aquilo que o nosso GT propôs. Então, a minha participação se encerra agora.
Sim, mas tu tem sido identificada como a “economista” do Boulos…
Eu não tenho me identificado como a economista do Boulos, as pessoas que estão me identificando.
Hoje em dia todos os pré-candidatos têm o “seu economista”, a Marina Silva tem o Gianetti, o Bolsonaro tem o Paulo Guedes…
Sim, é verdade, porque eu justamente aceitei coordenador esse grupo que está fazendo essas propostas. Mas eu não sei muito bem o que é o “economista do fulano”, porque mesmo nesses casos que você deu como exemplo, na prática, tem candidato que tem vários economistas. Aquilo que o candidato diz não é exatamente o que o economista falou. Então, eu tenho evitado me colocar nessa posição, porque eu acho que o candidato tem ideias próprias, o programa econômico que será o final vai contar com todo um debate interno ao partido. O que eu digo é aquilo que eu penso, portanto não falo por ninguém a não ser pelas minhas próprias ideias. E acho que esse é o caso de vários economistas que estão sendo atribuídos a candidatos e, na prática, só estão aceitando ajudar.
Mas tu acreditas que essa tua participação no programa econômico ajuda a ter um respaldo à candidatura? Porque a gente sabe que o Boulos é visto por muita gente como um extremista, pelo establishment, especialmente. Tu, por ser uma economista conhecida, professora da USP, ter todo uma trajetória, apesar de jovem, dá um respaldo de que ele não está propondo nenhuma “revolução”?
Eu acho que a sociedade, infelizmente, tem essa visão do que é extremista muito distorcida, porque as mesmas pessoas que acham que é extremista propor uma reforma tributária progressiva, por exemplo — as coisas que o Guilherme está falando por aí, que tem muito a ver com justiça social –, na prática, são aquelas que não acham extremistas posições de simplesmente deixar, numa sociedade como a brasileira, o mercado agir livremente, acham que isso é uma posição equilibrada, quando, na verdade, nenhum país do mundo, nem no centro do capitalismo financeiro mundial, isso é o debate feito hoje. Aí tem um problema que independe de quem é o economista, se tem economista ou não tem, o candidato tem feito propostas que são radicais no bom sentido, de promover a transformação social num país como o Brasil, e as pessoas que acham que isso é, de alguma maneira, extremista querem preservar no Brasil uma estrutura de desigualdade que, ao meu ver, nos aproxima da barbárie. Isso independe do programa e de quem é o economista, não acho que vou conseguir resolver esse problema ao apresentar propostas concretas, porque a visão que eu tenho já é uma visão de transformação profunda do sistema econômico, sempre, nas posições que defendi publicamente.
É possível construir uma política econômica para o Brasil que não seja essa que temos hoje, que é da visão hegemônica do mercado, simbolizada no Henrique Meirelles?
Eu acho que é. Do ponto de vista econômico, é muito viável. O que eu aponto no livro é a compreensão de que temos desigualdades históricas, carências históricas, que vão desde a estrutura básica, saneamento, desigualdade de renda, desigualdades regionais, carências de acesso à saúde, acesso à educação pública. Essas carências históricas, num país do tamanho do nosso, também se apresentam como uma oportunidade para um programa econômico que vá funcionar, que é aquele que enxerga essas carências como o próprio eixo de investimentos públicos, de crescimento econômico. Claro que isso passa por uma reforma profunda do sistema tributário, que também pode gerar arrecadação para que esses investimentos ocorram. Eu acho que, quando a gente olha para qual é a situação, a sociedade sabe muito bem o que ela precisa, quais são as demandas mais urgentes e concretas. Um sistema de transporte urbano, moradia, saneamento básico, educação, saúde. Se você mapeia isso e coloca dinheiro nessas coisas, o poder que isso tem de não só gerar emprego, renda, arrecadação pro estado, como também gerar inclusive o desenvolvimento de setores produtivos, de tecnologias nacionais, é enorme. O problema é que a política econômica tem sido dominada por interesses particulares de grupos de alto poder econômico, não só no setor financeiro, mas também no setor industrial, vamos dizer, que acabam moldando a política para interesses que não são os do conjunto da sociedade.
Pois é, quando a gente fala de política econômica, muito se fala do ponto de vista financeiro e se deixa de lado essa questão dos investimentos. Não se faz esse diálogo de que investir em saneamento básico é economia, de que investir em obras é economia. Por que isso acontece?
Então, há uma tentativa recorrente de associar aquilo que está ocorrendo com o mercado financeiro, se a bolsa está caindo ou subindo, àquilo que está acontecendo com a economia real. Tenta-se vender muitas vezes a ideia de que se a Bovespa subiu, a economia está bem. Se a Bovespa caiu, a economia está mal. E, na verdade, a relação entre essas coisas não é tão estreita assim. A gente vê em muitos momentos em que a bolsa sobe… Isso acontece, inclusive, em 2008, nos Estados Unidos. A bolsa se recupera muito rapidamente e a economia real, as taxas de desemprego continuam elevadíssimas durante muito tempo. A recuperação da economia real é muito mais lenta, os movimentos são mais lentos, e sempre há uma tentativa daquelas pessoas que estão mais envolvidas com o setor financeiro de tentar trazer a ideia de que setor financeiro é algo que necessariamente, vamos dizer, está atrelado à própria dinâmica que interessa para as pessoas.
Sim, que o que seria bom para o mercado seria bom para a população.
Não é assim que acontece. A gente vê que não é assim, muito pelo contrário. Acho que faz parte de uma proposta de qualquer programa, vamos dizer, progressista-econômico, o País ficar menos refém desses movimentos. Agora, nós estamos sofrendo mais um choque externo bastante grande, não só nós, vários outros países emergentes. E, sempre que alguma coisa acontece lá fora, a gente vê rapidamente contaminando os mercados financeiros, a gente vê o dólar que valoriza muito rápido, isso gera impacto na inflação, os juros começam a subir. O problema é que não só o mercado não traz necessariamente benefícios para o conjunto da economia, como ele também, às vezes, prejudica a economia real por ser demasiado volátil e pelo tamanho da especulação financeira que está envolvida. Então, [é preciso] regular bem esses mercados, regular esses fluxos de capitais que entram e saem do País num curtíssimo prazo, em busca de retornos muito rápidos, que não são investidores que estão construindo uma empresa aqui, ou algo permanente e de longo prazo, são investidores que entram e saem no mesmo dia. Se você não reduzir a volatilidade desses fluxos, regulando e taxando esses fluxos na entrada e na saída, você vai ter sempre esse grau de vulnerabilidade que, não interessa, você pode ter o melhor dos programas, você pode ter o melhor dos objetivos, mas vai continuar sujeito e só vai conseguir implementar quando o cenário externo ajudar.
Mas é a realista a implementação de políticas que libertem o Brasil de ser refém desse sistema? Que tipo de medidas poderiam ser tomadas?
Olha, o próprio FMI tem discutido medidas nesse sentido. Então, tem vários países do mundo fazendo isso. Inclusive, o Brasil implementou durante o governo Dilma, por exemplo, medidas de taxação na entrada. IOF sobre determinados conjuntos de operações financeiras, que ajudou na época a frear o movimento de entrada maciça de capitais por aqui, o que estava sendo chamado pelo Guido Mantega na época de “guerra cambial”. Só que não se taxou na saída. Se fez esse controle de forma assimétrica. Então, existe uma série de propostas de economistas que trabalham muito com esse assunto que são implementadas em outros países para tornar esse fluxos menos voláteis. O Brasil tem uma das moedas mais voláteis do mundo, porque está sujeita a um nível de especulação muito maior, muitas vezes até coordenado. O CADE descobriu que tinha cartéis envolvidos nessas especulações.
Tem como explicar de uma forma simples, para pessoas totalmente leigas, qual é o impacto da especulação financeira para a economia real?
Um deles é isso que estamos vivendo agora. Estamos com uma economia ainda numa crise muito grave, vemos que os empregos não foram recuperados, estamos na mais lenta da história das recuperações de crises brasileiras, e ainda assim o Brasil teve que interromper a queda na taxa de juros básica, que vinha caindo, porque a inflação, dado o tamanho da crise, já estava abaixo do piso. Por quê? Porque os Estados Unidos, o banco central norte-americano, criou expectativas de elevação da taxa de juros lá. E só uma pequena expectativa de que a taxa de juros vai subir em outro país e mudanças no ciclo internacional rapidamente levam esses capitais de curto prazo para fora dos países, vamos dizer, periféricos, para o centro do capitalismo financeiro. Isso acontece de forma recorrente. A consequência é que, a taxa de juros então, independente do que está acontecendo aqui dentro, passa a ter que subir ou se manter para atrair capital externo para impedir que esse choque se propague, para impedir que isso acabe gerando uma inflação maior. Ao contrário do que se diz, o regime de metas brasileiro não está usando o instrumento taxa de juros para controlar a inflação, pelos mecanismos tradicionais de diminuir crédito para desaquecer a economia. Ele, na verdade, está tendo que responder sempre a esse tipo de movimento de capital daqui para fora, de lá para cá, e quando o sistema externo ajuda, a gente cumpre a meta da inflação. Quando o sistema externo não ajuda, a gente não cumpre. Ao contrário do que se diz num manual de economia, esse regime regime claramente não está funcionando da maneira como deveria.
Não está trazendo a estabilidade prometida?
Não está trazendo essa estabilidade, por quê? Porque o grau de globalização financeira e o tamanho dessa financeirização que atinge diversas dimensões — estou dando uma delas, que é a especulação com a moeda e entrada e saída de capitais — está tirando a autonomia dos países em suas políticas econômicas, por isso que o FMI está discutindo atualmente controle de capitais.
Tu falaste em investimento interno, mas a pergunta que sempre se faz é: de onde vai sair esse dinheiro para investimentos em saneamento, etc?
Tem um primeiro ponto de que o orçamento de um país não é igual ao orçamento de uma casa. Então, ao contrário de uma casa em que não há nenhum controle sobre a arrecadação, sobre aquilo que é a renda, a pessoa sabe quanto ganha e tem que se adaptar a isso. No caso de um país, o governo federal tem algum controle sobre aquilo que ele ganha, em alguma medida. Por quê? Porque o quanto ele arrecada de impostos depende das alíquotas que ele está cobrando e depende também do próprio crescimento da economia, do sucesso das políticas que ele implementa. Então, quando eu penso num plano de investimentos públicos, penso em duas coisas. Por um lado, no curto prazo, dado que a gente está com um problema fiscal de curto prazo, que, aliás, não parece estar preocupando muito, agora as pessoas estão mais preocupadas com outras coisas, mas, vamos dizer que isso seja uma preocupação, a gente tem como fazer uma reforma tributária que gera, num primeiro momento, facilmente, não estou falando nada de muito radical, mas de convergir para alíquotas de imposto de renda, tributação de dividendos e de herança que os EUA hoje implementam, tá, não estou falando de Suécia. Convergindo para a estrutura de tributação de renda e patrimônio dos EUA, você já geraria muito facilmente 2% do PIB de arrecadação de cara, o que seria mais do que suficiente para zerar o nosso déficit primário e realizar investimentos que, por sua vez, geram crescimento e com isso a dívida/PIB no médio prazo. É claro que aí, o ideal, é que essa reforma venha com uma redução de outros impostos sobre o consumo, sobre a produção. Na prática, depende da sociedade escolher qual é a carga tributária que ela quer ter. Mas, mais importante do que o tamanho da carga, o Brasil tem uma arrecadação de impostos em relação ao PIB mais baixa do que a média dos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], mas ela ainda é, em termos de per capita, mais baixa ainda. O problema é que ela é muito mal distribuída. Se você distribuir de outra forma e aumentar um pouco a arrecadação inicialmente, você consegue realizar esses investimentos.
Pois é, existe de certa forma um consenso na sociedade sobre a necessidade de uma reforma tributária. No Fórum da Liberdade, todos os candidatos da direita defendiam uma reforma e geralmente existe uma certa convergência de que tem que diminuir a taxação sobre o consumo e aumentar na renda.
É, essa convergência é nova.
Eu queria te perguntar o que impede, então, uma reforma tributária progressiva de sair do papel?
Bom, primeiro que tem gente que diz e não atua para isso. Então, me parece que essa eleição é a primeira em que esse debate se tornou central, não foi esse o caso nas últimas várias eleições. E acho que se tornou central porque há uma compreensão cada vez maior na sociedade que essa política de ajuste fiscal realizada por meio de gastos sociais e de investimentos públicos tem, na verdade, prejudicado muito mais os mais pobres. Acho que essa compreensão maior está obrigando as candidaturas a, de alguma maneira, tratarem do tema da justiça social. E aí, como do lado dos gastos muitos deles continuem defendendo que se corte em saúde, em educação e outros, a mudança de foco foi para o lado da tributação, e que bom que pelo menos esse tema tem sido discutido. Mas me parece que o Congresso hoje ainda está vetando até o fim das desonerações que ajudaram determinadas empresas no passado. Quer dizer, você não está conseguindo nem fazer aquilo que esse governo já está propondo do ponto de vista de mudar o sistema de tributação, que dirá tributar os mais ricos. A gente sabe que os mais ricos no Brasil têm, de alguma maneira, travado esse tipo de mudança, mas acho que estamos no caminho certo.
Dá para dizer que essa carga não é mudada porque tem muita gente ganhando com isso e são os poderosos, a elite econômica que se aproveita desse modelo?
Eu acho. E acho que isso não é só o caso do Brasil, é no mundo. O [economista, Thomas] Piketty, por exemplo, escreveu um best-seller propondo uma nova forma de tributação, porque a desigualdade nos países ricos aumentou muito nas últimas décadas. Por que a proposta do Piketty, ouvido por milhões de pessoas no mundo, não são implementadas nos países ricos? Porque, claro, você está tratando de redistribuição da renda do topo para a base. Redistribuir renda do topo para a base é das coisas mais difíceis de você fazer politicamente e fica mais difícil quanto mais concentrada for essa renda. Então, há uma coisa que se chama “paradoxo de Robin Hood” na economia, que é, ao contrário do que você poderia desejar, países mais desiguais tendo um orçamento público que faz mais distribuição da renda, o contrário. Quando você olha para os países mais desiguais, aqueles que têm a tributação menos justa, os gastos menos importantes na redistribuição da renda, reforçando a própria a desigualdade. Isso se dá, claro, porque quando você tem uma estrutura de desigualdade muito grande herdada, o poder econômico está tão concentrado na mão de poucos que você tem muito impacto desse poder sobre o sistema político e no próprio desenho do Estado.
E é por isso que o Brasil não conseguiu nem implementar a CPMF, que seria o imposto que mais afetaria os grandes…
E, na verdade, nem é um imposto progressivo, no sentido de que não redistribui renda.
Mas pega mais o cara que faz uma grande transação do que aquele que só troca dinheiro vivo.
Pois é. Inclusive, se criou uma coisa anti-imposto e muitas vezes a própria sociedade se confunde nesses temas, achando que aquilo que é o interesse. Pensando nos patos da Fiesp, que era uma campanha “não vou pagar o pato”, uma campanha anti-imposto explicitamente. Começou assim, claro que foi ganhando outros significados. Mas aquela campanha já mostra que setores do empresariado nacional tentam criar a impressão para a sociedade de que está todo mundo no mesmo barco, de que a tributação de um e de outro é a mesma, e o Estado passa a ser o inimigo, quando, na verdade, tudo tem a ver com conflitos distributivos sobre o orçamento público. Uma mudança que atende a maioria vai ter que necessariamente prejudicar uma minoria, e uma minoria que tem muito dinheiro e paga muito pouco imposto, mas acho que o debate melhorou muito nesse aspecto e as pessoas estão cada vez mais conscientes de que quem paga imposto no Brasil são os mais pobres mesmo.
Logo na abertura do Valsa Brasileira, tu pondera que alguns economistas consideram que o período que tu chama de “milagrinho econômico” foi uma ilusão. Foi mesmo? Como tu avalia?
Não, é verdade que aquele crescimento só aconteceu da maneira como aconteceu, com controle inflacionário, com controle das contas públicas, com as bases de ao mesmo tempo expandir investimentos públicos de forma significativa, com o PAC, com aumento dos gastos oficiais, do salário mínimo, sem prejudicar nenhum dos outros indicadores, porque havia um cenário externo favorável. No livro, eu dou bastante enfoque para qual foi o papel da economia internacional em facilitar aquele processo. Por outro lado, me parece que houve já em muitas outras situações momentos externos favoráveis que não foram aproveitados para distribuição da renda e para dinamizar o mercado interno da economia tal como foi feito entre 2006 e 2010. E, como eu mostro, ao contrário do que se coloca muitas vezes no debate econômico, não foi só um movimento de crescimento do consumo das famílias. Na verdade, os investimentos das empresas cresceram mais do que o consumo das famílias no período que vai de 2006 a 2010, e os investimentos públicos, em infraestrutura e todas essas coisas que têm efeito no crescimento também de longo prazo. Então, eu não acho que foi uma ilusão. O que eu acho é que faltam elementos que pudessem dar sequência a esse crescimento. Mas, além disso, se substituiu a política por outra, em 2011, que, na minha opinião, fracassou.
Antes de entrar na questão da mudança de economia. Na tua opinião, quais foram os acertos desse período?
Eu acho que o principal foi entender que, numa economia continental e desigual como a do Brasil, o mercado interno e o combate à desigualdade podem e devem funcionar como motor de crescimento da economia. Então, o pilar dos investimentos públicos, a forte expansão de investimentos públicos e de infraestrutura física e social, que inclui aí saúde e educação, combinado ao processo de redistribuição de renda na base da pirâmide, que fez com que trabalhadores menos escolarizados fossem incorporados no mercado de trabalho, sobretudo em setores de construção e serviços, o que fez crescer muito, não só o número de vagas e empregos formais, mas também em termos de salários para os trabalhadores, na média, ajudando a movimentar também o mercado interno. E, finalmente, o pilar do acesso crédito, que na verdade também acabou complementando esses outros dois pilares nesse dinamismo maior do mercado interno. Acho que essa coordenação, sobretudo o investimento público e distribuição de renda, porque crédito é algo que acaba a longo prazo tendo efeito limitado, porque as famílias vão se endividando e isso acaba prejudicando depois, acho acertado entender que os pilares são, vamos dizer, o motor correto de crescimento de uma economia como a nossa. Agora, há erros também.
Quando começaram os erros e quais foram os principais?
Eu acho que já há dois erros principais no próprio processo de crescimento do que eu chama de “milagrinho”. Primeiro, não se faz a redistribuição de renda do topo para a base da pirâmide, o 1% mais rico mantém a sua parcela de renda nesse período, então não se enfrenta conflitos distributivos. Se utiliza uma ideia de que só o cenário externo favorável permite um cenário de ganha-ganha, o que acaba prejudicando a capacidade de continuar promovendo a distribuição de renda depois, quando você passa a ter a desaceleração. Além disso, você tem um erro que é não ter feito políticas para desenvolver a estrutura produtiva do País, diversificar isso ao mesmo tempo em que realizou aquele processo. Eram desafios e limites que estavam colocados em 2010, mas o que se fez, na verdade, foi mudar a política econômica e adotar o que eu chamo de “Agenda Fiesp”, que foi uma política que tentou favorecer setores industriais para tentar estimular os investimentos privados. Isso acabou não funcionando para gerar esses investimentos e teve um custo alto, porque acabou também contribuindo para limitar o espaço no orçamento dos investimentos públicos, que ficaram estagnados no período de 2011 a 2014.
Hoje tanto a direita quanto a esquerda falam dessa “Agenda Fiesp”, criticam a chamada política de campeões nacionais. Mas, dessa forma, parece que isso partiu da cabeça da Dilma, que ela inventou enquanto todo mundo sabia que ia dar errado, quando na verdade não foi bem assim que aconteceu, foi uma pressão que existiu na época para que ela adotasse essa política econômica.
Eu acho que há os dois lados. Eu acho que há demanda. Justamente quando eu chamo de “Agenda Fiesp” é para mostrar o papel que essas associações patronais e setores do empresariado tiveram e colocaram para o governo. A gente identifica que inclusive as medidas tomadas estavam todas em documentos propostos. As desonerações, o controle de tarifa de energia elétrica, a desvalorização do real, isso tudo estava nas demandas que a própria Fiesp, junto com as centrais sindicais, tinham feito no início do governo Dilma. Por outro lado, acho que havia sim uma convicção de que era necessário desenvolver a indústria do País e aí acho que houve a percepção equivocada de que fortalecer a indústria necessariamente significaria favorecer esses setores que estavam na estrutura produtiva, vamos dizer, desenvolvida nos anos 1970 ou antes, mas que talvez não sejam setores que a gente quer ver numa estrutura produtiva do século 21. O exemplo do setor automobilístico é o mais claro. Mas, enfim, acho que houve os dois lados. E houve também o Congresso, que acabou estendendo as desonerações para todos os setores da economia, praticamente.
Nesse sentido. Essa pressão do grande empresariado, representado na Fiesp, vai existir sempre. De certa maneira, é isso que influenciou a reforma trabalhista que a gente teve no governo Temer. Como é que um governo de esquerda, especialmente, pode resistir e não se submeter a essa agenda?
Eu acho que tem uma série de medidas que vão desde um planejamento, porque, quando você não tem planejamento, fica menos vacinado para esse tipo de pressão. Se você, por exemplo, orienta que o seu programa de investimentos públicos e que os seus programas de financiamento estarão destinados para aquelas que são as maiores demandas da sociedade. Por exemplo, uma rede de transporte urbano qualificada, saneamento básico, infraestrutura básica, enfim, a gente sabe muito bem quais são os maiores problemas brasileiros. Se a gente orienta todo o esforço, o desenvolvimento dos setores produtivos para essas que são áreas prioritários, isso inclui tecnologia verde, inclui complexo industrial da saúde, encadeado pelos serviços de saúde pública, se você orienta para essas áreas que atendem a maioria da população, acho que você se preserva contra essa tentativa de direcionar a política para interesses que são restritos de grupos particulares. Esse é o primeiro ponto, um bom planejamento da política que não tenha como fim o desenvolvimento da indústria ou de determinados setores da indústria, mas o atendimento de demandas que a sociedade tem por melhores serviços, por exemplo. Isso é uma coisa que você conquista com esses mecanismos do próprio sistema político, de tentar fechar essas portas. E inclusive você tem, no setor público, uma porta giratória, em que pessoas do setor privado vão trabalhar no alto escalão e isso costuma piorar essa estrutura de defesa dos interesses privados dentro do governo.
Tu avalias que a população está bem informada sobre os motivos que levaram o País à crise econômica?
Olha, eu acho que a população brasileira está muito consciente de que a situação dela piorou e de que a agenda que está sendo implementada não está gerando os resultados prometidos. Acho que isso é evidente nas pesquisas de opinião. Agora, eu acho que uma crise desse tamanho se explica por razões muito complexas e que eu tento trabalhar no livro, que tem elementos internos e externos, elementos políticos e macroeconômicos. É claro que a população não participa, inclusive porque ela é bloqueada pelo uso de linguagens econômicas inacessíveis, do debate sobre essas causas. Aquilo que tem sido apontado como causa da crise, que é, por exemplo, qualquer tentativa de distribuir renda ou de ter o Estado com um papel pro crescimento econômico, está fadada ao fracasso.
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‘A redução de desigualdades não é apenas uma questão econômica, é uma questão civilizatória’. Entrevista com Laura Carvalho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU