10 Mai 2018
Em 2001 doutorou-se cum laude com a primeira tese realizada na Europa sobre a literatura concentracionária, a qual explora a dificuldade da linguagem para transmitir o horror dos campos de concentração. O catalão Serrano Blanquer falou sobre sua análise dessa experiência limite e dos aspectos menos conhecidos, como a rebeldia.
Nascido em Barcelona, o doutor em Filologia David Serrano Blanquer é professor da Faculdade de Comunicação da Universitat Ramon Llul, expertise na Shoá e na repressão franquista. Se especializou no estudo do testemunho dos sobreviventes do Holocausto, e para esse fim realizou em torno de duzentas entrevistas. É fundador e diretor do Cilec (Centro de Investigação da Literatura Europeia Concentracionária) e autor de diversos ensaios: Un cadáver en el espejo: las mujeres en los campos nazis (2004); Españoles en los campos nazis (2004); Un cadáver en el espejo. La Odisea de Juan Camach: Gador, Mauthausen, Montevideo (2011); Isaac Borojovich y la memoria uruguaya de la Shoa (2013), entre outros. Produziu os documentários Juan Camacho: Barcelona, Mauthausen, Montevideo (2008); Giza, la niña de la maleta (2013); Menazca (la cacerola) (2015); e Ousman, el pájaro libre de Ghana (2018).
A entrevista foi feita por Federico Pavlovsky, publicado no Página/12, 07-5-2018. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Uma particularidade da tua tese de doutorado tem a ver com o estudo que chamastes “literatura concentracionária”, um coletivo de escritores como Amat-Piniella, Primo Levi, Jorge Semprún, Paul Celan, Imre Kertész, Elie Wiesel, Enzo Traverso e Paul Steinberg. Como se relacionam com o testemunho? Descrevem ou ficcionalizam?
O cânone concentracionário, carente de uma visão feminina, emerge com potência para colocar sobre a mesa de modos distintos uma experiência limite, com afluentes familiares, sociais, políticos, etc. Os mecanismos são diversos, porém já Wiewiorka sugere que o relato “em bruto” é indigerível. A maioria dos citados tem em comum sua paixão pela palavra, pelo uso de mecanismos próprios da ficção (partindo do conceito de reconstrução do relato) para poder se comunicar, se justificar, e de onde o poder da metáfora e as referências culturais (Dante, Bíblia, etc.) são constantes para poder oferecer uma resposta à provocação aforística de [Theodor] Adorno — “É impossível escrever poesia depois de Auschwitz”, no que se refere somente ao uso da linguagem habitual, não que não seja dizível. Demonstram a “dizibilidade” do horror, como fez [Joseph] Conrad em Coração das Trevas. Uma luta consigo mesmo para compreender a experiência sofrida, ante o ato de transmiti-la, comunicá-la. Nesse trânsito é onde se constrói uma nova linguagem, baseada nas novas imagens, novas metáforas e velhos recursos retóricos.
O campo de Mauthausen se situa como um cenário central na vida dos republicanos reclusos nos campos de concentração. Estiveram submetidos em torno de 7500. O que foi Mauthausen?
Mauthausen é para o imaginário dos republicanos o que Auschwitz é para a memória judia. Junto com Ravensbrück, o campo de mulheres, é o recinto emblemático da presença republicana, onde ocupam os lugares administrativos que permitem um certo grau de organização clandestina, que permitem favorecer os kommandos (equipes) de trabalho aos que podem ser destinados. Inclusive temos o caso de César Orquín, um líder anarquista que consegue convencer as autoridades nazistas para que o deixem administrar um kommando de trabalho externo formado exclusivamente por republicanos, e onde estará Amat-Piniella. Um caso único, controvertido, porém exemplar. Ravensbrück, por sua parte, nos permite conhecer a organização feminina, singular pela rapidez que sabe ler as leis do campo, com Neus Catalá como referente, que inclusive chega a organizar greves de fome para exigir melhoras, que montam a sabotagem da linha de fabricação de armamento. E que se vinculam emocionalmente em forma de famílias, para redistribuir melhor alimentos, medicamentos ou afeto, sobretudo afeto, algo impensável no coletivo masculino.
A figura de Joaquín Amat-Piniella, poeta e escritor, parece um personagem central da tua pesquisa. Prologou e editou sua novela acerca de suas vivências em Mauthausen (K.L Reich), que foi escrita entre 1945/46, porém recém-editada em 1963 pela censura. Também de uma maneira surpreendente você deu uma maleta cheia com seus poemas inéditos (Las lejanías. Poemas en el exilio: 1940-1946) que sua família guardou sem abrir durante mais de sessenta anos e que editaram recentemente em catalão. É um fenômeno enorme para a literatura concentracionária porque são escritos dentro do campo.
“Las Lejanías” é uma antologia de poemas única dentro do universo concentracionário nazista, o maior volume de poemas escritos dentro de um campo. Onde o motor para a sobrevivência é poder escrever poemas de amor a sua esposa, a qual conheceu por carta no front mediterrâneo da guerra civil.
Você utiliza de Primo Levi o conceito de “maioria silenciosa”. Parece chave para entender alguns acontecimentos históricos no marco da política de extermínio, porém também para compreender a dinâmica atual do ressurgimento dos grupos neonazis na Europa.
Sem uma maioria que não desaprove a deriva totalitária e, portanto, a repressão violenta, não é possível que triunfe nenhum sistema totalitário. As frustrações, os medos, a possibilidade de prosperar, rendem-se ante a injustiça e a violência, e é algo que rebela Primo Levi, porque este coletivo nunca antes esteve ante o foco da parte vitimada, pela colaboração necessária. E certamente nem todo mundo pode ser herói ou precisa ser mártir. Aí está a complexidade entre permitir e se opor.
A morte parece ser o tema central da literatura concentracionária, porém também surgem temas tangenciais como a dimensão do tempo, a comida, as rebeliões que aconteceram nos campos como Treblinka e Auschwitz, que são desconhecidas pela maioria, o sexo, a homossexualidade, a humilhação constante.
O controle do tempo é fundamental: o passado desaparece (não podem ter fotos), o presente é líquido (relógios proibidos) e não há mais futuro que a fumaça das chaminés. Somente um presente constante impossível de controlar. A comida que se dá não basta, tem que conseguir mais. Roubar, intercambiar, precisa ter habilidades/capacidades para isso. Quem não tem logo falece. O sexo é tabu, a prostituição como forma de salvação também é. A maquinaria contra a homossexualidade, pura hipocrisia. Houve uma reação contra as vítimas muito destacável apesar das enormes dificuldades. As revoltas de Auschwitz e Treblinka foram atos meticulosamente heroicos. Membros dos sonderkommandos, grupos judeus encarregados das câmaras de gás, se rebelaram quando tiveram alguma possibilidade de sair com vida. Morreu a maioria, porém não quiseram perder a dignidade última, depois de considerarem que colaborar no assassinato de suas famílias e na matança coletiva, como no caso dos Judenrat, já não tinha mais recursos, como fez Czerniaków no gueto de Varsóvia. É muito interessante o relato do membro do sonderkommando de Auschwitz, Zalmen Gradowski, o olhar dele que perece, o verdadeiro testemunho segundo Lanzmann. Houve muitos atos heroicos nos guetos e nos campos de extermínio, gente que superou o medo, e a impossibilidade de ter pais e filhos dependentes, para tentar salvar algo da vida e da dignidade. Como Rajchman, que depois viveu no Uruguai, um dos poucos sobreviventes. A sobrevivência e todos os matizes centram os temas primários dessa literatura de Treblinka.
Em Ebensee, onde os nazistas trasladaram com uma marcha da morte aos presos procedentes de Mauthausen, os catalães lideraram a recusa de introduzirem-se nos túneis de onde iam ser descartados. Eles salvaram todos. A sobrevivência e todos os matizes centram os temas primários dessa literatura. Ainda que haja outros, que surgem da reflexão prévia à reconstrução do relato: o remorso. Os parâmetros morais do mundo exterior do campo se enfrentam aos fantasmas morais do mundo interior do campo (um bom exemplo é Román Frister). São dois eixos que majoritariamente resultam contrapostos, apesar de serem falsos dilemas: as dinâmicas internas estão pesadas para destruir toda forma de moralidade, e para sobreviver muitas vezes é necessário deixar em “pausa” a moral exterior. As normas internas funcionam por outros canais, não são equiparáveis, dali o remorso próprio da cultura judaico-cristã, os suicídios incontáveis (Celan, Levi, Améry... por emblemáticos). O outro Eu não deixa de nos recordar o que temos visto, sofrido, tido que fazer...
Jorge Sempún, 17 anos, depois de ser libertado do campo de concentração de Buchenwald, escreveu: “Tenho que fabricar vida com tanta morte”.
Semprún demorou 17 anos para poder afrontar o horror de Buchenwald. Outros tardaram mais de sessenta. Muitos nunca contaram. Curiosamente o faz no seu primeiro livro “El largo viaje” somente durante as quatro noites que esteve no comboio que o levou ao campo. Antes teve que reconstruir sua existência, como nos contou em “La escritura o la vida”. E a dor da recordação era tão imensa que precisou inventar um companheiro de viagem, o menino de Semur, para não afrontar solitariamente essa viagem ao seu passado.
Nos campos se produziram um fenômeno orquestrado à perfeição da desumanização: desde a chegada tinha que se despir, afeitar todo o corpo, após havia desinfecção e a assinatura de um número, se dormia no chão, lotado, com dezenas, centenas de outras pessoas. Vários relatos contam que os que sobreviveram desenvolveram um tipo de processo psíquico onde desaparece a vida solidária e predomina um instinto de sobrevivência em estado puro, onde cada um tira do seu interior aquilo que tem de egoísta. Me faz pensar em Viktor Frank, quando disse “não sobrevivemos os melhores” e também em todos aqueles que sobreviveram, porém em seguida se mataram, como Primo Levi, Paul Celan ou Jean Amery.
As leis dos campos se constroem na base a que denomino de azar cientificamente organizado. Para lhes fazer frente, a manutenção do espírito humano é imprescindível. Certos parâmetros culturais tornam-se peças fundamentais: recitar poemas, receitas de cozinha, banhar-se cada dia, apesar de tudo, pentear-se, fumar algum tipo de cigarro (a preço de ouro), escrever. Perder essas rotinas que te vinculam à condição humana levam inexoravelmente à alienação, à desumanização, em dois sentidos: se converter em “morto-vivo” (Semprún) ou “muçulmano”, destinado à morte, ou embrutecer-se moralmente (participar da maquinaria de destruição nazi). As lutas pela explicação de Levi se tornam inúteis ao fim, a demasiada morte na sua vida, parafraseando a Semprún. Os dois têm em comum o conceito de testemunho ligado ao que eu chamo de síndrome de Sísifo e de Penélope, respectivamente.
Outra figura do teu trabalho de investigação é a odisseia que viveu o republicano Juan Camacho Ferrer, que esteve detido quatro anos em Mauthausen e depois de ser libertado emigrou ao Uruguai. Neste país, que foi um dos que mais sobreviventes acolheu, contatou-se a Isaac Borojovich e Giza Alterwajn. Estudou, escreveu e filmou essas três histórias.
O mundo audiovisual permite chegar a um público ao qual os livros de ensaios acadêmicos ou as memórias não chegam. Existem histórias incríveis. Todas são, porém nem todos têm a capacidade de comunicá-las. E os três, de maneira distinta, a tem: Camacho como antifascista, até a morte, na Espanha, na França, na Bélgica, na Áustria e no Uruguai. Giza pela sua capacidade de esconder o horror das desaparições e encontrar a luz na sua irmã, não de sangue, que lhe cuidou durante a guerra e que a procurou 65 anos (como conto no livro El llanto de la maleta, 2017), e Isaac pela sua capacidade de resiliência, de superação, modelo para as novas gerações e com senso de humor. Não nos esqueçamos desse senso de humor que têm alguns sobreviventes, que lhes permite afrontar novas vidas, novas famílias com tantas perdas. Em frente, os que vivem com o medo sempre, agachados, incapazes de estabelecer vínculos emocionais sadios com o seu ambiente imediato. Todo um trabalho sobre as segundas e terceiras gerações.
Existem dois grupos de indivíduos que foram vítimas da solução final que são pouco mencionados na bibliografia dos campos: o povo cigano e os homossexuais.
São dois coletivos sem pátria e sem defesa. Os primeiros pelo seu nomadismo e sua escassa simpatia internacional. O segundo porque nas Alemanhas posteriores à Segunda Guerra Mundial continuaram perseguidos, havendo até 47 mil novos casos até 1967...
Na tua própria família existem alguns exemplos, como o do teu avô, de pessoas que estiveram detidas em campos de concentração franquista e que decidiram não falar nunca do que viveram. Tua busca acadêmica e pessoal está a serviço da memória, de tentar colocar em palavras e imagens o indizível e que perdure o testemunho. Como se a memória fosse frágil. Como se pensasse, intuo, que o que parece impossível pudesse se repetir.
Minha família sintetiza a situação da memória da Catalunha e Espanha na segunda metade do século XIX. Por uma parte o avô materno, Josep Blanquer foi retaliado no Castillo de Montjuïc (onde foi exilado o President Companys) por católicos. Sua história se vincula à memória familiar oficial. Não obstante, Vicenç Blanquer esteve nos campos de concentração franquista e Juan Rabadá em Mauthausen, e formaram parte do silêncio da memória dos perdedores até hoje sem se colocar nenhuma dúvida. Mauricio Rosencof disse que a história é como um espiral que regressa sempre, ainda que não seja pelos mesmos caminhos. E a memória não é suficiente para parar o imparável, porém é necessária. Por decência, por reparação, por dignificação, por educação em valores democráticos, por justiça. Na Espanha é muito tardia e absolutamente necessária, porém não serviu para ajuizar a nenhum de seus responsáveis dos 15 mil republicanos que terminaram nos campos, nem aos que dirigiram a enorme repressão de mais de 14 mil assassinatos de violência de Estado uma vez o franquismo já instaurado, nem aos 500 mil republicanos dos campos de concentração e batalhões espanhóis. Ninguém. A memória se recupera parcialmente e tarde; se perde a batalha por justiça, para sempre.
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"Houve muitos atos heroicos nos guetos e nos campos de extermínio", afirma Serrado Blanquer sobre os campos nazistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU