03 Mai 2018
A indígena foi detida nesta domingo, 29, na frente dos dois filhos, por estar com o macaquinho de estimação da família enquanto vendia artesanatos no Parque Farroupilha, em Porto Alegre. Uma mulher, que segurava uma coleira com seu cachorro de estimação, a denunciou.
A nota é publicada por Conselho Indigenista Missionário-Regional Sul e Conselho Estadual dos Povos Indígenas/RS e reproduzida por CIMI, 02-05-2018.
Um grupo de Guarani Mbya da Aldeia Cantagalo reuniu artefatos – cestos, bichinhos esculpidos em madeira, pequenos objetos de arte – e seguiu para o Parque Farroupilha (conhecido como Parque da Redenção), em Porto Alegre/RS, no último dia 29 de, para vendê-los, como costuma fazer nos finais de semana. Teresa Gimenes, seus dois filhos pequenos e um de seus animais de estimação (um macaquinho bugio) seguiram com o grupo e se instalaram em um ponto da feira.
Enquanto vendia os objetos, Teresa foi constrangida por uma mulher, que também passeava com seu animal de estimação (um cãozinho), que considerou absurda a presença de um animal silvestre naquele contexto, junto às crianças. De imediato, a referida mulher procurou a Guarda Municipal de Porto Alegre e fez uma denúncia, alegando que Teresa estaria expondo à venda um “pequeno animal primata”.
Os agentes da Guarda Municipal dirigiram-se ao local e deram voz de prisão à Teresa, conduzindo-a, juntamente com as crianças e o bichinho, até a Superintendência Regional da Polícia Federal. Depois de várias horas, foi elaborado um Termo Circunstanciado e encaminhado ao juiz Federal do Juizado Especial Criminal Federal de Porto Alegre.
Por volta das 16h do domingo, dia 29, com a presença do cacique Werá Jaime, da comunidade do Cantagalo, e do advogado Henrique de Oliveira, Teresa foi liberada e pôde regressar para a sua comunidade, mas o animalzinho de estimação de seus filhos foi apreendido e levado a um abrigo para posteriormente ser entregue ao IBAMA. É necessário enfatizar que Teresa entende muito precariamente a língua portuguesa e suas crianças se comunicam exclusivamente em Guarani.
Para entender este acontecimento, é importante levar em conta as formas específicas de pensar e de dar sentido ao mundo dos Guarani Mbya. No quadro de referências de uma cultura urbana e ocidental, existe clara distinção entre esferas naturais e sobrenaturais, assim como entre humanos e animais. E numa perspectiva antropocêntrica, considera-se que o homem ocupa uma posição central e privilegiada frente aos outros animais.
Contudo, estas separações entre os mundos – os nossos, os dos animais, os de outros seres – não são dados objetivos, universais e consensuais para todas as culturas. Cada povo indígena dota as coisas do mundo com sentidos particulares, e produz outras formas de classificar, separar, distinguir, que nem sempre correspondem àquelas que se convencionaram como sendo da verdadeira ordem do mundo.
Para os Mbya Guarani, as relações entre pessoas e animais são cotidianas e rituais – os animais fazem companhia, alegram, dinamizam a vida, e eles também protegem e resguardam, numa dimensão espiritual, especialmente as crianças. Por isso, quando crianças transitam nos espaços urbanos, algumas vezes levam consigo seus animais de estimação e de proteção – incluindo espécies silvestres. A classificação entre espécies domésticas e silvestres é uma invenção cultural inserida na visão ocidental de natureza. Não se pode, desta forma, tomar como absolutas as distinções entre “tipos” de animais e “tipos” de ambientes que lhes caberiam “naturalmente”.
Mesmo para nós, essas separações não são absolutas – basta pensar que um macaco bugio em uma feira pareceu absurdo a uma mulher urbana passeando no parque com seu cão, mas um bugio preso em uma jaula, dentro de um zoológico, talvez não lhe soe assim tão estranho.
Numa aldeia Guarani, os animais – aqueles que existem no meio ambiente, incluindo macacos, papagaios, galinhas, cães, gatos, coatis, capivaras, pequenos roedores – integram a vida e o cotidiano das crianças e adultos. Eles circulam dentro dos espaços das casas, de escolas, de casas de reza e compartilham frutos e alimentos com as pessoas. A compreensão de que eles não possam sair para passear fora dos limites da aldeia (imposição de leis de proteção ambiental) é bastante relativa e problemática.
Dependendo, então, do ponto de vista, a presença do pequeno macaco pode parecer estranha – e, estando a família Guarani em atividade de venda de artesanato, pode parecer que este animalzinho estaria incluído entre os objetos de venda (e, desse ponto de vista, qualquer pessoa que leva consigo um cão para uma feira poderia também estar pretendendo vender seu animal). Um olhar diferente, porém, a cena denota simplesmente a presença de uma família que foi vender artesanato e não quis deixar para trás o animalzinho de estimação das crianças, seja porque ele ficaria desprotegido se não estivessem com elas, seja porque as crianças é que ficariam desprotegidas espiritualmente sem ele.
Este caso revela, de pronto, que o modo de ser dos indígenas não é reconhecido e respeitado, como estabelece a Constituição Federal. Mais uma vez, os povos indígenas não parecem ser vistos como sujeitos de direitos. No caso de Teresa, havia uma situação bem específica, já que ela domina pouco a língua portuguesa e repentinamente foi abordada e conduzida por homens que não conhecia. Teresa não pôde compreender imediatamente os motivos de sua detenção e, no seu entender, suas crianças e o bugio também foram agredidos, já que o animalzinho deveria ficar com as crianças e não ser engaiolado.
Esse acontecimento marca efetivamente que as relações com os povos indígenas ao longo das décadas se dá de forma truculenta, desrespeitosa e racista
A Constituição Federal, em seu Art. 231, estabelece as regras para as relações entre as culturas, e nela estão perfeitamente esclarecidas que devem ser reconhecidas as organizações sociais, os costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários que os indígenas têm sobre as terras que tradicionalmente ocupam, “competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
O Artigo 232 determina ainda que os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. Esse artigo impõe que os povos, comunidades indígenas e todos os seus integrantes sejam tratados e respeitados como sujeitos de direito.
Além das normas internas, o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e no seu Artigo 2° determina que os governos nacionais devem assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade. Essa ação deverá incluir medidas que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando as suas identidades sociais e culturais, os seus costumes e tradições, e as suas instituições. O Artigo 4° estabelece que medidas devam ser adotadas para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados, e que incluem os direitos de cidadania – tal como o de ir e vir, a liberdade de crença, etc.
Com estas garantias legais, resguardam-se ainda as formas como os indígenas utilizam os recursos naturais, formas estas que são compatíveis com seus usos e manejos tradicionais e que são regidas pelas lógicas próprias de cada comunidade indígena. Conforme menciona a procuradora federal Caroline Boaventura Santos, citando Luiz Fernando Villares[1]:
Dentro ou fora das terras indígenas, a produção consoante com a organização social, os costumes e tradições indígenas jamais devem ser limitados. A caça, a pesca, a agricultura de subsistência, a pecuária, o extrativismo e a produção de artesanato não podem sofrer restrições, pois são amparadas constitucionalmente.
Pode-se inferir, a partir desse argumento, que dentro e fora das aldeias o trânsito das pessoas e de seus animais de estimação não deveriam ser, também, constrangidos e limitados. Fica evidente, pelas normas brasileiras e internacionais, que os Povos Indígenas podem livremente exercer suas culturas, seus costumes e tradições e, por conseguinte, se a convivência com os animais faz parte do modo de ser do povo não compete ao Poder Público estranhar ou criminalizar estas relações. Não compete tampouco à sociedade envolvente fazer censuras ou impor regras, já que estas já estão expressas na legislação.
O fato de Teresa ter sido conduzida pela Guarda Municipal, com seus dois filhos pequenos, até a Polícia Federal revela o despreparo dos agentes e dos órgãos de segurança, mas fundamentalmente estampa a existência de um profundo preconceito contra aqueles que têm uma identidade cultural diversa daquela considerada hegemônica.
Requer-se, diante deste acontecimento, que haja da parte dos órgãos públicos, especialmente daqueles que exercem função peculiar de acompanhar, monitorar e fiscalizar os espaços de convivência entre comerciantes, artesãos, indígenas e outros grupos sociais, tais como as feiras populares, feiras nas vias públicas, praças e no “Brique da Redenção” o mínimo de preparo sobre legislação, relações humanas e respeito às diferenças e diversidades étnicas e culturais. Pede-se, igualmente, que o animalzinho, o bugio das crianças Guarani Mbya, seja devolvido à comunidade Guarani, uma vez que este faz parte daquele meio de vida; o bugio integra uma rede de relações sociais particular e longe daquele contexto e de seu habitat está exposto ao risco de morte.
Porto Alegre, 01 de maio de 2018.
Conselho Indigenista Missionário-Regional Sul
Conselho Estadual dos Povos Indígenas/RS
Notas:
[1] SANTOS, C.M.B. O uso dos recursos naturais pelos índios e a observância da legislação ambiental. 2014. Disponível aqui.
[2] BAPTISTA, Fernando Mathias. LIMA, A. (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo, Instituto Socioambiental; Porto Alegre, 2002.
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A detenção de Teresa Gimenes Guarani Mbya pela Guarda Municipal de POA e o direito à diferença - Instituto Humanitas Unisinos - IHU