19 Abril 2018
Esgotado o modelo sindicalista que animou vitórias do PT, há oportunidade para um novo projeto da esquerda: não desvinculado da figura do ex-presidente, mas ultrapassando-a.
O artigo é de Sebastián Ronderos, cientista político colombiano, doutorando em ideología e análise de discurso pela Universidade de Essex, e Lucas Augusto da Silva, poeta, advogado e mestrando em Sociologia pela Universidade de Lisboa, publicado por Outras Palavras, 18-04-2018.
Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, existe uma constante oscilação na posição ideológica dos pré-candidatos para as eleições presidenciais. Basta uma notícia, uma entrevista, um evento (ou mesmo a omissão sobre tais) associado ao nome do candidato e o campo político se reestrutura.
Certas vezes, basta a explícita opinião de um adversário para que um ou outro candidato seja arremessado para um espaço abstrato na disputa ideológica (afim ou oposto à opinião deflagrada). Bolsonaro é um desses casos emblemáticos: a própria existência de um candidato que flerta com a ditadura militar, que impõe um discurso de asco às demandas identitárias das minorias e que destila ofensas contra os parlamentares progressistas acaba gerando uma espécie de afinidade ideológica entre os demais candidatos que declaram oposição ao neofascismo. A existência de Bolsonaro aproxima relativamente Marina Silva e Guilherme Boulos, por exemplo, na luta contra a ascensão de um sugestivo totalitarismo de extrema direita.
Inúmeros acontecimentos sucederam-se e deslocaram com relevância as peças nessa espécie de gráfico dinâmico de orientação política e identificação popular: os escândalos de corrupção contra membros do alto escalão do MDB, a campanha de Michel Temer pela aprovação da contrarreforma da previdência, a intervenção militar no Rio de Janeiro e, mais recentemente, a execução de Marielle Franco. A ocorrência mais relevante para esta reorganização ideológica, porém, aconteceu em 6 de abril.
O mandado de prisão expedido contra o ex-presidente Lula remodelou a matriz ocupada pelas candidaturas de esquerda e refletiu na adaptação de seus discursos. Ausente do debate central (e do palanque no qual o petista discursou no Sindicato dos Metalúrgicos de SBC), Ciro Gomes reafirmou seu distanciamento ao modelo organizado pelos altos quadros do PT, o que não surpreendeu boa parte dos candidatos da esquerda. O candidato do PDT parece repisar sua estratégia de ocupação de um espaço de fato vazio de personificação (centro-progressista), sustentada fundamentalmente na tecnocracia e em sua experiência política. Contudo, a organização dos demais candidatos da esquerda de união em solidariedade a Lula afasta Ciro da agenda progressista e o aproxima das candidaturas que concorrem para conquistar os votos dos eleitores que tentam fugir da polarização política.
Enquanto Ciro parece se afastar da esquerda e se concentrar ao redor de outros candidatos que mantêm um posicionamento mais frouxo sobre a prisão de Lula, como a chapa formada por Marina Silva e Joaquim Barbosa, a fotografia simbólica no palanque do sindicato na qual constam as três candidaturas expoentes da esquerda no pleito presidencial prenuncia um fôlego providencial frente à preocupação com a aliança feroz e fortalecida entre o grupos de mídia, poderes Legislativo e Judiciário, e grandes concentradores de riqueza que orquestraram a prisão de Lula e que desenvolvem um programa regressivo que ameaça as conquistas democráticas dos últimos anos. Travestidos em um discurso anticorrupção, estas energias fortalecem e reproduzem as bases que permitem que o sistema criticado continue em progressão.
Esta espécie de cartografia decantada após a prisão arbitrária de Lula permite empreender uma análise mais sóbria sobre as estratégias envolvidas e nos leva a oferecer algumas teses sobre o atual momento e futuro da esquerda brasileira.
Uma condição central está submersa naquilo que consideramos ser o esgotamento de um determinado modelo de poder baseado na aglutinação de demandas antagônicas (assemblage), através de uma capacidade privilegiada de negociação. Esta estratégia, desenvolvida ao longo da história do Partido dos Trabalhadores, através da condução inquestionável de Lula, relacionamos ao que chamaremos de “modelo sindicalista de poder”’ (MSP). Lula tem se destacado através de sua história como um líder carismático com uma capacidade admirável de articulação e uma sensibilidade estadista única na formulação de políticas públicas, na reestruturação e profissionalização diplomática, na redistribuição de renda e democratização do acesso à educação e demais serviços públicos.
Mantendo a conciliação, o ex-presidente astutamente estruturou uma cooperação dos setores estratégicos na conformação do seu modelo de governo, conseguindo, com evidente sucesso, transformações demográficas históricas.
Tal agenda mostrou-se perfeitamente harmonizada com os próprios processos históricos impulsionados por grandes pactos nacionais, desde a independência do país — decretada e alcançada primordialmente por um sistema de concessões entre oprimidos e opressores — até a derrocada da ditadura que, depois de finda, não resultou em um plano de acerto de contas pelas elites militares. Ao invés de relevantes rupturas protagonizadas pelos setores subalternos como impulso para as transformações sociais, o que se observa na história política do Brasil são constantes rearranjos de pactos que blindam os interesses dos atores dominantes e, em contrapartida, oferecem concessões pontuais às classes exploradas. Isso justifica, por exemplo, o isolamento do país diante dos vizinhos latino-americanos nos processos de descolonização e abolição da escravatura.
As conquistas obtidas pelo modelo aplicado são indiscutíveis: o Brasil deixou o mapa da pobreza, as minorias raciais acessaram espaços anteriormente exclusivos e o país voltou a ser um relevante protagonista nas instâncias de atuação internacional. Ato contínuo, o golpe institucional de 2016 e a inelegibilidade de Lula em 2018 são os reflexos evidentes do esgotamento desta estratégia de coalizão. Ao ascender ao espaço de governo, o petismo tentou neutralizar os antagonismos inerentes à própria disputa política, expressa desde Maquiavel já no século XVI, fechando os olhos para as relações de poder que extrapolam as ocupações efêmeras das instituições formais. A conformação das estruturas de poder, centralizadas nas elites históricas, que possibilitou a promiscuidade entre os poderes institucionais para atacar ferozmente o PT, não foram ocupadas de forma adversa à gestão petista, mas fortalecidas pelo seu MSP.
Longe de estabelecer a construção de uma contra-hegemonia, propiciando novos espaços de poder que conseguissem sustentar uma nova correlação de forças diante das necessárias reformas estruturais, o PT pareceu tentar incluir seus representados e eleitores no racional da própria estrutura hegemônica imperante, esculpida desde há muito por seus algozes. Qualquer das partes neste acordo poderia ter reconhecido os limites orgânicos desta coalizão. Na hora H, os inimigos estavam mais atentos e atacaram. No momento em que este modelo apresentou certa inconveniência aos interesses de acumulação e concentração do capital, bem como percebeu-se um tímido avanço no redesenho das fronteiras constitutivas das classes sociais, a elite política, respaldada pelo apoio das camadas médias brasileiras que “olhavam para a frente e viam os ricos se distanciarem; olhavam para trás e viam os pobres se aproximarem” (palavras do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad), desatou os acordos a que tinha aderido e iniciou a demonização do (ex)parceiro.
Depois do triunfo da Revolução Cubana, Fidel Castro pediu a Regis Debray que percorresse a América Latina e fizesse uma análise sobre a repercussão do processo cubano na região. Debray desenvolveu um relatório no qual reconhece que as elites latino-americanas e os Estados Unidos compreenderam com maior rapidez a importância de dita Revolução do que a própria esquerda. Esta característica parece se repetir na atual conjuntura política no Brasil.
O período que sucedeu o impeachment de Dilma Rousseff exigiu da militância da esquerda brasileira a construção de uma narrativa monocórdia ancorada em dois significantes simbólicos importantes: o “golpe” e o “Fora Temer”. Vale frisar que boa parte das disputas integradas pela oposição a Michel Temer durante este período, como o combate à reforma da previdência, foi alicerçada nesta construção discursiva. Todavia, existe uma evidente limitação nas articulações destas peças. Hoje o impeachment estabeleceu-se como golpe dentro do idílio da esquerda nacional e com reverberações internacionais, porém Michel Temer deve concluir seu mandato sem maiores transtornos.
Com a prisão de Lula, contudo, o que avistamos, distantes da leitura mainstream que enfatiza um iminente (e óbvio) retrocesso democrático, é a germinação de um interregno que indica a necessidade de transição estratégica da esquerda através do reforço dos antagonismos sociais após Junho de 2013. Uma oportunidade única de aproveitar os avanços e as bases até agora cimentadas, compreendendo-as não como erros táticos, mas como fundamentos na configuração estratégica de uma transição estrutural, que reclama um processo de autocrítica e renovação na configuração organizacional da esquerda. As elites, por sua vez, parecem ter avistado esse interregno com maior avidez, reestruturando-se com a mudança de ciclo econômico e se articulando mais rapidamente na guerra de posições.
A inelegibilidade (prática) e o encarceramento do ex-presidente apresentam-se como revelação das cartas guardadas na manga pela oligarquia político-econômica durante os mandatos petistas, e que agora foram escancaradas e estão transparentes no tabuleiro ideológico. Longe de negar o evidente retrocesso republicano que as instituições formais operam neste momento no Brasil, cabe, em paralelo, analisar este acontecimento como uma janela de oportunidade para o contra-ataque progressista.
Ao pronunciar “não sou mais um humano; sou uma ideia”, Lula reconhece sua capacidade ímpar de pautar o debate ideológico e disponibiliza seu próprio nome (e legado) como significante a ser apropriado, além de perceber implicitamente os limites que seu modelo de poder e o futuro curto de sua carreira política (sobretudo pela sua idade) lhe impõem. É nesta vacância, neste espaço a ser ocupado que identificamos a oportunidade sem precedentes da construção de um projeto de robustecimento da esquerda: não desvinculado do Lulismo, porém conscientemente reformulado a partir de seu potencial discursivo e da inevitável crítica às bases metodológicas do MSP (mais uma vez, modelo sindicalista de poder).
Na entrevista que Lula concedeu a Félix Guattari em 1982, quando questionado sobre o programa econômico de seu partido (embora orientado por uma macro-proposta de estatização de empresas privadas) o líder sindical pondera que “é preciso estar com os pés no chão e saber que os processos de transformação não se dão porque queremos, mas em virtude das forças políticas sobre as quais eles se apoiam. (…) Nós não queremos ir com sede ao pote. Nós queremos é matar nossa sede”. Em outra pergunta, Lula diz que “o PT aproximou as pessoas; criou novas relações de fraternidade e lá as pessoas se sentem mais iguais”.
Ao recorrer à obediência às forças políticas operantes nos processos de transformação e à capacidade de conciliação entre contrários como emblemas de seu projeto de poder, a liderança petista cria características auto-explicativas do que aqui chamamos de MSP. Mais do que isto, sustentamos que as potencialidades do MSP estabelecidas enquanto o partido ainda não havia acessado o Executivo federal foram elas próprias as causas do enfraquecimento dos mandatos Lula-Dilma e, atualmente, do esgotamento do próprio modelo, como numa espécie de doença autoimune.
Não à toa o arquiteto do golpe foi o próprio vice-presidente que compôs chapa com Dilma Rousseff em 2014; não à toa cinco dos seis votos contrários ao habeas corpus impetrado por Lula foram anunciados por ministros indicados pelos ex-presidentes petistas; não à toa foram os mandachuvas das empreiteiras privadas que mais lucraram na era Lula os mesmos que ofereceram o dossiê probatório no qual foram sustentados todos os processo instaurados contra o ex-presidente. A estratégia de comando político do PT, ao integrar aqueles que pareciam ser o sistema imunológico perfeito contra as ameaças da oposição, ofereceu, consecutivamente, o ambiente mais adequado para o ataque desenfreado dos anticorpos contra as próprias células de seu tecido estrutural.
Todo este processo se insere numa disputa política a campo aberto, pautada, desde 2008, por uma nova crise do capitalismo financeiro e da democracia representativa a nível internacional. Em determinadas ocasiões, e cada vez com maior força, costuma ser a extrema direita que se conecta sem meias palavras com essa insatisfação genuína frente ao limite dos marcos liberais, embora propondo mecanismos que elevariam a precarização dos direitos econômicos, civis e políticos a uma condição crônica.
Se as instituições tradicionais da democracia liberal carecem de empatia representativa no atual contexto político das sociedades ocidentais, a reprodução das narrativas germinadas no interior dos mandatos petistas tampouco apresentam uma alternativa satisfatória. É preciso compreender que não só a extrema direita se apresenta como ameaça a esta oportunidade de recomposição das estruturas democráticas, mas a própria manutenção de um projeto conciliador e neutralizador das identidades antagônicas, com disponibilidade para o diálogo com as ortodoxas e experientes elites políticas brasileiras, também põe em risco a construção de uma contra-hegemonia.
Esgotado o modelo, sobrevive o legado e uma oportunidade histórica se revela.
Uma vez arrefecida a potência de uma racionalidade sindical como modelo de governo, uma alternativa que pode confluir as demandas sociais dispersas sem esvaziar o significante do “lulismo” seria a composição do que vinculamos com o que Antonio Gramsci chamou de ‘Bloco Histórico’. Este conceito supõe um conjunto complexo de relações sociais, potencializando estrategicamente forças tanto materiais quanto simbólicas. Estabelece uma junção de formas jurídicas, políticas, jornalísticas, artísticas, filosóficas e religiosas ao serviço da consciência do momento histórico, empreendendo lutas populares sintonizadas que superem as formas tradicionais de resistência e retaguarda, cavando trincheiras criativas num movimento de avanço. Entende a centralidade do Estado, mas compreende também a necessidade da criação e ocupação de espaços informais que cultivam a memória social sensível, constituída primordialmente por expressões culturais.
E por que talvez esta seja a oportunidade única para o desenvolvimento desse embrião? Porque a própria complexidade do momento levou a uma convocação espontânea de um quadro que extrapola as fragmentações partidárias, propondo quase de forma inadvertida a união precisa para uma estratégia vitoriosa, pois conecta com demandas contemporâneas e acessa espaços por onde a esquerda tradicionalmente tem dificuldade de caminhar. Além disso, se apropria do alcance que o significante “Lula” tem de transbordar os limites convencionais, superando as próprias armadilhas que a esquerda construiu discursivamente, ao estruturar pautas transversais que atingem a sensibilidade do cidadão comum, mas, desta vez, revelando os antagonismos que a própria polarização política exige.
O ocaso do MSP levou a uma interseccionalidade de agentes, propiciando a ocupação deste discurso, e o símbolo maior deste “bloco histórico” foi o palanque constituído no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo: a aglutinação de lideranças políticas e sociais, artísticas e religiosas, unidas em prol de uma radicalização da democracia, representa uma ressignificação precisa do devir do “lulismo”.
Mais do que mostrar os dentes, o momento exige saber onde e como morder. Exige repensar as alianças baseadas nas entranhas dos antagonismos sociais e conectar com os insumos de insatisfação, concentrando o alvo naquelas reservas subjetivas e coletivas expressas na carência de representação, que continuam dispersas e órfãs desde 2013.
Este projeto não se confunde com a unificação das estratégias eleitorais, nem com a propositura (equivocada) de uma chapa única para o pleito eleitoral a seguir. Pelo contrário, ele as engloba: a chapa formada por Guilherme Boulos (liderança social consolidada) e Sônia Guajajara (expoente nas lutas dos povos indígenas) somada à candidatura de Manuela D’Ávila (que empunha com maestria o discurso feminista) e às figuras de Celso Amorim (voz ecoante nas internacionalidades), João Pedro Stédile (líder do MST), Osmar Prado (representando a classe artística) e peças-chave da Igreja Católica eleva a interseccionalidade a um nível de diálogo com a sociedade civil providencial para o projeto de radicalização do discurso da esquerda.
Basta saber se, desta vez, o PT estará disposto a abandonar seu modelo de governo para disputar o poder ou continuará alimentando os anticorpos que atacam seu próprio tecido.
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Uma possível era pós-Lula - Instituto Humanitas Unisinos - IHU