04 Abril 2018
Pesquisadores identificaram 600 geoglifos no sul da Floresta, área que acreditavam não ter sido habitada no período pré-colombiano.
A reportagem foi publicada por O Globo, 03-04-2018.
(Foto: Divulgação)
Uma vasta região no sul da Floresta Amazônica, antes entendida como desabitada durante o período pré-colombiano, abrigou inúmeros povos no passado, revela estudo publicado nesta terça-feira na revista “Nature Communications”. Numa faixa que se estende por 1.800 quilômetros, ocupando uma área de 400 mil quilômetros quadrados, já foram identificados cerca de 600 geoglifos — figuras geométricas feitas no chão por humanos — de diferentes formas e tamanhos, que comprovam a ocupação permanente do terreno. E os pesquisadores acreditam que existam mais vestígios escondidos pela densa floresta: entre 1.000 e 1.500 no total, que abrigaram até 1 milhão de habitantes.
— Pensando na dimensão da área, nem é muita gente, mas até pouco tempo atrás acreditava-se que a população inteira da Amazônia no período pré-colombiano era de 1 milhão a 2 milhões — apontou o brasileiro Jonas Gregório de Souza, pesquisador do Departamento de Arqueologia da Universidade de Exeter, na Inglaterra, e coautor do estudo. — A nossa projeção é que em toda a região sul da Amazônia existam até 1.500 sítios, sendo que dois terços ainda não foram encontrados.
Os geoglifos são de diferentes formatos: circulares, retangulares ou sem forma definida, com dimensões que variam entre 30 e 400 metros de diâmetro. Souza acredita que as marcas no chão são vestígios de locais rituais e de antigas tribos que ocuparam a região entre os anos 1250 e 1500, incluindo vilarejos fortificados com paliçadas.
Neste último estudo, a equipe de pesquisadores liderada pelo professor José Iriarte analisa 81 desses geoglifos, com descrições de cerâmicas, restos de carvão e, o mais importante, a presença de terra preta, tipo de solo que caracteriza a ocupação de longo prazo.
As aldeias recém-descobertas eram cercadas por fossos, com profundidade entre um e três metros, com pequenos montes nas laterais, com cerca de um metro de altura. Em alguns geoglifos, as valas tinham interrupções, indicando a existência de locais de entrada e saída. Por isso, os arqueólogos acreditam que os vilarejos fossem cercados.
Com base na dimensão dos sítios arqueológicos e em relatos históricos da região, os pesquisadores estimam que as maiores tribos tinham entre 1.000 e 2.500 habitantes. Ainda não é possível identificar quais eram esses povos, mas Souza está certo que, de alguma forma, eles se comunicavam. Foram encontrados vestígios de redes de estradas conectando os vilarejos. Eram, porém, de grupos distintos, com línguas diferentes, como indica a presença de uma variedade de cerâmicas.
— Certamente estavam em contato. Tanto que desenvolveram essa arquitetura semelhante — apontou o arqueólogo.
(Foto: Divulgação)
Os geoglifos encontrados no Mato Grosso são semelhantes a outros existentes no Acre. O que chama a atenção é que as duas regiões são de florestas de terra firme, situadas em zonas de relevo mais alto que não são alagadas sazonalmente, como as florestas de várzea. Essa característica favorece o crescimento de árvores de grande porte, que impedem a entrada da luz solar. Por esse motivo, os cientistas imaginavam que essas áreas fossem pouco habitadas no passado, com os povos se concentrando ao longo das margens dos grandes rios.
A descoberta dessas antigas aldeias no sul da Amazônia, na cabeceira do Tapajós, sugere uma ocupação contínua na região sul da Amazônia, conectando o Alto Xingu aos geoglifos no Acre, cruzando os estados de Mato Grosso e Rondônia.
— Nossa pesquisa mostra que precisamos reavaliar a história da Amazônia — ressaltou Iriarte. — Certamente não era uma área povoada apenas perto das margens dos grandes rios, e as pessoas que viveram lá modificaram o ambiente. Na área que analisamos existia uma população de dezenas de milhares.
O trabalho de terraplanagem provavelmente era realizado durante secas sazonais, que facilitam a remoção da floresta. O solo enriquecido pela matéria orgânica das folhas das árvores fornecia aos antigos indígenas terras férteis para a produção agrícola e o plantio de árvores frutíferas, como a castanha do Pará. Apesar do manejo florestal, nada se compara ao desmatamento das últimas décadas. Os povos do passado usavam técnicas conhecidas hoje como sistemas agroflorestais, baseado na mistura de plantas medicinais e comestíveis com a mata original.
— Existe o equívoco comum de que a Amazônia é uma paisagem intocada, lar de povos nômades e dispersos, mas não é o caso — disse Souza. — Descobrimos que algumas populações distantes dos grandes rios são muito maiores do que se pensava e essas pessoas tiveram um impacto sobre o ambiente que pode ser encontrado hoje.
Por ironia, as estruturas gravadas na terra foram descobertas graças ao avanço do agronegócio. A derrubada da floresta para a criação de pastagens revelou os geoglifos que estavam escondidos sob a mata densa. Os pesquisadores de Exeter analisaram imagens públicas de satélite do Google Earth e do Zoom.Earth nas bacias dos rios Juruena e Teles Pires, que formam o Tapajós, para identificar os sítios arqueológicos, depois selecionaram 24 para a pesquisa de campo. A expedição foi financiada pela National Geographic Society.
Para explorações futuras, é possível que os arqueólogos recorram ao LIDAR (Light Detection And Ranging), um radar ótico capaz de penetrar na floresta e revelar o relevo do solo.
— Seria melhor não esperar o desmatamento chegar para podermos estudar — brincou Souza.
(Foto: Divulgação)
Não existe uma explicação para o destino dessas comunidades, mas a tese mais plausível é que eles tenham desaparecido após o contato com os europeus, provavelmente dizimados por doenças trazidas do Velho Mundo. E a existência de uma rede de contato pode ter facilitado a disseminação desses males mesmo antes de os europeus colocarem os pés na região.
— Nós sabemos que as doenças viajavam muito mais rápido que as pessoas — explicou Souza.
Para além da curiosidade de se conhecer o histórico de ocupação da maior floresta tropical do mundo, estudos como esse revelam como povos do passado lidaram com o uso da terra no passado. A descoberta de que milhões de pessoas viveram na região pode oferecer ensinamentos sobre formas sustentáveis de exploração. A terra preta é exemplo disso. Sua fertilidade atrai o interesse da comunidade científica que tenta compreender como o solo é preparado, com potencial para aumentar a produtividade em zonas inférteis.
— A Amazônia é crucial para a regulação do clima na Terra — comentou o arqueólogo brasileiro. — Saber mais sobre sua história ajudará na tomada de decisões informadas sobre como ela deve ser tratada no futuro.
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Aldeias ‘perdidas’ na Amazônia abrigaram 1 milhão antes do contato com europeus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU