09 Março 2018
"Consequentemente todos os eventos narrados no Novo Testamento, após a morte de Jesus, são lidos como narrativas mitológicas não para negar seu valor, mas para retirar um novo significado".
A opinião é do teólogo italiano Carlo Molari, sacerdote e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana de Roma, em artigo publicado na revista Rocca n. 6, 15-03-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
A próxima solenidade da Páscoa exige o cumprimento da reflexão iniciada na última edição e terminada com o ato de fé do jesuíta flamingo Roger Lenaers (Ostend, 1925), que “inclusive em nome de todos os cristãos" retoma as palavras do apóstolo Pedro: "para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna" (Jo 6, 68).
Esta é a conclusão de seu livro Gesù di Nazaret. Uomo come noi? (Jesus de Nazaré. Homem como nós? Em tradução livre, Ed. Gabrielli, San Pietro in Cariano, Verona 2017 p.140).
Também na entrevista concedida a Claudia Fanti em MicroMega (8/2017 pp. 141-154), onde Lenaers demora-se mais sobre a imagem de Deus, tem algumas linhas dedicadas "para a mais importante das fórmulas, aquela relativa à ressurreição de Jesus" (p . 145). Como ele afirma, esta "tornou-se inacessível para o homem e a mulher modernos" (ibid.). A razão que ele aponta para uma declaração tão radical é o fato de que "a ressurreição é um conceito judaico antigo, adotado pelos cristãos para significar que Jesus não havia sido derrotado pela morte, mas tinha entrado na plenitude da vida e que, portanto, Deus era um Deus da vida" (ibid.).
Ele próprio faz a pergunta: "Por que tal conceito deveria ser superado?" e sugere a resposta: "Porque supõe que a morte seja igual a um sono, do qual o ser humano, pelo menos o merecedor, sairá, quando Deus o despertará" (ibid.).
No entanto, ele esclarece que para o homem e para a mulher modernos "a morte não é um sono do qual saímos renovados, mas é a completa demolição do organismo, a começar pelo cérebro, de modo que nada, nem consciência, nem atividades e nem movimentos serão mais possíveis. O cérebro consiste de cerca de cem bilhões de neurônios, conectados por um número incontável de sinapses. Ressurgir implicaria que tudo isso poderia ser reparado e retornar à condição em que estava antes da morte" (ibid. p. 146). Por fim, ele conclui claramente: "Assim, para o homem e a mulher modernos a expressão 'ressuscitado' não tem mais qualquer significado. É melhor, portanto, abandonar essa fórmula, porque o corpo de Jesus não voltou à vida e porque tal fórmula não informa nada da intuição que está ali contida. É preciso encontrar uma fórmula que a expresse melhor. A Bíblia oferece fórmulas como 'subiu ao céu', 'ele está sentado à direita do Pai', 'glorificado'. E todas as histórias das aparições de Jesus após sua 'ressurreição' pertencem às 'fórmulas' do passado. Tais fórmulas, no entanto, querem expressar a experiência de um Jesus vivo e criativo. Negar a sua historicidade não significa negar a intuição que se encontra nelas "(ibid.).
A exposição mais completa e detalhada do livro Jesus de Nazaré, é apresentada no cap. 6 ‘Ressuscitado no terceiro dia’, que merece uma breve análise. Aqui também, o critério básico é indicado desde a introdução pelas aquisições da modernidade. "Hoje, em especial, já se tornou indispensável libertar Jesus do casulo mitológico em que a Igreja, no passado, amorosamente o envolveu. E por quê justamente hoje? Porque até o advento da modernidade não havia a menor necessidade de fazê-lo. Todo o pensamento pré-moderno estava impregnado por ideias mitológicas. A figura de Jesus só poderia beneficiar-se de uma posição de destaque em um contexto como esse. Mas, no quadro da cultura moderna a mensagem sobre Jesus e sobre o significado da libertação e renovação que traz para a humanidade, não encontra mais qualquer respaldo quando é expressada na forma pré-moderna. Tornou-se incompreensível e a principal razão é que a modernidade finalmente deixou para trás todo aquele pensamento mitológico" (ibid, pp. 22-23).
Consequentemente todos os eventos narrados no Novo Testamento, após a morte de Jesus, são lidos como narrativas mitológicas não para negar seu valor, mas para retirar um novo significado.
Lenaers resume isso desta forma: "O fato do túmulo, no terceiro dia, ter sido encontrado vazio significa que o mundo inferior não conseguiu parar Jesus, que provou ser mais forte do que a morte e o sepulcro. Ele está vivo, apesar da morte. Para Marco essa afirmação positiva é a essência de sua mensagem. Mas é uma mensagem que não podemos entender num sentido biológico. Inclusive sobre o 'Deus vivo', falamos em sentido 'abiológico'"(ibid, p. 122).
A plenitude da vida que Jesus atinge não é a consequência de sua morte sangrenta, mas da 'escolha de comunicar a seu povo, mesmo ao custo da vida, a boa notícia que Deus é amor. Foi, portanto, o seu amor pelos seres humanos que lhe deu cumprimento e o fez viver na plenitude.
Não se tornou um com o amor original graças à crueldade de seus inimigos, à morte em si e por si, caso contrário seriam seus carrascos nossos salvadores; tornou-se exclusivamente graças à sua gratuidade [...] Ele fez isso apenas com base à quantidade de amor que reservou para os seres humanos. De outra forma cada assassino forneceria ao assassinado um serviço incalculável..." (ibid, p. 123).
Uma vez apurado o fundamento da ação salvífica de Jesus que reside precisamente na gratuidade do seu amor, Lenaers não tem mais dificuldades para interpretar como mitológicas as diferentes narrativas sobre o túmulo vazio de Jesus e às suas inúmeras aparições entre si dificilmente compatíveis "se o túmulo vazio é mitologia, então necessariamente também o são as histórias das aparições [...] Permanecem histórias, criações de um autor inspirado, não crônicas" (ibid.).
Isso também se aplica à nossa jornada de crentes no Cristo ressuscitado: "Sobre o que se alicerça a nossa fé na ressurreição? Sobre o fato de que 'vemos' o Jesus vivo. Um 'ver', que é o fruto da pregação. A narrativa dos dois discípulos de Emaús pode ser lida como uma parábola de tal processo. O estrangeiro que traz aos dois a feliz certeza de que o Jesus vivo é aquele que prega a fé. Isso faz com que surja dentro deles uma visão interior, uma experiência de significado e plenitude à qual se participa acreditando em Jesus como aquele que vive. Das cinzas frias não surgem faíscas e de um morto não surge vida. Não existem argumentos que expliquem essa experiência de vida e plenitude" (p. 125). "Se assumirmos que a Igreja tenha surgido a partir do encontro de fé com Jesus vivo e que ela tenha tornado visível em muitas formas a sua figura através dos séculos [...], não é exagerado afirmar que ele continua a oferecer desta figura uma interpretação mais adequada em relação a quem não acredita nele "(ibid.).
Nesse ponto Lenaers revela o interlocutor oculto de suas reflexões e recorda que "o desejo de escrever este livro" (Jesus von Nazareth. Ein Mensch wie wir?) foi o estudo de Reza Aslan, Zealot: The Life and Times of Jesus of Nazareth, de 2013. Lenaers deparou-se com um jovem estudioso que seguia suas mesmas trilhas, mas com sensibilidade diferente. A tal ponto que ele recorre ao próprio Reza Aslan para mostrar a insuficiência das suas conclusões, mas juntos ao núcleo da proposta.
"Ela se baseia no fato histórico, para ele (e não apenas para ele) inexplicável, que um número crescente de pessoas, apesar das dificuldades e das perseguições, vislumbrasse um sentido no acreditar com o coração e a alma nesse messias fracassado. Essas pessoas reconheceram nele, evidentemente, não o curador ou reformador político, mas uma pessoa em cuja vida e em cujas palavras pode ser percebida intensamente a presença de Deus, confiando assim na sua mensagem e fazendo de seu pensamento e de sua ação a norma do próprio pensamento e da própria ação. Eis porque Jesus é a única pessoa histórica que após a morte tornou-se objeto de um culto religioso que não foi um fogo de palha [...] O próprio Aslan reconhece que "a razão lógica e óbvia para levar a sério as experiências de fé na ressurreição dos seus discípulos é que Jesus é o único dos tantos messias vindos antes e depois dele, que continua a ser chamado Messias". Mas "levar a sério essas experiências significa reconhecer [...] que o Jesus executado sob Pôncio Pilatos está vivo; mais ainda: exala vida, atrai os seres humanos e os vincula a si, incentivando-os para uma humanização cada vez mais perfeita [...] Falar que Jesus vive, não é mais parte de uma linguagem biológica, mas de uma linguagem de fé, com base na experiência, uma linguagem que tenta explicar o fato de que ele fundiu-se em uma única essência com o fundamento original de toda vida, uma união que o torna partícipe da eternidade de Deus" (pp. 131-132).
No que diz respeito à cristologia, Lenaers se mantém no âmbito da doutrina da fé. A sua posição cristológica é muito discutível, mas não pode ser condenada porque admite a suficiente superioridade ou transcendência pela qual pode concluir com as palavras com que Pedro declara: "Tu tens as palavras da vida eterna".
Resta esclarecer a sua doutrina trinitária.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ressurreição, o desafio do padre Lenaers - Instituto Humanitas Unisinos - IHU