25 Janeiro 2018
Lendo e relendo os comentários do Papa Francisco na coletiva de imprensa a bordo do voo que o trazia a Roma, concernente a casos de abuso sexual e as alegações contra Dom Juan Barros Madrid, confesso que não consegui entender coisa alguma.
A certa altura, o Papa Francisco diz: “(…) a palavra ‘prova’ não era a melhor para me aproximar dum coração ferido; eu diria ‘evidências’. No caso de Barros, estudou-se, voltou-se a estudar e não há evidências, e era isto que eu pretendia dizer: não tenho evidências para condenar. E, neste caso, se eu condenasse sem evidências ou sem certeza moral, cometeria eu um delito como mau juiz”.
A reportagem é de Michael Sean Winters, publicada por National Catholic Reporter, 24-01-2018. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Mais adiante, em resposta a uma questão subsequente, falou: “Passo ao terceiro ponto: que sentem os abusados. Sobre isto, devo pedir desculpa, porque a palavra ‘prova’ feriu, feriu muitos abusados. (…) É uma palavra de tradução do princípio legal e… feriu. Peço-lhes desculpa por tê-los ferido, sem me dar conta; mas feri sem querer. E isso pesa-me imenso, porque eu recebo-os. No Chile, recebi dois; estes, de domínio público, mas houve mais, recebidos às escondidas. No Peru, não. Mas, em cada viagem, há sempre alguma possibilidade. Dos de Filadélfia, dois ou três foram publicados; outros casos não o foram. Sei quanto sofrem. Ouvir o Papa dizer-lhes ‘tragam-me uma carta com a prova’ é uma afronta. E agora dou-me conta de que a minha expressão não foi feliz, porque não pensei nisto. E compreendo – como diz o apóstolo Pedro numa das suas Cartas – o incêndio que se solevou. Isto é tudo o que te posso dizer com sinceridade”.
Quando perguntado sobre a declaração do Cardeal Sean O’Malley, em que o purpurado falou da mágoa causada pelos comentários anteriores do papa sobre este caso, Francisco respondeu: “Compreendo. Vi a declaração do cardeal O’Malley, que afirma também: ‘O Papa sempre defendeu as vítimas..., o Papa usa tolerância zero...’. Com aquela expressão não feliz, sucedeu o que tu disseste e que me fez pensar no efeito da palavra ‘prova’ (...) Se eu disser: ‘Tu roubaste’. — ‘Não! Eu não roubei’. — ‘Roubaste, sim senhor! Roubaste’, estou a caluniar, porque não tenho a evidência. Foi uma expressão infeliz. Mas eu não ouvi nenhuma vítima de Barros. Não vieram, não deram as evidências para o julgamento. Tudo isso é um pouco vago, é algo que não se pode tomar em consideração. Tu, com boa vontade, dizes-me que há vítimas, mas eu não as vi, porque não se apresentaram. É verdade que Barros era de lá, do grupo dos jovens; (…) Nisto devemos ser claros: uma pessoa acusar sem as evidências, com pertinácia, é uma calúnia. Mas se vier uma pessoa e me der a evidência, eu sou o primeiro que me disponho a ouvi-la. (…) Pensei naquilo que disse o cardeal O’Malley, agradeço-lhe a declaração porque foi muito justa: disse tudo o que fiz e faço e o que faz a Igreja, e depois falou do sofrimento das vítimas, não deste caso, mas em geral”.
Alguém consegue tirar algum sentido destas afirmações aparentemente contraditórias? Eu não.
O que há com o Papa Francisco e com todo o problema dos abusos sexuais clericais? Como o seu antecessor imediato, o Papa Emérito Bento XVI, e diferentemente de São Papa João Paulo II, Francisco aceitou o compromisso de pôr em prática uma tolerância zero na questão dos abusos sexuais na Igreja. Mas como conciliar esta afirmação com o fato de que existem pelo menos três pessoas que publicamente afirmam que Barros era uma testemunha dos abusos sofridos nas mãos Pe. Francisco Karadima, muito embora ele próprio não estava cometendo os abusos. Se evitar abusar novamente das vítimas for uma prioridade – e se não for, deve ser – para a Igreja no Chile e alhures, por que Francisco declinou, por duas vezes, aceitar a renúncia de Barros no interesse da cura?
O meu ex-colega Tom Roberts muito escreveu sobre a associação entre o clericalismo e a crise dos abusos sexuais clericais. Não concordo inteiramente com a sua análise, mas coaduno em grande medida com a associação feita do clericalismo com a resposta criminosa à crise dos abusos sexuais dada por numerosos bispos. Mesmo assim, o Papa Francisco se mostrou não só ser imune ao clericalismo sob outras formas, mas também deixou-se saber que está muito ciente da influência corruptora que o clericalismo pode exercer na vida da Igreja. Por que, então, as suas respostas têm, no mínimo, uma lembrança do clericalismo que por tanto tempo caracterizou a resposta dos bispos quando confrontados com as evidências de abusos sexuais cometidos por seus padres?
Austen Ivereigh, escrevendo para o sítio Crux, observa:
Mas o papa disse no avião de volta para Roma que analisou as evidências, e que as julga inconsistentes e incoerentes. “Não há evidências de culpabilidade, e parece mesmo que não se encontrarão, porque a coerência [as evidências] aponta noutro sentido [isto é, a inocência]”, disse aos repórteres. Ele acha que Barros vem sendo condenado por aquilo que simboliza, não pelo que fez, e que as duas coisas se misturaram na narrativa das vítimas.
As palavras de Ivereigh podem ser verdadeiras, porém, em sua explicação, o autor omite o problema central: ninguém de nós sabe das evidências que o papa viu. O motivo pelo qual nenhum de nós pode se encontrar inteiramente de acordo com Francisco a respeito da inocência de Barros é que ninguém de nós viu as evidências, e o sistema como um todo carece de transparência.
Ivereigh diz ainda que “o seu objetivo no Chile não foi uma estratégia comunicacional pensada para satisfazer a fome pública pelo sacrifício, mas para forçar a Igreja a lidar com a causa real da crise em torno do caso Karadima: o clericalismo e o apego ao poder”. E, mais adiante: “Não se trata de um exemplo que impede novas reformas e um aprendizado”. Este último ponto está, sem dúvida, errado e o artigo de Ivereigh é um exemplo do porquê isso ocorre: a única coisa que está sendo reportada a partir da viagem do papa é a polêmica em torno de Barros.
Não sei o que pensar. Acho que nenhum de nós sabe por que o papa parece tão contraditório nas suas declarações. Será que Francisco sabe de um padre bondoso que foi falsamente acusado de abuso sexual? Ele foi acusado falsamente? Acusou falsamente alguém de algum crime no passado? Qual o motivo desta análise sobre a diferença entre “prova” e “evidências”, e por que a disposição em se desculpar por ferir as vítimas de abuso sexual clerical com esta sua escolha não cuidadosa de palavras, só para repeti-las novamente? Francisco fez da “misericórdia” um tema central deste pontificado, mas com certeza sabe que nada há de misericordioso em permitir que os perpetradores cometam mais crimes, motivo pelo qual temos a política de tolerância zero em primeiro lugar.
Sejamos claros também que lidar com rigor na questão dos abusos sexuais clericais não é um problema entre muitos. Podemos dizer de um pároco: este é bom com dinheiro, já aquele é um belo pregador, aquele outro é a pessoa que queremos que nos visite no hospital, e poderemos definir pontos fortes diferentes de papas diversos de modos parecidos. Mas, dada e enormidade dos crimes cometidos por importantes líderes eclesiásticos, e dada a falha evidente em encarar o câncer que cresceu dentro do clero, combater os abusos sexuais é como combater o antissemitismo: tão grande é o câncer, que nada senão um compromisso total será suficiente para extirpá-lo.
Dito isso, não tenho a paciência para aquelas pessoas que, tendo olhado para o outro lado quando tínhamos à frente da Igreja João Paulo II, agora pedem pela cabeça de Francisco. Da mesma forma, os que tentam usar – e usam – os comentários problemáticos deste papa como uma desculpa para denunciá-lo em outros frontes estão meramente usando o sofrimento das vítimas para fazer avançar as suas pautas ideológicas. Há punições especiais no purgatório para estas pessoas também. O Santo Padre, todavia, deveria saber que os seus críticos não darão tréguas para derrubá-lo. A crise dos abusos sexuais deveria ser confrontada com base nos méritos, mas as consequências de não confrontá-la são enormemente perturbadoras também.
Não invejo a presença do papa no funeral do Cardeal Law: De mortuis nil nisi bonum [Dos mortos só se diz o bem]. Também nenhum de nós gostaria de ser julgado pelas nossas piores decisões e, embora as pessoas em cargos de poder devam ser julgadas, a morte pode ser deixada para o juízo de Deus. Penso que muitos estão exagerando sobre o fato de que há uma demora para que o Vaticano aprove os novos membros da comissão papal voltada aos casos de abusos sexuais clericais: concordo com as críticas, porém não considero esta situação como uma demonstração de algum relaxamento no compromisso do papa em revolver este problema.
A situação de Barros é diferente. Eu gostaria de saber o que há com o Papa Francisco que o faz não compreender a situação deste prelado, a dor causada às vítimas e o dano à Igreja. Estou chocado com o fato de o papa ter declinado duas vezes a aceitar a renúncia do bispo. Mas, sei também, que, a menos que existam mais evidências de indiferença papal neste tocante, eu fico com Francisco.
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Respostas de Francisco a acusações contra bispo chileno fazem pouco sentido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU