19 Janeiro 2018
Chile é um caso particular na política latino-americana. Começou, no século XIX, com a chamada república portaliana (em homenagem ao estadista Diego Portales), com um governo centralizado nas mãos de um patriciado de origem vasca (Larraín, Errázuriz) ou com nomes lingleses (Cook). Pesquisar os sócios do Club de la Unión era descobrir “los que mandan”. Como em outros países da região, conservadores e liberais se sucediam. Quando, no fim do século XIX, o presidente Balmaceda enfrentou esse patriciado, acabou se suicidando.
O artigo é de Luiz Alberto Gomez de Souza, sociólogo.
Já no século XX, entram em cena o Partido Radical, o Socialista e o Comunista. Uma aliança desses últimos chega ao poder em 1938, com a Frente Popular que elege Aguirre Cerda (o jovem médico Salvador Allende foi ministro da saúde). Alianças semelhantes se deram em 1936 na França, com Leon Blum e na Espanha, com Manuel Azaña (começo da terrível guerra civil que levou ao poder Francisco Franco). Era o tempo em que o Cominform – a internacional fiel ao estalinismo - pregava a união dos comunistas com outras forças antifascistas. Nesse sentido, o Chile se assemelhava a alguns países europeus. E essa aliança seguiu com o radical Gonzáles Videla. Porém em 1947, a guerra fria que começava no pós-guerra, levou Videla a alinhar-se aos Estados Unidos, colocando o Partido Comunista fora da lei. No Brasil ocorreu o mesmo nesse ano.
A outra aliança de esquerda se deu mais adiante com a Unidade Popular, que por duas vezes foi derrotada, chegando ao poder, em 1970, com Salvador Allende Gossens. Era uma aliança entre o Partido Socialista, o Comunista, radicais e novas agrupações, MAPU e Esquerda Cristã, com a mesma origem, mas desta vez rompendo com o centrismo da Democracia Cristã. Foi a original experiência de chegar ao socialismo por meios democráticos. Uma proposta que galvanizou entusiasmos pelo mundo inteiro. “La izquierda unida jamás será vencida.” Ela o foi, em setembro de 1973, com um sangrento golpe de estado e com o suicídio de Salvador Allende, como ocorrera com Balmaceda e, entre nós, com Getúlio. A ditadura pinochetista durará até 1990.
Começa depois um novo período, com uma aliança entre socialistas e democrata-cristãos, a Concertación, que governou de 1990 a 2010, por quatro períodos. Essa aliança perdeu fôlego no governo de Michele Bachelet e a direita chegou ao poder com Sebastián Piñera, que tentou se distanciar do pinochetismo.
Durante o governo de Piñera, em 2011, ocorreu o que se chamou a “revolução estudantil”, com fortes mobilizações, especialmente em Santiago. Esse movimento, aliás, já surgira durante o governo Bachelet e foi, em parte, responsável pela derrota da Concertación. Vale indicar a importância do movimento universitário no país. Antes mesmo do maio de 1968, no Chile, em setembro de 1967, os estudantes ocuparam a Universidade Católica de Santiago e provocaram uma reforma universitária. Esta foi enormemente criativa e teve, como teórico, o filósofo gaúcho exilado, Ernani Maria Fiori, nomeado na ocasião vice-reitor acadêmico.
Vários políticos chilenos começaram como dirigentes estudantis. Nas mobilizações de 2011, surgiram Giorgio Jackson, dirigente da U. Católica, com 30 anos, e Gabriel Boric, de 31 anos, da Universidade do Chile. Eles vão estar na criação da nova agrupação, a Frente Ampla. Nenhum dos dois podia ser candidato a presidente (idade mínima 35 anos), e lançaram o nome de uma jornalista, Beatriz Sanchez Muñoz, de 46 anos. Na Frente estavam treze pequenos partidos: ecologistas, anarquistas, socialistas fora da coalizão governamental, pequenas agrupações como Poder Cidadão, Nova Democracia, Partido Pirata (sic), Revolução Democrática… Isso indicava o sinal de uma crise dos partidos tradicionais e a emergência de lideranças novas, como o Podemos espanhol, no qual aliás se inspiraram. O partido tomou o nome da Frente Ampla uruguaia, que terminara ali com a alternância entre blancos e colorados.
Na eleição deste ano de 2017, as sondagens indicavam uma ampla maioria para o direitista Piñera, com 45% das indicações. Na verdade, teve 36,6%. A Frente Ampla, novíssimo partido, chegou em terceiro lugar com 20,3, pouco abaixo dos 22,72% da Nova Maioria governamental. Esta última reunia socialistas e comunistas com seu candidato Guillier, A novidade foi o surgimento de uma extrema direita, como em tantos países, com José Antonio Kart, o Bolsonaro de lá, com 7,9%. A surpresa foi a forte queda da democracia cristã, que desta vez se apresentou sozinha, com 5,0%. Mas o elemento preocupante foi uma altíssima abstenção de 54%, num país historicamente politizado e que saía de uma ditadura feroz.
Foi então necessário um segundo turno entre os dois primeiros. O fiel seria então a Frente Ampla. Mas ela dividiu-se: um grupo mais radical pregando a abstenção e outro dando um apoio crítico à Nova Maioria, como um mal menor. Com isso venceu Piñera. Dentro da Frente Ampla havia um grupo preferindo talvez uma volta da direita, para repetir contra ela as mobilizações de 2011 e tentar chegar com mais força adiante. Oportunismo eleitoral para uns, visão estratégica para outros.
A novidade, além das lideranças juvenis, foi o crescimento da presença feminina, que na próxima legislatura sobe de 15,8% para 22,5%. Ali se destaca Camila Vallejo, dirigente da juventude do Partido Comunista, com 29 anos. Ao lado, Karol Cariola, de 30 anos, que fora dirigente estudantil em Concepción. A surpresa foi a não eleição de Isabel Allende, filha de Salvador (nada a ver com a escritora do mesmo nome) e que chegou as ser presidenta da Câmara de Deputados.
O sociólogo chileno Eugenio Tironi vê nas eleições de 2017 não tanto uma tensão entre esquerda e direita, mas um apelo à renovação política. Eu diria, uma desconfiança de uma política tradicional. Essa atitude tem sua ambiguidade. Pode ser um apelo para uma transformação profunda do fazer política, mas também abrir espaço para uma política de direita, fantasiado de centro moderno, à la Doria ou Macron, que se apresentam disfarçados em gestores tecnocratas.
Estamos diante de um país profundamente dividido e com muitas tensões. É ali que chegou nestes dias Francisco, o bispo de Roma.
É preciso indicar que o Chile é um país laicista, como indicado também na realidade francesa. Não se trata apenas de uma separação Estado e Igreja, mas de uma cultura areligiosa e mesmo, em certos setores, antirreligiosa. Por cálculos, o Chile teria perdido um terço de seus fiéis, desde o momento em que João Paulo II apareceu com Pinochet no balcão do Palácio de la Moneda. Isso apesar da posição valente da Vicaria de la Solidariedad na defesa dos direitos humanos e de bispos, sacerdotes e leigos na mesma luta (atenção para e diferença entre laico e leigo). Ao chegar a Santiago, Francisco quis visitar o túmulo do bispo Alvear, valente em tempos dolorosos e com um processo de beatificação aberto. A comunidade jesuíta, com o Centro Belarmino e a revista Mensaje, jogaram um papel importante da redemocratização. E ali trabalhou o chileno Santo Alberto Hurtado.
Mas o que polarizou a visita, foi o relativo ao tema da pedofilia. Francisco – talvez sem ter boa informação -, nomeou bispo de Osorno a Juan Barros, que fora conivente com seu colega de sacerdócio, Fernando Karadima, que praticara a pedofilia desde 1984. Este último foi condenado pela Igreja e afastado para um lugar de penitência. O bispo de Osorno, quando de sua nomeação, não conseguiu entrar na catedral para tomar posse de seu cargo. A diocese se dividiu.
Francisco, no Palácio de la Moneda, diante da presidenta Bachelet e do presidente-eleito Piñera, pediu perdão ao povo chileno. Mas isso não foi considerado suficiente para algumas das vítimas, Uma declarou: “Basta de perdões e mais ação… Palavras vazias. São as vítimas que sentem dor e vergonha”. O fato do bispo ter participado da grande missa em Santiago provocou o protesto da esposa do ex-presidente Eduardo Frei Ruiz-Tagle, portanto democrata-cristã.
Antes da chegada de Francisco ao Chile, houve atentados em cinco igrejas e, durante a visita em outras três. Uma bomba molotov foi lançada na Paróquia da Divina Providência onde, em tempos da Unidade Popular, Ernani Fiori, sua esposa Hilda e o mais importante jurista do país, Novoa Montréal, eram ministros da eucaristia.
Um outro tema centralizou as atenções da comunidade LGBT. A presidente Bachelet, sem religião, fizera passar uma lei que aceitava o aborto em certas condições. Agora estava encaminhando outro projeto para legalizar as uniões homoafetivas. Com a visita do Papa o governo julgou pouco oportuna a discussão do tema. Ora, Bachelet tem poucas semanas como presidenta e Piñera declarou ser contra todas essas orientações de política reprodutiva. Daí o protesto nas ruas de Santiago, que levou a um “beijaço” coletivo. Já antes da chegada de Francisco, os grupos LGBT ameaçavam com organizar protestos.
Entretanto, houve momentos exemplares, como a visita a uma prisão de mulheres. E a ida às terras dos araucanos, indígenas aguerridos, que protestam por serem considerados de segunda classe. Ali Francisco começou sua fala na língua nativa, o que despertou entusiasmo.
De certa maneira, as ações não eram diretamente dirigidas contra Francisco, mas contra uma Igreja que trata mal os problemas da sexualidade e da reprodução. Voltando ao Chile, teremos possivelmente uma sociedade civil alerta, com capacidade de mobilização, não necessariamente dentro dos quadros estreitos dos calendários eleitorais.
Tenho apostado numa Frente Ampla Nacional, Popular e Democrática para o Brasil. Fico na esperança que o Chile, e Portugal, também com frente semelhante, sirvam de exemplo para os próximos e futuros passos em nosso país, com um governo ilegal e ilegítimo.
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Chile: eleições e mobilizações sociais na visita de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU