02 Setembro 2017
Para o ex-correspondente do Vaticano do Corriere della Sera, a contraposição à figura de Bento XVI é principalmente uma criação política. A novidade, segundo ele, é um pontífice criticado pela direita. Mas Bergoglio tem capacidades contagiantes.
A entrevista é de Alessandro Franzi, publicada por Linkiesta, 29-08-2017. A tradução de Luisa Rabolini.
Antigamente os papas eram contestados pela esquerda. Francisco é atacado pela direita, e isso cria polêmica tanto quanto a sua determinação de não mudar de rumo. Ele é atacado porque não defende aqueles que seu predecessor, ainda em vida, Bento XVI, chamava de valores não negociáveis. E também porque, sempre em relação ao outro pontífice, tem uma posição de maior abertura à imigração e às relações com o Islã.
Mas a Igreja Católica "não está mais dividida do que era antes, estamos na tradição, apenas a divisão é mais evidente", responde ao Linkiesta Luigi Accattoli, histórico correspondente no Vaticano do Corriere della Sera, agora aposentado, mas ainda colaborador do jornal.
A bandeira do papa Ratzinger desfraldada pelos tradicionalistas contra o papa Bergoglio, portanto, tem maior peso na discussão política e midiática - de acordo Accattoli – do que dentro da Igreja.
"O papa atual - afirma - não pode ser considerado um renunciador dos elementos canônicos da identidade católica, mas é considerado como tal quando se analisam as implicações políticas de sua ação". E se o pontificado de Francisco for bem sucedido, o próximo Conclave não poderá desconsiderar esse aspecto.
Accattoli, a Igreja está dividida em dois?
Não mais do que era antes, apenas a divisão está mais evidente. Houve situações semelhantes, nos pontificados de Bento XVI e João Paulo II, com protestos e apelos aos papas anteriores.
O que mudou?
Bento era criticado pela esquerda, tanto dentro como fora da Igreja. Agora a novidade é que a divergência vem da direita.
Uma das novidades é também a 'coexistência' de dois Papas, fato que nunca tinha acontecido em tempos recentes. Essa situação acentuou as divisões?
Até agora, não. A coexistência teoricamente pode promover o amadurecimento de um cisma, mas até agora não ocorreu e não há sinais que levem a crer que possa acontecer. A prudência eclesiástica levou ao longo dos séculos a desencorajar a renúncia dos papas, que aconteceram até o final da Idade Média, justamente por causa do perigo de um cisma e de um antipapa. A oposição a Francisco hoje é forte, mas um apelo a Bento como uma alternativa papal não existe. Ou melhor, não se origina de quem tem autoridade eclesiástica: o secretário da Lega (Nota de IHU On-Line: partido político da Itália), Salvini (Nota de IHU On-Line: ministro do governo italiano), pode dizer que o seu papa é Bento, mas a sua palavra não tem valor na Igreja.
Mas você fala que ainda há uma 'forte oposição’ ao papa. O que é contestado?
Como eu dizia antes, uma das novidades é que as oposições a Francisco vêm da direita. Não estávamos acostumados com isso, portanto as contestações causam maior celeuma. Estávamos habituados às críticas da esquerda, onde o tempo já havia temperado seus ataques, sabiam quando atirar as pedras e quando recuar.
E hoje, como eles se comportam?
Hoje, aqueles que contestam o papa são inexperientes e usam uma linguagem tosca. Eles dizem que a eleição é inválida, que Francisco é inadequado, é ignorante, é herege. Eles fazem muito barulho. Mas estamos dentro da tradição: quem não gosta do papa o contesta.
Não seria possível que o estilo de papa Francisco acabe por desorientar, após o entusiasmo inicial?
Esta é a segunda novidade que eu percebo: quando se perfilava uma dissidência, os outros papas moderavam os tons e até paravam com as reformas, como fez Paulo VI. Francisco não: ele não para as reformas e não corrige a linguagem. A sua é uma liberdade de expressão sem precedentes entre os papas dos últimos dois séculos: ele fala o que pensa. Considera urgente tanto uma profunda reforma, como uma forte inovação da figura papal. Ele fala abertamente isso, e, portanto, a contestação torna-se mais dura.
Do ponto de vista político-midiático, contrapõe-se Ratzinger a Bergoglio no âmbito da defesa da identidade cristã, que hoje seria mais fraca. É isso mesmo?
É assim na concepção de alguns acusadores: os identitários, precisamente. Mas objetivamente Francisco defende a identidade, basta lembrar os repetidos apelos para a confissão, que é um elemento fundamental da identidade católica, ou a devoção mariana, outro pilar. O papa atual não pode ser considerado um renunciador dos elementos canônicos da identidade católica, mas é considerado como tal quando se analisam as implicações políticas de sua ação.
E agora...
Francisco fez e faz declarações em defesa da vida, da família, do gênero. A diferença em relação ao passado é que estas afirmações não são dominantes. Ele não abandonou a identidade, mudou as prioridades.
No debate público, mais que em relação à família, as figuras de Bento e Francisco costumam ser contrapostas frente ao tema da imigração e das relações com o Islã. Quanta diferença existe entre os dois pontificados?
Como eu dizia, há uma diferença de prioridade. Antes de Francisco, a prioridade era direcionada aos princípios de valores e éticos, aqueles que Bento chamava de 'valores não negociáveis'. Agora, tais princípios são equiparados aos princípios sociais da solidariedade, do amor, da paz e dos direitos humanos.
No mundo católico, em sua opinião, como se vivencia essa mudança de prioridade?
Eu acredito que seja aprovada pela grande maioria das estruturas organizadas e do corpo da paróquia, ou seja, da base de praticantes que frequentam a missa aos domingos. A minha experiência como palestrante na Itália confirma isso: há sempre um núcleo crítico em todas as plateias, mas é sempre uma minoria. A mesma coisa acontecia na época do papa Bento XVI, ainda que a contestação tivesse outra orientação e estilo.
Que legado este Papa vai deixar ao seu sucessor?
Depende do que vai acontecer daqui até o Conclave. Se as coisas nos próximos quatro anos e meio continuarem com a mesma modalidade, de paz turbulenta, projetando para frente as nomeações e as decisões que Francisco está tomando, pode-se imaginar que o próximo Conclave vai eleger outro papa do Sul do mundo, ele dará prosseguimento, talvez com maior diplomacia, à obra iniciada por Francisco. Se, ao contrário, houver um endurecimento nos confrontos, provavelmente a escolha será direcionada com maior prudência, para trazer a igreja à situação anterior. Eu não acredito nesta segunda hipótese.
Em que baseia a sua confiança?
Na capacidade contagiante de Francisco. Porque é verdade que há um desconforto em relação a ele, mas também há um contágio exercido por ele e eu prevejo que vai ser progressivo. Ele mostrou isso em sua visita a Milão, em março último: não vimos apenas a emoção e a comoção popular, totalmente previsíveis, mas também uma grande adesão do clero. O próprio cardeal Angelo Scola afirmou naquela ocasião que ele estava começando a entender 'esse Papa' e falou dele como uma providência para o futuro da Igreja. Se Francisco se mantiver, como eu falava, ele irá ampliar sua ação contagiante e vai deixar um legado positivo.
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Accattoli: “A Igreja não está mais dividida do que antes, o Papa Francisco tem capacidades contagiantes” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU