18 Julho 2017
Por que liberais e fascistas se uniram para impor barreiras à atividade intelectual de Ruy Mauro Marini e à divulgação de sua obra? Que consensos o autor desafiou? Passados 20 anos de sua morte, como avaliar o legado da sua obra?
O comentário é de Carlos Eduardo Martins, doutor em Sociologia pela USP, professor do Programa de Estudos sobre Economia Política Internacional (UFRJ), coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ) e coordenador do Grupo de Integração e União Sul-Americana do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), publicado por Blog da Boitempo, 13-07-2017.
Este mês completa-se 20 anos da morte de Ruy Mauro Marini, um dos principais expoentes do pensamento crítico e do marxismo latino-americano. Ele foi um dos mais destacados formuladores da teoria marxista da dependência e dedicou sua vida à luta teórica e prática contra o desenvolvimento da economia mundial capitalista e as principais formas em que se manifestava – as estruturas excludentes do capitalismo periférico e o imperialismo –, vendo no socialismo a principal forma de enfrentá-los e superá-los.
Dirigente da POLOP e do MIR chileno, sofreu diversos exílios e ostracismos. Exílios das ditaduras militares no Brasil, em 1964, e no Chile, em 1973. Convites para se retirar do México em 1968/69 por sua influência intelectual no movimento estudantil durante a repressão desatada por Luis Echeverría, então Secretário de Governo e depois Presidente da República. De volta ao Brasil, a partir de 1982, foi marginalizado do debate acadêmico e político por uma intelectualidade emergente que buscou circunscrever a redemocratização ao compromisso com o modelo econômico legado pelo golpe de 1964, à sua reorientação para o neoliberalismo e aos limites da lei de anistia imposta pelos militares. Seu regresso ao país foi precedido de uma dura crítica à Dialética da dependência (sua obra mais conhecida, publicada nos Cadernos Cebrap em 1978) por Fernando Henrique e Jose Serra que, por incapacidade de interpretação ou má-fé, manipularam e deformaram livremente seu pensamento, aproveitando-se do desconhecimento do público brasileiro sobre seus escritos e da censura que impuseram à sua resposta, divulgada na Revista Mexicana de Sociologia, em polêmica aberta. Reintegrado à UNB em 1987, após sua expulsão sumária pela ditadura, apenas em 1992 publicou seu primeiro livro no Brasil, Dependência e integração na América Latina. Em 1993, volta ao México para assumir a direção do CELA/UNAM, retornando ao Brasil, já doente de câncer linfático, para falecer em 1997.
Mas por que liberais e fascistas se uniram para impor barreiras à sua atividade intelectual e à divulgação de sua obra? Que consensos o autor desafiou? Responder a essa questão exige fazer um levantamento ao menos sumário das principais suas contribuições. Marini deixou uma obra instigante e provocante que renovou o marxismo, formou diversas gerações de pesquisadores e projetou o pensamento latino-americano para os grandes centros influenciando a esquerda estadunidense e europeia. Ele lançou as bases de uma economia política da dependência ao desenvolver os conceitos de superexploração de trabalho, subimperialismo e padrão de reprodução do capital, e demonstrar a compatibilidade do progresso técnico com os esquemas de reprodução de Marx. Analisou a fragilidade das democracias latino-americanas formulando conceitos como os de Estados de contra-insurgência e Estados de 4º poder. Sistematizou e analisou criticamente as principais correntes do pensamento social latino-americano constituídas desde os anos 1920, bem como os dilemas do socialismo no século XX e no século XXI, que viria.
Para o autor, o capitalismo é um modo de produção mundial que se articula em formações sociais, as quais isoladamente não representam mais que formas particulares de sua lógica global. Tal visão rompe assim com o enfoque eurocêntrico que postulava serem a Europa Ocidental e os Estados Unidos a essência do capitalismo e sua expressão modelar, enquanto a América Latina e a periferia seriam regiões de atraso, marcadas por formas pré-capitalistas ou insuficientemente capitalistas de organização econômica, política e social. O capitalismo constitui-se através de uma economia mundial que institui uma divisão internacional do trabalho monopólica, hierarquizada e competitiva, baseada em formas distintas e complementares de especialização produtiva e gigantescas transferências de excedente e de mais-valia das periferias para os centros. A teoria marxista da dependência, ao lançar luz sobre o lugar da América Latina no sistema mundial capitalista, contribuía para desvendar sua gênese, suas estruturas e dinâmicas de evolução. Mais que uma teoria do capitalismo na periferia, constituía-se em ponto de partida para uma reinterpretação do capitalismo global e nos centros, mostrando as interconexões entre as distintas formações sociais que articulava.
A superexploração do trabalho seria uma consequência da forma como o capitalismo se estrutura nas periferias e na América Latina. Nelas ocorrem dois tipos de transferências de valor, fundadas em última instância no monopólio tecnológico, ainda que não só nele: das economias locais para a economia mundial, e da pequena e média burguesia para os segmentos monopólicos internos, constituídos pela burguesia nacional que se associa por meio da dependência tecnológica, comercial e financeira, e pelo próprio capital estrangeiro. Tais transferências seriam mais dinâmicas que a própria geração local de mais-valor, reproduziriam economias mundiais e internas cada vez mais assimétricas, e teriam como consequência a apropriação de parte do valor da força de trabalho pelo capital, como forma de compensação. Esta apropriação se daria com a queda dos preços da força de trabalho por debaixo do seu valor e se efetivaria sob a forma combinada ou isolada de redução salarial, aumento da intensidade, da jornada de trabalho e aumento da qualificação da força de trabalho sem pagamento proporcional ao trabalhador.
A superexploração limitaria a expansão do mercado interno, uma vez que a redução do valor da força de trabalho independentemente da produtividade seria um dos recursos utilizados no capitalismo dependente para baixar custos de produção e compensar as pressões competitivas dos monopólios internacionais e internos. Entretanto isso exigiria, para sua efetivação, altos níveis de desemprego e limitações ao exercício da soberania popular, comprometendo parcialmente a capacidade de geração de progresso técnico, uma vez que esta depende da qualificação da força de trabalho. Assim, os amplos níveis de desigualdade e pobreza, a fragilidade de nossos sistemas de educação, ciência e tecnologia e de inovação, a instabilidade democrática e os golpes de Estado seriam parte do constitutiva do capitalismo na América Latina e não uma excepcionalidade – esta sim referida aos períodos de inclusão e ampliação do mercado interno, de fortalecimento democrático e de afirmação da soberania produtiva e popular.
Todavia, a integração tecnológica gerada pelo capital estrangeiro tenderia se chocar com os limites do mercado interno, levando, para a realização de mercadorias, à ênfase no consumo suntuário, nas compras estatais e no desdobramento para o mercado externo. Criaria-se o espaço para o subimperialismo nos países onde a burguesia alcançasse um diferencial de composição técnica do capital em relação aos seus vizinhos, tendo ao alcance mercados regionais, sem nenhum competidor externo importante, para os quais pudesse orientar a produção manufatureira e obter fontes de matérias-primas e suprimentos estratégicos. O subimperialismo se desenvolveria nos marcos de uma política de cooperação antagônica entre países dependentes e imperialistas, mas estaria ao alcance apenas de alguns dos países dependentes. Nestes, o subimperialismo disputaria a primazia com o alinhamento radical à potência hegemônica, podendo ser ou não a alternativa hegemônica de políticas públicas.
Nos anos 1990, no contexto de um amplo balanço do pensamento social latino-americano que apenas iniciou em suas Memórias e continuou na série Teoria Social Latinoamericana que coordenou na UNAM, Marini menciona a necessidade de se retomar o fio da teoria da dependência dos anos 1970 de modo criador e transcendê-la, seja para avançar na construção de uma teoria marxista da dependência, que depure a teoria da dependência de suas aderências funcionalistas e desenvolvimentistas, seja para avançar na análise dos processos de reestruturação do capitalismo mundial impulsionados pela globalização, com profundos impactos sobre sua economia política e o sistema interestatal. Nesse sentido, em seus últimos trabalhos, o autor menciona a necessidade de se estender o conceito de superexploração aos países centrais para analisar as transformações provocadas pela globalização no capitalismo mundial. Segundo Marini, o deslocamento do monopólio tecnológico para ciência e o aumento das escalas produtivas que orienta a produção para mercados mundiais criam uma nova fonte de mais-valia extraordinária mundial na combinação entre tecnologia de ponta e força de trabalho superexplorada, passando a regular os salários nos países centrais pelos da periferia.
Passados 20 anos da morte de Ruy Mauro Marini, como avaliar o legado da sua obra?
Marini morreu em pleno auge do neoliberalismo e embora tenha esboçado no México certos elementos para a retomada do pensamento latino-americano não chegou a presenciar mais que o início de sua nova ofensiva, que permitiu a retomada e desenvolvimento de sua obra pelas novas gerações, rompendo parcialmente o bloqueio que a ela fora imposta, principalmente no Brasil. Ao denunciar o caráter superexplorador do capitalismo dependente, ele colocava em cheque as ilusões do pensamento desenvolvimentista e o discurso de modernização social do liberalismo brasileiro e latino-americano, mostrando sua tendência à convergência com os setores mais conservadores.
Homem generoso e dedicado formou gerações e gerações de pesquisadores. O conheci, a partir de contato mediado por Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra, e dele recebi ampla acolhida em minhas iniciativas de pesquisa durante o mestrado, quando me orientou na leitura de O capital durante um ano e meio, em sessões mensais que duravam 3 a 4 horas em sua casa.
O rompimento do bloqueio à obra de Marini surgiu de um conjunto de fatores que se articularam: a publicação de sua obra na internet em site hospedado na UNAM permitiu amplo acesso a mesma; a crise do neoliberalismo na América Latina despertou o interesse da juventude sobre seus escritos; a reorganização da capacidade de pesquisa do pensamento crítico latino-americano através de organismos como CLACSO, SEPLA e ALAS, que fogem ao controle das agências nacionais de fomento dirigidas em geral pelo pensamento conservador e liberal; o trabalho ativo de pesquisa das novas gerações; a penetração de suas ideias nos movimentos sociais; e a publicação de diversos livros sobre sua obra, entre os quais a pioneira coletânea brasileira publicada em 2009, pela Boitempo, América Latina e os desafios da globalização: ensaios dedicados a Ruy Mauro Marini, organizada por mim e Adrián Sotelo Valência e coordenada por Emir Sader e Theotonio dos Santos.
A história da América Latina no século XXI evidencia a força das teses e da obra de Marini. Entre os principais aspectos que a reforçam podemos indicar:
(a) O abandono da burguesia latino-americana de qualquer pretensão industrialista e soberana em favor da financeirização e do modelo exportador centrado na reprimarização, nas maquilas, em nichos de mercado agroindustriais ou voltados para a geração de partes e componentes de menor intensidade tecnológica;
(b) A forte resistência às experiências nacionais-populares promovidas pela ascensão das esquerdas e as tentativas de desestabilizá-las, bem como as reformas sociais e políticas de inclusão social impulsionadas pelos governos de centro-esquerda na América do Sul;
(c) A restauração conservadora e neoliberal realizada através de golpes de Estado, como no Brasil, Paraguai e Honduras, ou por apertadas vitórias eleitorais, como na Argentina, cujo objetivo é destruir direitos sociais, restabelecer as elevadas taxas de superexploração, privatizar o patrimônio público, e aumentar a desigualdade e as taxas de pobreza
(d) O restabelecimento do subimperialismo como variável chave na política externa brasileira com a pretensão dos governos petistas de impulsionarem as cadeias produtivas industriais brasileiras, sem inseri-las de maneira efetiva em marcos institucionais de integração regional cooperativos que lhes planificassem; e
(e) A forte ampliação dos níveis de desigualdade e a elevação dos níveis de pobreza nos Estados Unidos, a partir da combinação entre finaceirização e deslocalização produtiva para a China e o México, ou na União Européia, a partir da introdução do euro e da combinação na Alemanha entre alta tecnologia e baixos salários, oriundos da absorção da força de trabalho do Leste, para destruir e reverter a lenta convergência do nível de renda que se realizava entre a Europa mediterrânea ou latina e o norte europeu.
No plano teórico e analítico o enfoque marxista da dependência tem se desdobrado de forma criativa nas seguintes direções neste século:
(a) No caminho, destacado por Marini, de inversão dos fluxos colonial e eurocêntrico das ideias que passaram, nos anos 1970, com a Teoria da Dependência, a influenciar os Estados Unidos e a Europa Ocidental desde a América Latina. Trata-se então para prosseguir neste caminho de compreender a teoria marxista da dependência como uma primeira etapa da construção de uma teoria marxista do sistema mundo, que não apenas avança na ressignificação das teorias do imperialismo dos anos 1910-20, mas também dos enfoques mais recentes de Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e Beverly Silver;
(b) Na análise dos padrões de reprodução do capital na América Latina, mostrando sua vinculação com a financeirização, o neoliberalismo, os ciclos econômicos e a revolução científico-técnica;
(c) No estudo do conceito de superexploração do trabalho, sua gênese e suas novas formas de concreção;
(d) Na investigação das novas expressões do subimperialismo na América Latina;
(e) Na análise dos novos padrões de reprodução ideológica da dependência em nossa região
(f) Na investigação da crise da democracia liberal, da natureza dos Estados de exceção latino-americanos e de sua proximidade com o fascismo;
(g) Na elaboração do desenho estratégico dos processos de emancipação de nossos povos da dependência, enfatizando sua geopolítica regional e mundial, sua base de classes, étnica, social, ambiental e seus eixos político-institucionais
Apesar dos avanços nos últimos anos há muito o que se fazer. O desenvolvimento da teoria marxista da dependência segue encontrando resistência na esquerda centrista, que cada vez mais perde espaço diante da violenta restauração neoliberal, e na esquerda pós-moderna, que pretende priorizar as questões identitárias e ambientais, mas em detrimento das classes sociais, do Estado e da geopolítica mundial como instrumentos de análise, de poder e de transformação.
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Para aprofundar a reflexão, recomendamos a leitura de Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência, uma reinterpretação coletiva da história latino-americana feita por Jaime Osorio, Marcelo Carcanholo, Mathias Luce, Carla Ferreira e Marisa Amaral, além o próprio Ruy Mauro Marini – que formam duas gerações de vigorosa tradição da teoria marxista da dependência; e da Revista Margem Esquerda n.17, que abre com uma aprofundada entrevista de Vânia Bambirra a Carlos Eduardo Martins, além do mencionado A América Latina e os desafios da globalização.
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A teoria da dependência, 20 anos depois de Ruy Mauro Marini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU