29 Mai 2017
Em termos de percepção pública geral, o Papa Francisco é visto como hostil ao capitalismo e nem um pouco amigo da cultura corporativa. No entanto, sábado, em Gênova, ele deixou uma mensagem sobre a atividade empresarial digna de um programa de MBA, entre outras coisas dizendo que explorar os trabalhadores não só é imoral, mas também economicamente autodestrutivo.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 28-05-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
No nível do imaginário público geral, o Papa Francisco é normalmente visto como um crítico do capitalismo e hostil tanto às grandes empresas quanto à economia de livre mercado. Sábado, no entanto, foi um daqueles dias em que estereótipos são deixados de lado, com Francisco deixando claro que, na verdade, ele possui uma noção um tanto romântica do que é, afinal, o mundo dos negócios.
A ocasião era uma visita à cidade portuária italiana de Gênova, de onde, conforme o próprio pontífice recordou, a sua família saiu em busca de uma vida nova na Argentina. Francisco fez uma escala na famosa siderúrgica de Ilva, conhecida pelos altos índices de poluição, acidentes fatais nos locais de trabalho e escândalos de corrupção.
Trabalhadores de capacete ficaram alegres com a presença papa, entoando “Francesco, Francesco!” enquanto ele os saudava.
Na usina, empresários, trabalhadores e desempregados dirigiram perguntas ao papa, e o diálogo resultante talvez seja o mais próximo que temos de como o líder católico enxerga a atividade empresarial.
“O mundo do trabalho é uma prioridade humana”, disse Francisco, “e também uma prioridade do Papa. Sempre houve uma amizade entre a Igreja e o mundo do trabalho, começando por Jesus trabalhador”.
Apesar de seu suposto ceticismo para com o setor que visa o lucro, Francisco professou uma admiração profunda pelos empreendedores e donos de empresas.
“Não há boa economia sem um bom empresário, sem a sua capacidade de criar, criar trabalho e criar produtos”, disse.
Com efeito, no sábado Francisco trouxe quatro pontos de gestão empresarial:
• Explorar e maltratar trabalhadores não só é errado moral e espiritualmente, é economicamente autodestrutivo.
• O conceito de “meritocracia”, que está no cerne de certas retóricas autocongratulantes do capitalismo, é falso.
• Existe diferença entre empreendedorismo e “especulação”, com o primeiro sendo nobre, e o segundo perigoso e antiético.
• Empresas bem-sucedidas são essenciais para a democracia.
No primeiro ponto, o papa sustentou que, quando põe uma ênfase indevida na competição, a cultura corporativa lança as sementes de sua própria morte.
“Muitos dos novos valores das grandes companhias e dos sistemas financeiros não condizem com a dignidade humana e com o humanismo cristão”, falou. “A ênfase na competição, além de ser um erro antropológico e cristão, é um erro econômico porque esquece que uma empresa é, antes de tudo, cooperação”.
“Quando é um sistema de incentivos individuais que põe os trabalhadores em competição entre si, podem-se obter algumas vantagens, mas ele acaba arruinando a confiança que é a alma de toda organização”, defendeu o papa. “Quando ocorre uma crise, a empresa desmorona. Ela implode, porque não há mais acordo algum”.
Observe que não se trata primeiramente de um juízo moral contra uma concepção exclusivamente competitiva das coisas, e sim um juízo empresarial.
Em seguida, o papa tentou desbancar a ideia de que a distribuição da riqueza no mundo pós-moderno é, principalmente, o resultado de uma “meritocracia” em ação.
“[Essa ideia] nos fascina porque emprega uma boa palavra: ‘mérito’, porém a emprega num sentido ideológico”, disse. “Explorando a boa-fé de muitos, ela dá legitimidade ética para a desigualdade”.
“O novo capitalismo, através da ideia da ‘meritocracia’, dá cobertura moral para a desigualdade”, continuou Francisco. “Ele vê os talentos das pessoas não como um dom, mas como um ‘mérito’, determinando um sistema de vantagens e desvantagens”.
O papa defendeu que a ideologia de uma “meritocracia” colore também o modo como vemos os pobres.
“Uma segunda consequência [de uma ‘meritocracia’] é uma mudança na cultura da pobreza”, falou. “A pessoa pobre é considerada sem mérito e, portanto, culpada. Ela é desonrada. Essa é a velha lógica dos amigos de Jó, que queriam convencê-lo de que era culpado”.
“Não é essa a lógica”, disse Francisco, “do Evangelho ou da vida”.
O pontífice também traçou uma distinção nítida entre a atividade empresarial, que ele obviamente estima em parte porque fornece emprego e um senso de dignidade aos trabalhadores, e o que chamou de “especulação”, pelo que aparentemente quis dizer uma mentalidade exclusivamente orientada para o lucro, indiferente para com as necessidades e aspirações dos envolvidos.
“Lembro-me de um homem [que certa vez veio até mim chorando]. Veio para pedir uma graça”, disse. “Este homem me falou: ‘Estou no meu limite e tenho de declarar falência, preciso deixar ir 60 trabalhadores e eu não quero, parece como se fosse demitir a mim mesmo”.
“Ele era um bom empresário”, disse o papa. “Ele louvava e orava por essas pessoas, pois elas eram a sua família. Ele se sentia ligado a elas”.
“Uma doença da economia é a transformação progressiva dos empresários em especuladores”, continuou o papa em seu discurso. “O especulador é uma figura parecida com aquela que Jesus no Evangelho chama de ‘mercenário’, em oposição ao Bom Pastor. O especulador não ama a sua empresa, não ama os trabalhadores, mas vê a empresa e os trabalhadores como meios para obter lucro. Demitir, fechar, mudar a empresa não criam nenhum problema para ele, porque o especulador usa, instrumentaliza, se alimenta de pessoas e meios para alcançar seus objetivos de lucro”.
Finalmente, o papa traçou uma relação entre o setor empresarial e a saúde de uma democracia. “Quando não se trabalha ou se trabalha pouco, mal, ou muito, é a democracia que entra em crise”, segundo ele. “Existe um pacto social”.
Francisco pareceu até mesmo questionar aquilo que os ingleses chamariam de um “Estado babá” ao dizer: “Um cheque mensal do Estado que lhe permite sustentar a família não resolve o problema. Este precisa ser resolvido com trabalho para todo mundo”.
É preciso enfatizar: nada disso faz do Papa Francisco um apologista do capitalismo laissez-faire neoconservador. Ele basicamente é um populista latino-americano cujas simpatias sempre estarão com a força trabalhadora antes do que com as gerências; é um líder que mantém uma aposta cética quanto à fibra moral das enormes operações corporativas.
Não obstante, o que se ouviu nesse dia igualmente confirma que o Papa Francisco não é, em princípio, hostil à vida empresarial ou à busca pelo lucro, e o que ele procura não é implodir o capitalismo, mas torná-lo sustentável no longo prazo – porque, a seu ver, o respeito pela dignidade humana é também uma prática empresarial boa.
Em outras palavras, foi Francisco como CEO que ouvimos no sábado, tanto quanto ouvimos Francisco na qualidade de papa. Dadas as percepções públicas do pontífice, esta pode ter sido, finalmente, a revelação de que ele fala, de fato, a linguagem dos empreendedores e gerentes corporativos.
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Um papa supostamente anticapitalista canaliza o seu empreendedor interior - Instituto Humanitas Unisinos - IHU