29 Março 2017
Na primeira parte da entrevista com Alphonse Borras, muitos foram os temas abordados: da ilusão de um renascimento das vocações sacerdotais às tentativas de suprir a falta de sacerdotes, dos coordenadores de pastoral laicos ao recurso a padres estrangeiros, do investimento em diáconos à responsabilidade pastoral das religiosas. Nesta segunda parte, o teólogo e canonista belga também aborda a questão dos "viri probati" (homens casados, de fé comprovada, que podem se tornar padres) e "da ordenação de mulheres".
A entrevista é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 23-03-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Monsenhor Borras, por que o senhor considera adequado como solução "excepcional", o recurso aos "viri probati" e sugere fazê-lo antes do definhamento de uma Igreja local?
Eu acho que ao longo dos séculos, a disciplina do clero celibatário generalizou-se após as decisões do Concílio Lateranense III (1179) e IV (1215) e foi re-lançada pelo Concílio de Trento, época em que ainda havia, apesar do direito canônico, padres concubinos. Reservar o sacerdócio para os celibatários foi o resultado de um estudo espiritual e pastoral da ligação entre ministério e celibato: é um tesouro da Igreja católica latina que ainda pode mostrar toda a sua riqueza de significado: disponibilidade profissional, dedicação mais intensa aos fiéis, solidariedade com os celibatários "forçados" pela existência, expressão de um dom de toda a própria pessoa por uma adesão a Cristo, sinal de que Deus pode preencher uma vida, significado escatológico que revela o caráter efêmero da existência e antecipa a esperança de uma plenitude de vida – Deus todo em tudo - e muito mais. Um tesouro a ser valorizado.
Por outro lado, Igrejas ou comunidades eclesiais não católicas redescobrem o interesse e alcance de um ministério eclesial vivido no celibato. Seria lamentável que a Igreja Católica Latina mudasse sua disciplina geral. Mas, por causa de circunstâncias pastorais e, especialmente, pelas necessidades efetivas de direção eclesial e eucarística, não poderiam ser aceitas para o bem das almas - lei suprema da Igreja - possíveis exceções? Mesmo que fossem numerosas, elas continuariam exceções mutatis mutandis, como, por exemplo, os muitos casamentos mistos por disparidade de culto que não são a regra, mas fruto de uma exceção por dispensa da lei eclesiástica. O maior número desses casamentos hoje, não coloca em causa o bom fundamento da regra.
Para o bem dos fiéis e de suas comunidades, podem-se prever exceções ao celibato sacerdotal. Espero que o papa, por exemplo, através de um motu proprio, possa declarar que não reserva mais para si a dispensa do impedimento para o casamento, e que dá a oportunidade de acordá-lo às Conferências Episcopais ou às províncias eclesiásticas. Já em seu discurso de 17 de outubro de 2015 o Papa Francisco disse que as questões disciplinares, de acordo com as necessidades da igreja local, poderiam ser resolvidas pelas Conferências Episcopais.
Autorizada a dispensa, os bispos interessados poderiam definir os perfis dos homens casados que escolheriam para serem ordenados. Em algumas dioceses mais carentes, os bispos poderiam optar pelos próprios diáconos que já conhecem, e dos quais apreciam a fé e o zelo pastoral. Isto pressupõe um sólido discernimento para não eliminar a renovação do diaconato permanente.
Por isso é muito importante que isso seja discutido ao nível das Conferências Episcopais ou das províncias eclesiásticas para evitar o caso a caso, com bispos que apresentariam diretamente a Roma seus viri probati. Finalmente, entre o momento em que o papa toma esta decisão e a ordenação do primeiro homem casado vão se passar alguns anos. Tempo suficiente para nos perguntarmos: que tipo de presença da Igreja precisamos? Que tipo de sacerdote queremos e para que missão no mundo de hoje? ... Em suma, chamar um ou outro homem casado para a ordenação presbiteral prevendo que um dia será possível, não deveria ser feito à custa de uma reflexão geral sobre o sentido da missão da Igreja e do seu serviço de direção eclesial e eucarística.
O padre H. Legrand escreveu em 1978: "intervir tarde demais, em comunidades anêmicas, quando os instrumentos de formação já estão rarefeitos, pode causar a total inoperância de tal decisão". E o colega acrescentou: "uma lei geral sobre o assunto não é o ideal: a análise rigorosa das situações locais parece, do ponto de vista cristão e pastoral, mais prudente". A minha proposta de confiar às Conferências Episcopais a dispensa do impedimento matrimonial vai precisamente neste sentido".
O que pode ser dito, de acordo com o magistério e consciência eclesial de hoje, sobre a ordenação de mulheres?
"É um tema "inevitável": proteger-se com o rótulo de "definitivo" pode dar a impressão de que a Igreja seja intelectualmente incapaz de pensar as condições de sua missão. As mutações antropológicas em curso – a igualdade dos sexos tornou-se uma espécie de "virtude cardinal" - exigem a experiência cristã e a sua capacidade de reinterpretar a si mesma em contato com o ambiente. A teologia não foi uma repetição de verdades absolutas e atemporais, mas diálogo e reinterpretação constante com a sociedade coeva.
Um diálogo nem sempre honrado; a história da teologia atesta, infelizmente, a existência de períodos de "repetição autorreferencial" de afirmações doutrinais. Isto não é sem consequências quando se trata de pensar teologicamente novamente a ordenação de mulheres cristãs. O que está em jogo não é apenas a credibilidade da teologia, mas a capacidade da comunidade eclesial de se repensar no mundo de hoje. O debate sobre a eventualidade da ordenação deve (ou deverá) enfrentar primeiramente o androcentrismo ambiental, as marcas da discriminação patriarcal ligadas à diferença e, principalmente, a subordinação sexual das mulheres. É hora de se empenhar em uma crítica - teórica e prática – do androcentrismo e das suas consequências na vida eclesiástica.
A segunda etapa da reflexão teológica sobre o assunto é a de considerar os vários argumentos para negar a ordenação de mulheres cristãs e, sobretudo, os seus pressupostos hermenêuticos. A Igreja não se considerada "autorizada" para alterar sua posição..., mas uma consideração serena, ponderada, refletida dos pressupostos argumentativos usados, vai abrir o caminho para uma apreciação mais equilibrada do assunto. Por enquanto, o sacerdócio fica reservado aos homens. Para o nosso propósito, não há qualquer remédio em curto prazo para a escassez de sacerdotes quando se olha para a possibilidade da ordenação de mulheres.
As mulheres são, no entanto, a grande maioria dos laicos que trazem diariamente o testemunho do Evangelho. Na verdade, em termos de serviços essenciais para a missão da Igreja, elas representam um corpo importante de colaboradoras pastorais. Sua colaboração está ligada à sua personalidade, gostos e afinidades, experiência de vida, história pessoal, e não apenas ao seu sexo, entendido aqui como gênero (ou ‘sexo social’), nem às características culturais (estéreo)típicas da feminilidade.
A sua contribuição não é reduzida à pretensa natureza "feminina" das tarefas e responsabilidades a elas permitidas. Claro, é reconhecido a elas um tipo de liderança mais dinâmica, porque mais relacional, transformadora, capaz de se envolver emocionalmente através da atenção, da disponibilidade, da gratuidade, da empatia, mas também através da capacidade de construir o conjunto e estreitar os laços. Sua liderança mais interativa incentiva a participação e promove a resolução de conflitos.
No atual contexto de mudança, e em função de uma eclesiologia participativa, não seria esse o estilo de liderança mais esperado? Tudo isso nos leva de volta ao dado fundamental da co-responsabilidade batismal de todos com a missão.
Para possíveis escolhas futuras, quanto pode pesar o tradicionalismo, o eclesiocentrismo e o clericalismo?
Refletindo cuidadosamente, parece-me que o denominador comum dessas três atitudes que perpassam a vida Igreja seja o...medo!
Primeiro, o tradicionalismo. É o medo de enfrentar com confiança o presente, que é o tempo que nos é dado viver, concretamente, a presença de Deus no mundo de hoje. Não há nenhuma razão para pensar que o Deus cristão - o Deus de um povo abraâmico – seja hoje menos fiel do que antigamente.
O eclesiocentrismo ó o medo de enfrentar a presença do mundo em que a Igreja é chamada a proclamar as maravilhas de salvação, medo de entrar em diálogo com o hoje, de aprender com nossos contemporâneos para procurar e descobrir com eles os vestígios do Reino; é também o medo de sair, o medo de viver o nosso DNA, que é a missão. Diz o Papa Francisco, a Igreja não tem o seu fim em si mesma!
O clericalismo, por fim, também é marcado pelo medo: o dos laicos, o medo de perder o poder, o medo de ser desafiado ou questionado, o medo de caminhar humildemente com os nossos irmãos e irmãs na fé, assim como o de ser ensinados por eles, pelo sensus fidei fidelium. Em resumo, o medo de ser um batizado como os outros, na escuta da Palavra, mendicante do pão eucarístico, nutrição de todo um povo em sua caminhada!
O modelo de exercício do ministério presbiteral é cada vez mais concentrado no pároco. Poderia ser diferente?
A diversidade sempre existiu. Não deve ser pensada "em si", mas em função da comunidade, ou seja, em função da disposição da Igreja local – em cada local - através de uma pluralidade de comunidades. E, primeiramente, a paróquia: ela garante grande parte da visibilidade da Igreja local; é a "casa aberta", a "fonte para todos", o "redil" para quem quiser chegar. O ministério na paróquia, mais claramente do que nos movimentos e associações, nos coloca em contato com pessoas que não escolhemos, que nos foram confiadas como elas são e não como gostaríamos que elas fossem (ou como sonharia o movimento). Diz François Moog, um colega da pastoral de Paris, é o ‘privilégio concedido aos pobres’: qualquer um que está ‘em algum lugar’ por estar ‘em algum lugar’ pode-se sentir em sua própria casa, na Igreja como um simples domicilio.
A paróquia não é o único lugar para ser parte do Evangelho anunciado, celebrado e testemunhado. O Papa Francisco recorda-nos: ‘A paróquia não é uma estrutura caduca’ (EG 28). A instituição da paróquia reestrutura-se em novas figuras. Mas, como no passado, temos também que contar com a presença e com a inferência de outras realidades da Igreja, que, por sua vez, permitem à Igreja que se realize em outro lugar: santuários, escolas, hospitais, capelas hospitalares, prisionais e escolares, meios de comunicação católicos, centros de formação, mosteiros e abadias etc. Ao contrário do passado, essas realidades eclesiais são eventualmente a porta para um primeiro ou regular acesso à vida da Igreja e ao tesouro da fé.
São lugares que não excluem a paróquia que conserva a sua originalidade, ou seja, a territorialidade e a catolicidade. Mas hoje, mais do que ontem, especialmente nas cidades, é nesses lugares que os nossos contemporâneos, na crista das vicissitudes da vida, descobrem algo da riqueza do Evangelho, caminham junto com outros crentes e professam a fé da Igreja. Estes locais estão incluídas no espectro plural da anunciação do Evangelho em uma igreja local. Cabe à autoridade episcopal, em razão do seu ministério de unidade, promover e assegurar sua articulação, ou melhor, a comunhão entre as diferentes realidades eclesiásticas.
De passagem, deve-se dizer que não escapa a ninguém que essas outras realidades eclesiais não podem contar com numerosos sacerdotes como no passado. Mas a experiência nos ensina que, na maioria delas, os fiéis que participam contribuem pessoalmente para a sua vitalidade e desenvolvimento. Os padres ainda são reconhecidos no seu papel: eles são o ponto de ligação entre elas e o resto da diocese em virtude de seu pertencimento ao mesmo presbitério, presidido pelo bispo.
A urgência da evangelização e das decisões em vista do futuro pode suportar uma discussão corajosa e livre sobre o ministério ordenado?
Além da divulgação midiática e magisterial do Papa Francisco, poderíamos nos questionar se as Igrejas locais e os seus pastores estão suficientemente conscientes do indispensável discernimento para encontrar novos caminhos para a missão. Eu tenho a impressão que a palavra do Papa transmite segurança, mas que não são levadas suficientemente a sério as condições da missão, as perguntas dos nossos contemporâneos "que moram entre nós", as exigências concretas de nos tornarmos "discípulos-missionários" (EG 120). O que eu considero mais importante no meu livro não são as soluções ou receitas para fazer a mesma coisa com menos padres, mas de envolver a natureza intrínseca de toda a comunidade eclesial.
A urgência da evangelização abre uma discussão corajosa sobre a missão. Certamente precisamos de sacerdotes. Mas para qual missão ou missões? O texto sugere uma segunda questão igualmente essencial: sacerdotes sim, mas para qual comunidade? Isto questiona a Igreja e o testemunho dos batizados no mundo de hoje. Será que realmente devemos nos preocupar com a carência de padres? Não deveríamos talvez nos inquietar mais com a comunicação do Evangelho, no sentido literal do termo (ser ou permanecer sem descanso, portanto sem trégua)? É uma inquietação que temos que viver no meio da multidão de uma imensa procissão de testemunhas - de "discípulos-missionários" - que, no séquito do Paulo, não cessam de repetir: "Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho!
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"Estão faltando padres". A questão dos 'viri probati'. Entrevista com Alphonse Borras, canonista belga - Parte 2 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU