07 Março 2017
"Estamos em um ponto crucial em relação aos abusos sexuais do clero. Sim, a responsabilidade é de Francisco, mas cabe não apenas ao papa, mas a todos no Vaticano abordar as repercussões de abusos com vigor e acabar com a atmosfera que permitiu que esse crime - e pecado - ocorresse por séculos", afirma o editorial de National Catholic Reporter, 03-03-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Eis o artigo.
A renúncia de Marie Collins da Comissão Pontifícia para a Tutela de Menores é uma virada no pontificado de Papa Francisco. Não há como ver de outra maneira. Apesar de toda a esperança e a promessa que encontramos em Francisco e em sua visão para a Igreja, acreditamos que seu pontificado beira o fracasso na questão de abusos sexuais pelo clero.
Por três anos e meio, Francisco prometeu tomar medidas reais para responsabilizar as esferas superiores da Igreja e ajudar na cura dos sobreviventes. Agora a comissão criada por ele para isso deve enfrentar sérias dúvidas de credibilidade.
Por sua parte, Francisco precisa tomar alguma ação pública decisiva sobre a questão. Ele deve dar autoridade à comissão - uma comissão em pleno funcionamento não pode operar sem orçamento, equipe permanente e sem poder contratar experts de fora. Além disso, Francisco deve agir para garantir que os dicastérios do Vaticano e suas equipes colaborem integralmente com a comissão. Aqueles que frearem deliberadamente o trabalho da comissão, independente do nível da Cúria que representem, devem ser substituídos por membros comprometidos com a extinção destes escândalos.
Mas há algo mais profundo em jogo aqui. Se houver apenas uma maior presença das lideranças, funcionários dedicados e salas de escritório, podemos não alcançar uma completa reforma das estruturas, o que o problema exige. A resistência à mudança enraizada na cultura clerical masculina é uma questão pouco debatida que está no cerne dos escândalos desde que a primeira grande notícia sobre isso apareceu nestas páginas há mais de 30 anos.
O bispo Vincent Long Van Nguyen declarou isto claramente, mas a Austrália atravessou três anos de exame público de consciência, do qual outros membros da Igreja têm se esquivado. A tarefa urgente de Francisco é mudar esta cultura clerical elitista. Ele já se pronunciou sobre isso, mas agora é hora de agir.
É preciso trazer alguns pontos para quem ainda possa pensar que abordar a cultura clerical mais uma vez é superestimar o assunto. É evidente que o abuso sexual infantil não acontece apenas - nem em sua maioria - dentro dos limites do sacerdócio católico. Na verdade, a maioria dos abusos ocorre na sociedade em geral e em contextos de família, entre aqueles em que as crianças aprenderam a confiar.
O abuso na Igreja Católica, no entanto, é um crime - e pecado - único por várias razões ligadas à cultura clerical.
Em primeiro lugar, os culpados afirmam que, por força da ordenação, há uma diferença ontológica do resto da humanidade, uma separação expressa na crença de que são "in persona Christi", que os garante acesso aos canais da graça e do perdão de Deus.
Em segundo lugar, eles pertencem a uma cultura fechada e exclusiva, com suas próprias leis arcaicas e processos judiciais, geralmente escondidos; uma cultura que gozou de grande deferência da lei e dos tribunais, bem como de católicos comuns.
Finalmente, esta cultura por muitos anos foi liderada por homens que, como se demonstra para além de qualquer discussão, priorizam a preservação do seu estatuto privilegiado e da reputação de sua cultura sobre a percepção da destruição profunda dos mais vulneráveis na comunidade.
Sabe-se agora que todo o investimento emocional e intelectual das vítimas, todas as nobres palavras e intenções de inúmeros bispos que tiveram que reconhecer a profunda corrupção da instituição, todo o esforço em prol de alguma forma de justiça por aqueles na cultura secular mais ampla, não significam nada na comunidade se a cultura clerical continua a se recusar a enfrentar a si mesma e seu papel arraigado e inflexível na sustentação dos escândalos de abuso sexual.
Não há como negar o progresso - e a própria Collins aprecia o vigor com que Francisco lida com o problema no mais alto nível da Igreja. Mas, como ela afirma, se seus esforços não se concretizarem em níveis mais baixos de maneira consistente, nada vai mudar.
Estamos em um ponto crucial em relação aos abusos sexuais do clero. Sim, a responsabilidade é de Francisco, mas cabe não apenas ao papa, mas a todos no Vaticano abordar as repercussões de abusos com vigor e acabar com a atmosfera que permitiu que esse crime - e pecado - ocorresse por séculos.
O que precisamos para finalmente deixar estes escândalos para trás é um coro de vozes clericais exigindo a reforma da própria cultura, exigindo que a casta clerical masculina envolva-se no doloroso trabalho de entender no que sua cultura se tornou e como pode estar tão deformada a ponto de justificar o que alguns dizem que "matou a alma" das crianças da comunidade.
É essa cultura que impede o trabalho da Comissão Pontifícia e que levou Marie Collins a renunciar. E até que ela mude, as crianças permanecerão ameaçadas dentro desta Igreja.
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Cultura clerical sustenta escândalos de abuso sexual - Instituto Humanitas Unisinos - IHU