06 Setembro 2016
O que os manifestantes de verde e amarelo têm a ver com ideias liberais, novos e velhos partidos e institutos conservadores com atuação de mais de duas décadas no país?
Manifestação 'Fora Dilma' na Avenida Paulista no dia 31 de julho de 2016. Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil
A reportagem é de Raquel Júnia e publicada por EPSJV/Fiocruz, 05-09-2016.
"Aumentou o número de militantes de direita que fazem trabalho de base”. A observação é da doutoranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP), Camila Rocha. De fato, até pouco mais de dois anos atrás, pensar em protestos no Brasil remetia a trabalhadores organizados, sindicatos ou movimentos sociais e alguns partidos políticos reivindicando direitos. A esquerda, num sentido amplo, era quase hegemônica na pauta desses grupos. Se a direita tradicional brasileira nos últimos tempos praticamente não deixava seus escritórios para operar a política, os novos grupos que ganharam visibilidade nas mobilizações pelo impeachment tiveram a capacidade de movimentar massas que fizeram das ruas um espaço de pressão e demonstração de forças.
Reunidos sob o guarda-chuva da retirada de Dilma Rouseff da presidência, e com os aplausos dos partidos tradicionais da direita, as manifestações deram lugar a uma gama de pleitos em gradações diversas de conservadorismo – da intervenção militar ao Estado mínimo, passando por distorções caricatas do Partido dos Trabalhadores (PT) e da esquerda no país. Mas trata-se de uma nova direita? Seguindo os rastros dos principais grupos e ouvindo pesquisadores, a Poli mostra, nesta reportagem, que a resposta não é tão simples.
Para Camila, cuja tese de doutorado se dedica a analisar os think tanks e grupos de direita no país, de fato há o crescimento do que pode ser considerado um movimento neoliberal no Brasil. A pesquisadora explica que são grupos de diferentes vertentes, mas que se assemelham pela defesa de uma pauta econômica baseada no Estado mínimo e, portanto, na defesa da privatização, inclusive de serviços assegurados como direitos pela Constituição, como a saúde e a educação. “O interessante é que esse movimento ficou mais capilarizado. Nos anos 80 e 90 era quase aristocrático, porque circulavam nele grandes empresários, tecnocratas, personagens da elite política e empresarial, alguns professores acadêmicos. E agora, com a internet, se difundiu de uma forma mais enraizada na sociedade civil, principalmente junto a setores de classe média e universitários”, aponta. “Hoje é muito mais comum encontrar, mesmo entre aqueles que não são economistas, universitários que conhecem ou já ouviram falar de Von Mises, que é um dos intelectuais neoliberais, que há dez anos ninguém conhecia”, exemplifica.
Essa direita neoliberal, que se define por bandeiras essencialmente econômicas, não tem nada de nova. Mas, segundo Camila, a agenda dessas organizações e partidos mais antigos ‘colou’ muito bem com o discurso e a mobilização promovida por grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL), Vem pra Rua e Revoltados Online – que se destacaram pela convocação das grandes mobilizações pró-impeachment. “O discurso contra o Estado acaba colando muito fácil num discurso contra o governo. E como o governo de turno era um governo do Partido dos Trabalhadores, com toda essa conjuntura de impeachment, de antipetismo, uma coisa acaba grudando na outra: ‘somos contra o Estado, então somos também contra esse governo estatista e corrupto”, salienta.
Para a pesquisadora Rejane Hoelever, organizadora do livro ‘A Onda Conservadora’, é preciso voltar ao contexto da ditadura empresarial-militar para entender a forma de atuação dos grupos que hoje podem ser chamados de ‘a nova direita brasileira’. A pesquisadora cita o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) — uma organização criada em 1962 por empresários e que atuou na linha de frente no processo que resultou na deposição de João Goulart e na instalação da ditadura no país — como experiência prima desse know how adquirido pela direita e usado em algumas situações para a mobilização das massas. Já no final dos anos 1970 e 1980, houve também a criação de organizações como o Instituto Liberal, no Rio de Janeiro e o Instituto de Estudos Empresariais, em Porto Alegre, duas instituições que, apesar de se apresentarem por um discurso neoliberal, mais focado na discussão sobre o papel do Estado, têm estreitas vinculações com os novos grupos de direita da atualidade.
A pesquisadora considera que é possível fazer uma comparação entre essa nova direita e a que emergiu nos Estados Unidos nos anos 1970. “Guardadas as particularidades, aqui como nos EUA, temos um casamento entre um pensamento econômico ultraliberal e um reacionarismo do ponto de vista dos costumes, que é ligado aos setores cristãos fundamentalistas. Então, se você for analisar essas entidades, vai ver que, por exemplo, o ‘Vem Pra Rua’ não defende uma agenda conservadora do ponto de vista moral. Mas, na prática, quando eles vão para a rua, estão juntos com quem defende. E foram às ruas toda a fauna e flora da direita, até aquela direita mais tradicionalista como a ‘Tradição Família Propriedade’, os integralistas”, detalha.
“Nós deixamos a intervenção militar como último vagão da nossa locomotiva, entendeu?”. A frase é de Marcello Reis, fundador e líder do grupo Revoltados Online, em entrevista à Poli. Questionado se a tomada do poder pelos militares então ainda é uma pauta do grupo, ele é enfático: “É. Nós nunca descartamos”. Na página do movimento no facebook, com mais de 1,7 milhões de curtidas, muitas das postagens são fotomontagens com a imagem do próprio Marcello Reis. “Ela [a organização do Revoltados Online] é totalmente centralizada em mim. Todos os administradores sou eu que aprovo e analiso”, explica. O grupo se sustenta, de acordo com Marcello, com doações e vendas de produtos personalizados – camisetas, canecas e bonés – sobre o impeachment e com elogios ao juiz Sergio Moro. Ele afirma que não há ninguém profissionalizado no coletivo, mas que em breve esse quadro deve mudar, com a criação de uma associação.
O líder do ‘Revoltados Online’ não só não vê problemas em considerar a intervenção militar como estratégia – ainda que seja só no “último vagão” -, como contemporiza a violência decorrente do golpe de 1964. “Eu não sou dessa época, mas procurei verificar com as pessoas que eram dessa época. E o relato que eu tenho é que não houve essa violência toda que estão falando”, afirma. E as torturas praticadas pelo regime? “Algumas pessoas que realmente vão para confronto, aí acabam acontecendo essas coisas. Mas eu sou totalmente contra a tortura”, relativiza.
Marcello se diz amigo pessoal da família Bolsonaro, que, segundo ele, tem o apreço do ‘Revoltados’ principalmente pelo fato de o deputado federal Jair Bolsonaro ter sido capitão do exército e um dos seus filhos, Eduardo Bolsonaro, ser membro da polícia federal. Para ele, o Bolsonaro pai ficou muito marcado por uma postura anti-LGBT que não condiz com a realidade. “Olha, veja só, eu tenho muitos amigos que são homossexuais, mas são discretos, entendeu?”, dispara.
Não por acaso, a tentativa de recontar o período da ditadura empresarial-militar pela direita tem também no partido que abrigou a família Bolsonaro, o Partido Social Cristão (PSC), uma das principais trincheiras. Embora o partido não possa ser considerado novo, ele revela outras conexões importantes no entendimento da nova direita. O atual responsável pelo programa da família Bolsonaro nas eleições é o mesmo que fez a plataforma do da candidatura de Pastor Everaldo à presidência em 2014. Trata-se do advogado Bernardo Santoro, diretor executivo do Instituto Liberal, considerado um dos principais think tanks conservadores do Brasil, e atualmente membro da executiva estadual e do diretório nacional do PSC. Como mais um exemplo da relação estreita entre a ‘nova’ e a ‘velha’ direita, Santoro também teve participação recente no Movimento Brasil Livre (MBL) no Rio de Janeiro, do qual se desligou recentemente.
O posicionamento de Santoro sobre os elogios públicos de Bolsonaro à ditadura demonstram a natureza dessa tentativa de releitura. “Ele [Bolsonaro] defende a não ocorrência de uma ditadura do proletariado do Brasil. Aí a gente pode até discutir em que nível uma pessoa pode se comprometer, até onde uma pessoa se engaja nessa luta por impedir uma coisa que é muito ruim. Eu especificamente não me sinto apto a julgar, mas o que eu posso dizer é que o PSC defende todas as liberdades e garantias individuais. Isso é algo que é inegociável para o partido”.
Mas e a ditadura? Santoro minimiza, por exemplo, a mais recente polêmica envolvendo Jair Bolsonaro, que dedicou seu voto a favor do impeachment ao coronel Brilhante Ustra, sob o qual pesam muitas acusações de torturas e assassinatos, além da coordenação da Casa da Morte, um centro clandestino de violência de Estado na ditadura. Segundo ele, Carlos Mariguella e Carlos Lamarca – militantes de esquerda que participaram da luta armada contra a ditadura e foram citados por um deputado do Psol durante a mesma sessão da Câmara, o que, segundo Santoro, teria motivado a reação de Bolsonaro – é que seriam formalmente culpados, já que, ao contrário de Ustra, foram condenados, mesmo que por um tribunal militar. Confrontado com o fato de que Mariguella foi executado pelo regime em uma emboscada sem qualquer julgamento, ele parece se desdizer: “O que é muito triste, não é? Isso aí eu também vou sempre condenar”, diz.
Camila Rocha distingue três tipos de movimentos de direita com mais expressividade no cenário atual. “Há esses liberais conservadores mesmo, que estão mais alinhados com a direita mais tradicional, religiosa, policialesca. Tem uma coisa meio de centro direita, que seriam esses liberais que estão sendo representados na política institucional pelo Partido Novo, que defendem um neoliberalismo na economia e não entram muito em costumes nem nessas discussões morais. E também um grupo menor, mas que cresceu, que são esses autodenominados libertários, neoliberais na liberação da economia e nos costumes”, aponta.
Encaixando-se no primeiro tipo de movimento descrito pela pesquisadora, o Revoltados Online faz coro, por exemplo, com uma das pautas que tem sido utilizadas pela direita para a disputa de terreno no campo ideológico: o Escola sem Partido (sobre isso, ler edição 44 da Poli). O serviço prestado na mobilização pelo impeachment e a relação com figuras proeminentes no governo interino credenciaram o grupo para uma das primeiras audiências do novo Ministro da Educação Mendonça Filho.
Acompanhado do ator Alexandre Frota, Marcello Reis foi defender o projeto. “Nossas crianças têm que ser educadas e não doutrinadas por nenhuma ideologia, seja ela de direita ou de esquerda”, diz. Questionado sobre como, para o ‘Revoltados’, deveria ser o ensino nas escolas, Marcello responde que o tema está a cargo de outra militante do movimento. “Eu nem estou muito focado nisso, estou focado mesmo no impeachment e na prisão de Lula. Mas eu aproveitei para ir lá falar como Mendonça Filho, saber também como estava a educação do nosso país”, desconversa. Segundo ele, o ministro da educação se comprometeu a estudar o projeto que visa “combater a doutrinação nas escolas”. Marcello diz que, diferente do PT, o ‘Revoltados’ não faz doutrinação “porque não tenta convencer as pessoas”. “A gente não fica debatendo. Qualquer pessoa que entra no grupo, sendo de outro partido ou do PT, ou qualquer outra coisa, a gente já exclui porque a gente não está para discutir, entendeu?”.
O Escola sem Partido também é apoiado pelo porta-voz do grupo Vem pra Rua, Rogério Chequer. No entanto, segundo ele, pelo menos por enquanto, essa é uma defesa pessoal. “Eu sou um simpatizante do movimento Escola sem Partido. Acho que, de uma forma simples e sem prejudicar a educação de qualidade, ele fomenta um ambiente que é muito mais apropriado, principalmente para os estudantes mais jovens. Então, é uma pauta que nós ainda não abraçamos como movimento, mas podemos fazê-lo a qualquer momento”, diz.
Para conceituar o que o ‘Vem pra Rua’ defende, Rogério Chequer se ancora na concepção de que o Estado é inchado, defendendo inclusive que a saúde e a educação devem estar a cargo do setor privado. “Eu acho que seria muito mais eficiente o Estado oferecer recursos para que as pessoas tenham acesso a uma educação de altíssima qualidade, que deveria ser fornecida pelo setor privado”, defende. Na saúde, na visão do líder do ‘Vem pra Rua’, deveria vigorar a mesma fórmula, o que, na prática, significa enterrar o Sistema Único de Saúde. “Contrate as pessoas que realmente conseguem. Organize a eficiência de um sistema para evitar a corrupção e ofereça essa saúde de qualidade a todo o mundo, principalmente aos mais necessitados”, defende.
No entendimento de outro grupo atuante na conjuntura recente, o think tank Estudantes pela Liberdade (EPL), o SUS também estaria descartado. O gerente do departamento de lideranças do EPL, Bernardo Vidigal, sintetiza o que os simpatizantes do que ele chama de “movimento libertário” pensam a respeito da saúde pública: “Acho que nenhum libertário defenderia um sistema como existe hoje no SUS. A maioria dos libertários defenderiam ou a privatização completa do sistema como uma solução ou o sistema de voucher, onde existiriam hospitais privados e o governo financiaria quem não tem possibilidade de pagar por hospital privado”. A defesa, segundo ele, seria a mesma para a educação.
Em julho de 2015, no auge das manifestações pró-impeachment, o fundador do ‘Revoltados’ participou de uma transmissão ao vivo pela internet organizada por um grupo chamado ‘Panelinha da Direita’, com Jair Bolsonaro e o escritor Olavo de Carvalho, uma espécie de ícone direita por seus posicionamentos contundentes contra as ideias de esquerda. Na apresentação da transmissão, a advogada Bia Kicis, outra administradora do ‘Revoltados’, apresentou os personagens como “titãs da direita”. Ela citou ainda alguns parlamentares que merecem o apreço do coletivo, além do próprio Bolsonaro: Ronaldo Caiado (DEM – GO), Bruno Araújo (PSDB-PE), Mendonça Filho (DEM- PE/atual ministro da Educação) e Onyx Lorenzoni (DEM – RS), todos citados como beneficiários de doações ilegais de empreiteiras. Marcello explica que a admiração se deve ao fato de esses parlamentares terem protegido o grupo em um dos protestos que realizaram em Brasília. Apesar de todas essas vinculações com os “titãs da direita”, no entanto, ele refuta o enquadramento do movimento neste espectro.“Esses títulos direita e esquerda servem para trazer uma divisão, e às vezes uma animosidade entre as pessoas e elas ficarem realmente guerreiras”, opina.
O ‘Vem pra Rua’ também nega o pertencimento à direita, apesar da defesa liberal de um Estado mínimo, que segundo Chequer, deve ter primeiro uma fase de transição para não desamparar “uma parcela injustiçada da população”. “Eu acho que você usar como régua direita e esquerda hoje é algo que não ajuda em nada a caracterizar o movimento, ou uma pessoa”, diz.
Ao contrário de Marcelo Reis, Chequer faz questão de desvincular o movimento da defesa da ditadura. “Nós jamais fizemos qualquer tipo de coordenação, ou tivemos qualquer tipo de diálogo com os que defendem o intervencionismo militar. O fato de nós estarmos na mesma avenida em manifestações marcadas por nós não nos liga de forma alguma”, defende, apesar de muitas manifestações terem sido coordenadas em conjunto com o grupo Revoltados Online. Em entrevista à Poli, Chequer se mostra surpreso com o fato de a intervenção militar ainda fazer parte do horizonte do grupo parceiro nos protestos: “O ‘Revoltados Online’ defendia a intervenção [militar] até 2014, mas foi antes da criação do Vem pra Rua. A partir do momento que nós começamos a organizar protestos [juntos], eles abandonaram [a defesa da intervenção militar], segundo nos informaram e informaram de diversas formas públicas. Em nenhum momento, durante esse processo todo, eu soube que isso era uma possibilidade para eles. Para te falar a verdade, eu estou escutando de você, agora, pela primeira vez, que isso faz parte de uma agenda deles, mesmo que seja de último recurso. Isso, para mim, é novidade”.
A Poli tentou falar com o MBL pelo facebook, já que o site do movimento não apresenta telefone, email ou qualquer formulário de contato, a não ser para filiação ou realização de doações. Diante da ausência de resposta, procurou ainda duas das lideranças do grupo, Kim Kataguiri, que não respondeu ao contato pelo facebook, e Renan Castro, através do telefone de uma produtora de vídeos ligada ao movimento, mas ele também não foi localizado.Para onde caminha a nova direita
A pesquisadora Camila Rocha ressalta que a disputa pela política institucional tem sido também uma das formas de aposta da nova direita. “Eles procuram atuar numa espécie de frente política. Então, há candidatos e políticos que são alinhados à defesa do neoliberalismo distribuídos em vários partidos. Por exemplo, tem um deputado chamado Marcel Van Hattem no PP [Partido Progressista] de [Paulo] Maluf. No Movimento Brasil Livre, há candidatos pelo PSDB e pelo Democratas”, observa. Outra forma de atuação tem sido a aposta na reformulação de legendas identificadas com a direita, como o PSC e o PSL, e ainda na criação de um novo partido, o Partido Novo. Segundo Camila, muitos do que hoje estão no Novo já haviam tentado sem sucesso a criação de um partido com ideias liberais no início dos mandatos do PT na presidência.
O Vem pra Rua e o Revoltados Online se autodefinem como movimentos suprapartidários. Em ambos, segundo seus idealizadores, membros que quiserem disputar cargos nas eleições precisam pedir desligamento. Na eleição presidencial de 2014, no entanto, o ‘Vem pra Rua’ fez campanha publicamente para Aécio Neves (PSDB-SP) no segundo turno. Segundo Chequer, a defesa de Aécio teve apenas a intenção de combater a eleição de Dilma. “Nós não apoiamos o Aécio. Nós apoiamos o adversário de segundo turno da Dilma. Teria sido qualquer pessoa. Para o primeiro turno, nós defendíamos que se votasse em qualquer candidato, menos na Dilma”, aponta. Chequer afirma ainda que não se identifica com o PSDB. “Eu tenho muita esperança que o Partido Novo se desenvolva como um partido que seja um dos símbolos de uma renovação política”, aposta, embora ainda não seja filiado. Nos cálculos dele, cerca de 20 pessoas se desligaram formalmente do ‘Vem Pra Rua’ para se candidatarem às próximas eleições municipais. As candidaturas são pelo PSDB, DEM e Partido Novo.
Para Camila, a diferença do Novo em relação a legendas declaradamente de direita, como o PSC, está no fato de que ele se apresenta como um partido que ignora as discussões morais. “O Novo foi fundado por um executivo do Itaú e chegou a agregar várias pessoas do movimento liberal. É muito parecido em termos de discurso e prática política com o partido do Mauricio Macri, presidente da Argentina, o Proposta Republicana (PRO). Basicamente, enfatiza empreendedorismo, uma melhor gestão, privatização, obviamente, de vários bens públicos, mas nessas questões morais, ele simplesmente não entra, fica meio em cima do muro”, define. Na página do Novo na internet, o partido afirma que temas polêmicos como a descriminalização do aborto e das drogas “vão ser debatidos no futuro, com os filiados”. No entanto, temas polêmicos associados a uma direita que ultrapassa a pauta liberal podem ser encontrados em textos de um dos mais conhecidos filiados do partido, o economista Rodrigo Constantino. Um exemplo é a defesa de que, apesar de todos os problemas, a ditadura militar foi necessária para impedir que o Brasil virasse uma Cuba.
Além do Novo, outra agremiação que tem sido o destino de lideranças do processo pró-impeachment é o PSL. “Essas pessoas que estão agora no PSL combinam o neoliberalismo no âmbito da economia com pautas morais progressistas. Então, vários deles participaram da Marcha da Maconha, defendem legalização do aborto, a adoção de crianças por homossexuais. E o interessante é que essas pessoas não se consideram de direita de jeito nenhum”, explica Camila. Os partidários do PSL se declaram “livres”, expressão que se combina com um visual moderno nas redes sociais e na própria página do partido.
Conexões
Outro alerta importante é que, segundo Camila, esses movimentos da nova direita brasileira têm vinculações com organizações estrangeiras, principalmente dos Estados Unidos, e compõem, inclusive, a chamada Rede Liberal da América Latina.O advogado e economista Fábio Ostermann é uma das chaves para se entender as relações entre esses diversos grupos e movimentos da chamada nova direita. Ostermann é fundador do Instituto ‘Ordem Livre’, que, conforme detalha Camila, começou como uma seção de língua portuguesa de um grande think tank estadunidense, o Cato Institute, do qual foi estagiário nos EUA.
De volta ao Brasil, além do ‘Ordem Livre’, ele fundou também o ‘Estudantes pela Liberdade’ (EPL), inspirado no homônimo estadunidense Students for Liberty. Do EPL, ele alçou um novo voo, tornando-se novamente protagonista de outra organização, o Movimento Brasil Livre – que liderou, junto com o Revoltados Online e o Vem pra Rua, os principais protestos pelo impeachment. Atualmente, Ostermann é candidato pelo PSL à prefeitura de Porto Alegre, além de diretor vice-presidente do Instituto Liberal, ao lado de Bernardo Santoro — aquele do programa da família Bolsonaro, do PSC —, e Rodrigo Constantino, incentivador e filiado ao Partido Novo.
Apesar de todas essas relações, o atual gerente do EPL, Bernardo Vidigal, garante que a organização não se mete com política: “O que a gente faz é treinamento de líderes e a gente não mexe diretamente com a política. Nunca vamos apoiar um político e nunca vamos também lutar por uma coisa como o impeachment. Mas empoderamos líderes estudantes para lutarem pela liberdade. E vários estudantes que a gente empoderou criaram o Movimento Brasil Livre. Lógico que a gente conhece muitas pessoas que estão no MBL porque passaram pelo EPL, foram treinadas pela gente, mas a gente nunca atuou junto do MBL em nenhuma das ações”.
A preocupação de Bernardo em separar o EPL do MBL tem razão de ser: qualquer vinculação direta que venha à tona pode resultar na perda de patrocínio, já que as organizações estrangeiras que fazem doações para o Estudantes pela Liberdade têm entraves legais para financiar movimentos que possam ser considerados político-partidários. O que o EPL faz, portanto, na concepção expressa por Bernardo, é “empoderamento”. A forma como ele próprio se aproximou da organização e ascendeu a um cargo remunerado é exemplo disso. Enquanto era estudante da Faculdade IBMEC, em Minas Gerais, começou a participar de um grupo chamado Liberalismo e Democracia.
“É quase como se fosse um curso pequeno de ciências políticas voltadas para as ideias de liberdade. E eu fui conhecendo mais o liberalismo, fui me apaixonando pela causa da liberdade, e aí eu resolvi virar um voluntário para tentar fazer mais coisas, ter um alcance maior e tentar fazer a diferença na minha universidade. Com o tempo, me candidatei também para uma vaga de emprego e fui contratado pela organização”, conta. O método de ascensão dentro da EPL inclui, como explica Bernardo, algumas métricas. Um dos programas é o de coordenadores voluntários: “A gente verifica se os coordenadores criaram grupos de estudantes, se eles realizaram eventos na universidade deles ligados ao liberalismo, a gente também verifica o alcance deles em mídia social e etc”.
O EPL vende camisetas e outros objetos que difundem as ideias liberais e combatem símbolos e pensadores ligados à esquerda. Uma das camisetas anunciadas traz Karl Marx sentado em várias caveiras. Outra, usando a tradicional fonte da Coca Cola, convida: “Curta Capitalismo”. “Basicamente a camisa é como se fosse um meme. Não é representativa de todas as nossas ideias. O que o libertarialismo defende é o livre mercado, não necessariamente o capitalismo como é conhecido no Brasil. No capitalismo, como é conhecido no Brasil, existe intervencionismo, existe o governo atuando”, explica. A organização, segundo ele, conta com 1300 estudantes registrados em mais de 300 universidades do país. Chapas ligadas ao EPL já ganharam Diretórios Centrais de Estudantes (DCE), na Universidade de Brasília (Unb) e na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
O Estudantes pela Liberdade recebe recursos da Atlas Network, uma organização estadunidense milionária dedicada ao fomento de think tanks de direita. Segundo reportagem publicada pela Agência Pública, em 2015, a Atlas aplicou em 2013 cerca de US$ 595 mil em organizações na América do Sul. Na Venezuela, o governo de Hugo Chávez e do seu sucessor, Nicolas Maduro, acusam o Cedice, organização parceira da Atlas, de fomentar a oposição entre estudantes. Em entrevista à Pública, o vice-presidente do Cedice, Alejandro Chafuen, que esteve no Brasil para participar do Fórum da Liberdade e, de quebra, também de uma das manifestações pelo impeachment em Porto Alegre, negou as acusações do governo da Venezuela.
De acordo com o gerente do departamento de lideranças da EPL, partidos como o Novo e o PSL hoje representam o que pensa a organização, diferente das agremiações vinculadas à direita clássica. “Eu tenho assistido vários partidos da direita tradicional, vários políticos abraçarem essas ideias [liberais]. Eu acho isso ótimo, ver que as nossas ideias estão chegando ao mainstream da política, mas eu não acho que essas pessoas representem o movimento. Teve um tempo atrás que circulou uma foto, por exemplo, do Bolsonaro, segurando o livro As Seis Lições, do Ludwig Von Mises. Mas pouco tempo depois ficou provado, a gente vê nas redes sociais, que ele não defende nenhuma dessas ideias”, desconfia.
Num claro retrato do trânsito entre novos e velhos grupos da direita na atualidade, Bernardo Santoro, colega de Ostermann no MBL e no Instituto Liberal (IL), postou nas redes sociais uma foto sua e de Alexandre Borges, também do IL, ao lado de Rogério Vargas, Pastor Everaldo, Jair Bolsonaro e Flávio Bolsonaro, ambos do PSC e o último também candidato a prefeito no Rio. Junto com a imagem, Santoro comemora: “Vai ter aliança de liberais e conservadores. Vai ter amizade entre MBL e Bolsonaros. Vai ter IL [Instituto Liberal] fazendo plano de governo. Vai ter Bolsonaro prefeito. Vai ter Bolsonaro presidente. Só não vai ter esquerdista feliz”.
O que parece uma contradição na visão de outros liberais – a união com um partido conservador e fundamentalista do ponto de vista dos costumes –, para Santoro não é: “Eu entendo liberalismo como um fim e o conservadorismo como um meio. A sociedade tem que se preocupar sempre em promover a liberdade individual do sujeito, mas essa liberdade deve ser atingida de maneira conservadora, ou seja, com prudência, através da democracia, através de processos naturais de discussão, sem rompimento do tecido social, sem revolução, sem nada disso, sempre com prudência, através de método de tentativa e erro, discussão da sociedade”, defende. Segundo ele, estar em um partido que tem apreço por pautas moralizantes, como a militância contra a união civil e a adoção de crianças por homossexuais e a negação da discussão da diversidade sexual nas escolas, não é um incômodo. “Eu mesmo sou protestante. Então nunca me incomodou muito. E eu sou muito conservador na minha vida pessoal”, admite, explicando que o PSC tem hoje quatro pilares: a defesa da vida, a defesa da cultura da família tradicional, a defesa da liberdade econômica e da redução da máquina burocrática do Estado.
O PSC, que já lançou Bolsonaro como pré-candidato às eleições presidenciais de 2018, é, na concepção de Bernardo, o único partido de direita no Brasil. “Os outros vão no máximo até a centro-direita. O nosso objetivo principal precisa ser a capacitação técnica desse grande quadro de pessoas que entenderam a importância do resgate dos valores tradicionais, da liberdade econômica para que essas pessoas façam bonito quando tiverem oportunidade de fazer gestão pública do Brasil”, diz.
Para o professor do curso de gestão de políticas públicas da Universidade de São Paulo (USP), Pablo Ortellado, os protestos de junho de 2013 representam um marco para entender a reorganização do campo da direita. “Os protestos tinham dois componentes: um componente de defesa de direitos sociais – transporte, educação e saúde, basicamente – e um componente de crítica ao sistema de representação. Este segundo apareceu de várias maneiras: insuficiência da democracia, mas também a crítica desse sistema de representação por meio da crítica à corrupção”, detalha. O professor observa que, enquanto as primeiras bandeiras eram bem expressas pelo principal movimento que convocou os protestos – o Movimento Passe Livre –, a vertente da crítica à democracia representativa ficou, de certa maneira, órfã. “Foi essa orfandade que em 2014, sobretudo 2015, passou a ser mobilizada por grupos de direita”, completa.
A diferença está, entretanto, mais uma vez, na massa que saiu às ruas, que não pode ser considerada conceitualmente como de direita. “Fizemos pesquisa nas mobilizações de 2015 e 2016 e vimos com muita clareza, por exemplo, que as pessoas que estavam lá, num nível surpreendentemente alto, na casa de 98%, 99%, defendiam a saúde e educação públicas, universais e gratuitas em profundo desacordo com alguns dos grupos que estavam mobilizando, como o Vem Pra Rua, mas, sobretudo, o Movimento Brasil Livre, que defende privatização desses serviços públicos”, aponta. Desde então, analisa Ortellado, essas lideranças tentam converter essa mobilização em torno da crítica à corrupção numa adesão às concepções de direita. “Quem acompanha as páginas deles vê que estão tentando converter o antipetismo numa espécie de antiesquerdismo. Mas é um trabalho difícil, porque se junho é esse grande compromisso da sociedade rejeitando o sistema de representação, essa grande crise de representação política brasileira, ele também é a afirmação muito firme dos direitos sociais”, analisa.
Em concordância, o professor titular do Instituto Federal de São Paulo Valério Arcary pontua que muitas pesquisas já mostraram que, embora a classe média seja majoritariamente reacionária nos costumes, não é possível considerar que seja majoritariamente a favor de políticas liberais. “A ideologia dominante na classe média é a ideia meritocrática de que a desigualdade é natural, e seu estatuto de classe média é natural. Ou seja, é um lugar que foi herdado pela progressão dos seus pais ou dos seus avós. Mas disso não decorre que a classe média esteja, por exemplo, a favor de privatizar as universidades públicas e cobrar mensalidades na USP ou na UFRJ. A classe média, como todas as classes, sabe muito bem onde estão os seus interesses”, afirma.
As fragilidades da esquerda em construir alternativas e o próprio papel desempenhado pelos 13 anos de governo do Partido dos Trabalhadores explicam, para Rejane Hoelever, parte do que motivou o que ela chama de “direitização do senso comum”. “Com a última grande organização de esquerda, que é o PT, absorvendo algumas práticas tradicionais da direita e mesmo alguns discursos, isso torna a esquerda órfã dessa alternativa cultural à altura para enfrentar o quadro”, explica.O que alimenta a nova direita
Como os acontecimentos que catalisaram essa nova militância são novos e o Brasil vive um cenário de indefinição, as análises são cautelosas. Para Valério Arcary, de fato houve um deslocamento da maioria da classe média para a direita. Mas é importante compreender que não se trata exatamente de um fenômeno novo na história do país. “Nós já vimos tanto a classe média se deslocar para a esquerda, como para a direita. A partir do final dos anos 70, com as pressões inflacionárias e a desaceleração econômica, a classe média deslocou-se à esquerda. Isso explica por que o Brasil teve entre 1975 e 1984 uma das mais poderosas organizações estudantis do mundo”, analisa.
Arcary lembra que, após 1984, com o fim da ditadura e a campanha das Diretas Já, esse processo se encerrou e ocorreu novamente um giro à direita por meio da aliança construída pelo PMDB em torno do governo Sarney e do chamado Plano Cruzado. Segundo ele, o quadro se torna mais favorável à esquerda novamente com a insatisfação das camadas médias com a superinflação para, depois, pender mais uma vez para a direita com o plano Collor, que teve o apoio de parte da classe média pelo alívio inicial no quadro de inflação. Arcary continua: “E aí nós vimos o apoio da classe média ao Plano Real, um deslocamento novamente à direita, um certo entusiasmo com o discurso do Fernando Henrique Cardoso da modernização, inclusive com simpatia pela satanização do funcionalismo público, a favor de um discurso de eficiência, competitivo, de integração do Brasil no mercado mundial”.
O historiador reforça que o diagnóstico deve levar em conta o passado para não correr o risco de superdimensionar os acontecimentos atuais. “O fato é que claramente. depois das eleições de 2014, há um setor da classe média que se desloca à direita empurrando o PSDB e os outros partidos que giram em torno dele como um satélite – que são partidos, digamos, insepultos, como os Democratas ou o PTB – para a decisão de derrubar o governo Dilma. E esse deslocamento expressa uma evolução desfavorável da correlação social de forças para os trabalhadores e cria uma base social, inclusive, para uma nova direita”, aponta.
Para a professora pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) ,Virgínia Fontes, é preciso também levar em conta que a classe dominante no Brasil sempre teve dificuldades em mobilizar as massas. “O momento em que isso acontece mais, que não é de hegemonia da direita conservadora, mas da hegemonia do capital, é nos anos 90, com o governo FHC. Nesse momento, houve um ativismo burguês muito grande no sentido de capturar as pautas que eram clássicas da luta contra a desigualdade no Brasil”, analisa.
Virgínia afirma que os governos do PT aderiram a essa modificação das pautas – como a guinada da luta contra a desigualdade para a luta pela inclusão, por exemplo –, favorecendo o campo da direita. “Entretanto, até alguns anos, essa direita não podia ser considerada um cão de guarda dos interesses da burguesia. Eu a caracterizava como um ganso de guarda, porque ela era muito barulhenta, mas não era ela quem estava no núcleo central das estratégias burguesas de adequação. Os mesmos caras que faziam essa política de adequação das pautas participavam desses grupos de extrema direita. Jorge Gerdau , por exemplo, vai fazer responsabilidade social, vai ser braço direito do governo Dilma, vai ser do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do governo e ao mesmo tempo vai estar lá no Instituto Liberdade do Rio Grande do Sul”, sintetiza.
Segundo Virgínia, é preciso cautela no momento de dimensionar o tamanho da guinada à direita no país porque há várias hipóteses em jogo. Uma delas é o fato de as classes mais altas não terem um partido único que represente os seus interesses, embora o PSDB tenha tentado cumprir esse papel. “Nesse reino do ‘todo mundo compra todo mundo’, típico da burguesia, você tem um grupo grande de parlamentares cuja vida é fazer chantagem. Eles não são um partido de um setor de classe, são um partido de fragmentos chantagistas de determinados estados, de determinadas regiões ou de determinados setores. Eles não expressam nenhuma base imediata de classe. O PSC representa quem? O DEM representa quem? São partidos mais ou menos equipados, especialmente voltados para um jogo de chantagem, do qual o Eduardo Cunha era a maior expressão. Agora há uma espécie de rebeldia desse centrão”, afirma. É essa situação, segundo Virgínia, que cria o caldo para que os “gansos de guarda” avancem para ocupar o terreno.
Para Valério Arcary, não é possível afirmar que tenha surgido uma nova liderança ligada à chamada nova direita. “O que existe são os partidos evangélicos, o Bolsonaro, uma intelectualidade liberal que tenta o espaço por fora do PSDB, que seria, digamos, o seu endereço político previsível. Mas no momento não há nada que permita dizer que o PSDB perdeu o lugar que ele construiu, fundamentalmente, depois do fim da ditadura, um racha do PMDB”.
Virgínia Fontes concorda: “O cenário que se desenha até o momento é de falta de direção. Michel Temer era chamado de mordomo do Congresso e está sendo colocado em um lugar em que ele não tem os elos sociais. Então, está sendo sustentado por grupos muito heterogêneos que estão abrindo uma rapinagem alucinada. Agora, aonde isso vai dar? Esses grupos mais exacerbados da extrema direita não têm nenhum compromisso direto com a manutenção do próprio poderio burguês. Por enquanto, eles podem fazer e falar o que quiserem”, analisa.
Nesse sentido, de acordo com Virgínia, há vários perigos, inclusive o de a população que está perdendo direitos com o resultado de tudo isso reagir. “É óbvio que esses grupos de extrema direita têm cursos, têm organização, se aproveitaram muito bem disso. Mas eles têm condição de construir uma pauta eleitoral capaz de conduzir isso? Até aqui, não me parece. Têm condições de sustentar uma guinada à direita do governo definitivo Temer? Têm. A gente vai começar a assistir, por um lado, a truculência de uma extrema direita não só na retirada de direitos, mas também com violência no cotidiano, na vida social. E, ao mesmo tempo, tem que conciliar essa massa de aparelhos de responsabilidade social empresarial. A tendência é começar a existir tensão aí. Até porque, por quanto tempo a população vai ficar quieta?”.
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No rastro da nova direita - Instituto Humanitas Unisinos - IHU