06 Setembro 2016
“O governo golpista será, não apenas profundamente regressivo, como também crescentemente repressivo. Todas as medidas já anunciadas, desde o momento em que ficou claro que o impeachment era irreversível, são de natureza neoliberal, conservadoras e regressivas. É por isso que utilizo a noção de traição. Eles pretendem vender o país muito rapidamente. E já começaram a fazer isso. O nome disso é traição. Não tem outro nome. Capitulação completa e traição ao país”. A síntese de Flavio Koutzii expressa a percepção de alguém que viveu o golpe de 64 e participou da luta contra duas ditaduras, no Brasil e na Argentina. No Brasil, foi filiado ao PCB, integrou a Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul e, já no período da redemocratização, foi um dos construtores do PT. Na Argentina, militou no Partido Revolucionário dos Trabalhadores – Exército Revolucionário do Povo (PRT-ERP), que pegou em armas contra a ditadura. Preso na Argentina, entre 1975 e 1979, voltou ao Brasil graças a uma campanha internacional pela sua libertação e participou da fundação do PT, partido pelo qual foi vereador, deputado estadual e chefe da Casa Civil durante o governo Olívio Dutra.
Em entrevista ao Sul21, Koutzii fala sobre o atual momento político nacional e critica o modus operandi do juiz Sérgio Moro e da Operação Lava Jato, lembrando situações que viveu no período da ditadura. “Não quero ser autorreferente, mas tive algumas pequenas experiências de tortura. Eu sei como é que funciona. No caso da Lava Jato, pegaram pessoas que sempre tiveram poder e uma vida de confortos e as enfiaram seis meses numa cela, num cantinho lá de Curitiba. Isso é um pau de arara de outro jeito. Obviamente, essas pessoas não estão preparadas para esse tipo de situação e estão perdendo todo o patrimônio que tinham. Elas ficam dispostas a vender a alma e toda a genealogia da família para sair desta situação”.
Flavio Koutzii também fala sobre aquilo que se tornou o PMDB, partido que participou da resistência à ditadura nos anos 70. “Se nós, no PT, somos severos com a nossa própria auto-avaliação, o PMDB se tornou algo que está fora de qualquer classificação. O PMDB, hoje, não só se desclassificou como um partido minimamente democrático, com simpatia por algumas causas populares, como se tornou o algoz de um governo do qual ele participou de manhã, de tarde e de noite. A biografia do PMDB acabou de se completar. É um partido que tem a cara de seus principais próceres, que são algumas das figuras mais abjetas da política no presente, como Eduardo Cunha”.
Flavio Koutzii/Foto: Youtube
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 05-09-2016.
Eis a entrevista.
Você disse, em uma recente entrevista, que o Brasil de antes do impeachment acabou. Quais são, exatamente, as implicações dessa afirmação?
Faço essa afirmação porque creio que é uma das coisas que ajuda a entender algo que é difícil, mesmo para ativistas e militantes. Um dos compromissos para qualquer um da velha guarda, como eu, com os ativistas dessa nova geração que estão emergindo e são motivo de esperança e a capacidade de resistência mais concreta que temos neste momento, é dar-se conta desse corte crucial. Não para desmobilizar ou ficar melancólico, mas sim para entender. O Brasil de antes do impeachment – e estamos falando aqui de 13 anos, talvez um pouco mais – se construiu impregnado da consolidação de políticas públicas que os sucessivos governos nacionais petistas construíram, mesmo com uma governabilidade baseada em frentes políticas absolutamente instáveis e não confiáveis. Estamos falando de políticas como o Bolsa Família, Prouni, Minha Casa Minha Vida, Mais Médicos, Luz para Todos e tantas outras.
Isso ajudou a construir uma espécie de tecido horizontal dentro da sociedade brasileira, embora essas políticas públicas não tenham sido politizadas como deveriam ser. Não estou falando em passar uma ficha de recrutamento, mas sim de ajudar as pessoas a entender melhor o significado dessas políticas e não interpretá-las de um modo simplório, como se fossem coisas que caíram do céu e não resultado da visão de mundo dessas forças que estão no governo. Há um elemento curioso e paradoxal aqui. De um lado, isso revela, até pelas sucessivas vitórias, mesmo em situações muito adversas como o mensalão e problemas mais recentes, a capilaridade profunda que essas políticas públicas tinham.
A percepção disso, por parte dos beneficiários dessas políticas, explica como é que nós duramos esses treze anos, mesmo com todas as dificuldades. Por outro lado, exatamente por que isso passou a existir nos poros da sociedade brasileira, ela foi capaz de resistir nos últimos anos, em situações tão dramáticas e antagônicas. Havia uma memória social e política mais instintiva que ajudou a formas consciências ou pelo menos produzir certo “empate” nas sensibilidades populares, que fazia com que olhasse com reserva a monopólica ação midiática contra os governos federais petistas.
Há uma preocupação de fundo, da minha parte, sobre esse tema. As pessoas, muitas vezes, transitam de uma posição A para uma posição B sem ter a consciência instantânea que se trata exatamente de um trânsito. O Brasil de antes do impeachment é um país que elegeu nacionalmente quatro governos do PT. Não sublinho especialmente a sigla PT, mas sim o conjunto das políticas produzidas por esses governos, que irrigaram a sociedade brasileira. Neste período, houve também a capacidade de frear políticas repressivas. Compreender que saímos desse universo ajuda a “arregalar” os olhos para perceber melhor o que tragicamente está acontecendo. Tenho reiterado esse tema, que não é otimista nem mobilizador, mas é importante para perceber onde estamos pisando agora. Resumiria assim: 1) O Brasil mudou; 2) Essa mudança é uma tragédia; 3) Representa uma terrível derrota; 4) Vai levar muito tempo para reverter; 5) Essa é a nova situação.
No que está baseada essa percepção de que vai levar muito tempo para reverter essa situação? Essa previsão está relacionada à dimensão da derrota, também no sentido de que vai levar muito tempo para remontar o que foi quebrado?
Sim. Essa nova situação que estamos enfrentando tem um caráter profundamente regressivo. Ao ser profundamente regressiva, vai consolidar narrativas, leituras e percepções parciais muito atrasadas. A sociedade vai ser empurrada para trás de uma forma muito dramática. Por outro lado, é reconfortante ver essa capacidade de reação imediata de setores mais sensíveis como estudantes, jovens, mulheres, negros, LGBTs, que já foram para a rua. Há cerca de quatro meses, as primeiras mobilizações desses setores já deram um tranco no ritmo avassalador com que a direita vinha. Foram para a rua, em uma mobilização nacional e plural, com formas organizativas que lhe são próprias, onde não é preciso seguir algum tipo de ortodoxia ou de cartilha que nós, de gerações anteriores, seguimos até com muita honra desde os anos sessenta.
Aqui temos um elemento profundamente fecundo e diferenciado. A capacidade de reação instantânea desses setores tem a ver, obviamente, com seu entendimento e também com as novas plataformas de comunicação que permitem uma velocidade extraordinária e um poder convocatório quase instantâneo. Isso já constitui, de modo indiscutível, uma nova “vanguarda”, compreendida não somente no sentido tradicional que esse termo é empregado pela esquerda. É uma nova liderança que fala a linguagem de seus liderados, que revitaliza constantemente a sua própria forma de atuar, aprende rápido com as dificuldades e sabe contorná-las. Esse é o lado estimulante do que está acontecendo e portador de esperança e de fôlego social.
Sobre o sentido da derrota, não se trata apenas de terem sido perdidos muitos espaços. Houve uma brutal regressão antidemocrática do Judiciário e a abdicação de qualquer intervenção por parte de tribunais superiores como o Supremo nos desmandos do justiceiro de Curitiba. Ninguém é contra a luta contra a corrupção, mas hoje é impossível falar desse assunto sem considerar que essa operação está funcionando como um centro de contrabando. Em nome do “temos que acabar com isso tudo”, começaram a fazer “isso tudo” que é acabar com o estado democrático de direito. Não quero ser autorreferente, mas tive algumas pequenas experiências de tortura. Eu sei como é que funciona. No caso da Lava Jato, pegaram pessoas que sempre tiveram poder e uma vida de confortos e as enfiaram seis meses numa cela, num cantinho lá de Curitiba. Isso é um pau de arara de outro jeito. Obviamente, essas pessoas não estão preparadas para esse tipo de situação e estão perdendo todo o patrimônio que tinham. Elas ficam dispostas a vender a alma e toda a genealogia da família para sair desta situação.
Talvez uma das coisas mais emblemáticas da perda de mesura absoluta é a tentativa de sequestro e prisão do Lula lá no aeroporto de Congonhas, onde nada foi um problema, nada teve limites ou disputas próprias da área judicial. Estou evocando essa lembrança porque parte da argumentação feita pelos Bonner e William Waack da vida, a partir daquela oportuna escuta telefônica da conversa entre Lula e Dilma, consistiu em afirmar que as referidas conversas expressavam uma tentativa de obstrução do trabalho da justiça. Quando uma presidenta da República, no livre exercício de sua autoridade constitucionalmente constituída, decide colocar no governo uma das figuras políticas mais extraordinárias dos últimos 30 anos, para reforçar o seu ministério numa situação extremamente delicada, este ato legítimo também foi tratado como obstrução de justiça e tomado como base para tentar incriminar a ambos.
A população brasileira ficou enamorada desse centro de enfrentamento da corrupção, o que, em si, é correto. Mas se a forma como esse enfrentamento é feito é tal que detona um conjunto de garantias próprias de uma sociedade democrática, as pessoas que percebem isso devem dizê-lo pois, se não o fizerem, ficaremos totalmente chantageados e empurrados contra um muro intransponível onde nada que conteste o método é aceitável. Qualquer coisa que atrapalhe esse método e o centro da República de Curitiba é taxado como algo vindo de alguém desonesto, que não está querendo ajudar o combate à corrupção. Não estou falando com metáforas. É exatamente isso o que está acontecendo e a vertebração desse modo de agir é muito emblemática do próprio processo de impeachment da presidenta Dilma. É um modus operandi absolutamente radicalizado, com endereço e arbitrariedades.
Que arbitrariedades seriam estas exatamente?
Eu processo quem eu quero, prendo quem eu quero, vazo informações para quem eu quero e assim por diante. Os noticiários da Globo à noite quase todos os dias começavam assim: tivemos acesso com exclusividade…Isso era repetido diariamente e tornou-se um elemento absolutamente naturalizado. Temos um juiz que faz o que bem entende, do jeito que bem entende, escolhe que vai vazar material sigiloso para a maior rede de comunicação do país e está tudo bem. Qualquer resistência a esse método é tentativa de obstrução do trabalho da justiça. Isso funciona como uma espécie de torniquete, essencialmente ilegal, sobre o qual não se ouviu nenhum murmúrio no Supremo.
Generalizar é sempre arbitrário, mas o que as OABs fizeram, do sul ao norte do país, foi se solidarizar com esse método. Não piaram e adotaram o mesmo procedimento. Qualquer um que questionasse essa omissão também era tratado como alguém conivente com a corrupção. É por que dissemos que o tridente da ofensiva da direita é essa aliança político-judicial-midiática. Esses setores têm a faca e o queijo na mão: tem o pau de arara, o pau que a imprensa dará em qualquer um que objete esses métodos e a mobilização dos setores políticos conservadores.
Quando diminuiu o ruído das panelas, ficou claro que uma boa parte dos protagonistas e heróis da direita estavam envolvidos até o pescoço em escândalos de corrupção. Muita gente teve a sua legítima indignação, independentemente de sua visão ideológica do mundo. Isso foi um fato real. Mas em determinado momento houve uma desaceleração muito nítida daquela agressividade sem fim, daquela caçada a qualquer posição progressista. A complexidade do tema “Lava Jato” é que, de um lado, é necessário combater a corrupção; de outro, somar-se a isso, apoiando o modus operandi adotado, implica ajudar a construir a quebra total do estado de direito.
Dada as características de todo esse processo, acho que teremos mais repressão. Isso já pode ser visto nas ruas. Creio que essa repressão será mais sistêmica. A mídia maximizou os problemas reais que a economia brasileira apresentava. Em certo momento, não tinha um noticiário onde não aparecia a dona Maria dizendo: “não dá mais, olha só o preço o tomate…”. Isso foi anunciado numa famosa capa da revista Veja que apresentou o tomate como destaque na capa. Os problemas na economia foram de tal forma maximizados que desconstruir esse discurso não será uma tarefa simples. Essa demanda que foi insuflada para ampliar o ambiente de desqualificação do governo deixará na memória dos interessados a convicção de que “agora a situação vai melhorar”. Algumas variáveis macroeconômicas podem até melhorar, mas a vida prática das pessoas, ao contrário do que dizem os propagandistas da direita, não deve melhorar substancialmente. Isso se transformará em um desafio muito grande para os golpistas.
Em que medida, o governo Temer terá capacidade para enfrentar esse desafio, na sua avaliação?
A hipótese com a qual estou trabalhando, portanto, é que o governo golpista será, não apenas profundamente regressivo, como também crescentemente repressivo. A época de expansão a narrativa da direita, demonizando o PT, a esquerda de modo geral e todo o campo progressista, vai bater no teto muito rápido. Essa não é uma interpretação a partir do meu desejo ou de uma má vontade interessada. Todas as medidas já anunciadas, desde o momento em que ficou claro que o impeachment era irreversível, são de natureza neoliberal, conservadoras e regressivas. Vão reformar a previdência e muita gente sairá perdendo, vão desestabilizar políticas públicas em áreas essenciais, cortar recursos na educação e na saúde. E pretendem fazer tudo isso numa velocidade espantosa e delirante, contando, para o seu êxito, com a colaboração de uma mídia que é sócia da construção de mediações para convencer as pessoas a transitar de uma situação em que elas têm certas coisas para outra onde deixarão de tê-las.
Não creio que consigam ter sucesso nesta operação, mas é um comportamento criminoso. É por isso que utilizo a noção de traição. Eles pretendem vender o país muito rapidamente. E já começaram a fazer isso há quatro semanas, escancarando a possibilidade de venda de terras brasileiras para estrangeiros, entregando os recursos do pré-sal e desmontando a Petrobras, desarticulando toda a política externa autônoma e independente que vinha sendo construída nos últimos anos com eficácia, dignidade e bons resultados. O nome disso é traição. Não tem outro nome. Capitulação completa e traição ao país.
Há um episódio muito importante, do ponto de vista prático e simbólico, que merece ser lembrado. Como a Dilma não é capacho como vários dos protagonistas do golpe são, ela decidiu cancelar uma viagem a Washington depois que se descobriram as escutas em seu próprio gabinete. Não foi uma bravata, mas uma postura de dignidade e de afirmação de uma coisa muito importante: isso aqui não é um capacho dos Estados Unidos onde eles podem colocar os pés quando e como quiserem. Não resolvemos o problema, mas fizemos um gesto. O gesto agora dos novos vendedores é absolutamente o contrário. É o abandono completo da política externa que era um dos pontos altos da ofensiva da direita brasileira, voltando a adotar uma postura subordinada e subalterna.
Ainda em relação à direita, há uma questão paradoxal e irônica a ser observada. Várias estruturas do aparelho de Estado, que foram respeitadas e apoiadas materialmente nos governos Lula e Dilma, como o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal, se transformaram rapidamente em estruturas autônomas da ofensiva política. Lembrar isso também se tornou uma espécie de ofensa à honra desses setores. Qualquer demanda ou questionamento sobre a postura dessas estruturas passou a ser apontado como um crime de lesa majestade. Eles atacavam até a terceira geração de uma figura que eles quisessem destruir, como ocorreu (e segue ocorrendo) com Lula e Dilma e, em nível partidário, com o PT. O que se assistiu foi uma passagem de limites, uma absoluta autonomização e uma associação destes setores com as coisas mais conservadoras que existiam no país.
Em Porto Alegre, nesta última semana, tivemos quatro noites consecutivas de protestos reunindo milhares de pessoas contra o golpe e contra o governo de Michel Temer. Esses protestos foram protagonizados, principalmente, por uma juventude que não parece disposta a sair das ruas. E já começa a ser reproduzido na mídia o discurso do vandalismo e os pedidos por maior repressão por parte da Brigada Militar. Você vê algum paralelo entre essa situação e aquela que viveu logo após o golpe de 1964?
Não. Uma marca de 64 foi a de que nós fomos rapidamente varridos do mapa muito cedo. Um tema clássico que fez parte dos balanços que começaram a ser feitos em 65 e 66 foi justamente este: como é que nos varreram tão facilmente? Foi muito fácil mesmo e, ao ser mais fácil, foi menos sangrento. Não havia a densidade social da resistência que temos agora. O que está acontecendo hoje é a expressão, talvez inédita, de uma resistência que se inicia imediatamente com essas características geracionais. Esse fato é altamente significativo e positivo, pois se passa diretamente de um certo choque para a resistência nas ruas. Isso é bem diferente do que ocorreu em 64. A luta contra o impeachment nos últimos meses foi, entre outras coisas, uma espécie de escola que permitiu testar métodos de resistência e perceber o alcance de diferentes formas de luta. Essa é uma diferença para melhor em relação a 64.
A simultaneidade do avanço do processo do impeachment com a resistência que foi se ampliando nos coloca agora em um certo nível de beligerância positiva, de capacidade de se mover e de começar a enfrentar uma ofensiva repressiva que está se expressando cada vez mais.
Neste cenário, essa ofensiva repressiva não pode ser maior do que foi logo após o golpe de 64? Naquele período, a ditadura endureceu seus métodos repressivos a partir de 68. Esse endurecimento não pode ocorrer mais cedo agora, considerando a agenda do golpe, seus compromissos e a intensidade da resistência que já está nas ruas?
Acho que sim e há uma espécie de pista para avaliar esse cenário que é a extrema sensibilidade do usurpador com a palavra “golpe”. Ele não quer que as pessoas usem essa palavra. Há uma tentativa da parte dele de construir uma narrativa hegemônica sobre o que está acontecendo. Uma vez que eles venceram o processo do impeachment do modo que venceram e não tiveram nenhum pudor em começar a anunciar e fazer o que pretendem fazer, tentarão manter o mesmo ritmo de ofensiva para aplicar a sua agenda. Pelo que se viu até aqui, não haverá proteção jurídica como habitualmente deveria haver, mesmo para coisas simples como um habeas corpus. Além disso, há uma mega ampliação da incidência da mídia. Na minha avaliação, eles estão convencidos de que é preciso manter a carga de cavalaria.
Então, se a resistência conseguir ter uma eficácia maior eles vão atropelar mais pesadamente. Eles conquistaram espaços demais e conseguiram legitimar parcialmente sua narrativa. Se a economia melhorar um pouco – o que, na minha opinião, não chegará na Dona Maria, mas pode ter alguns resultados como a redução da inflação -, isso será destacado na mídia de manhã, de tarde e de noite. Neste cenário, o padrão repressivo tende a aumentar, com o sistema judicial não dando mais amparo à reclamação cidadã e a mídia fazendo de modo ainda mais refinado o que já faz há algum tempo. Infelizmente, acho meio óbvio que isso vai acontecer.
Outra questão que acho importante assinalar sobre esse tema é que, dado o método impostos pela Lava Jato, qualquer liderança desse processo de resistência será ultra-atacada com os instrumentos fora da lei que passaram a ser naturalizados como se legais o fossem. Em resumo, o ambiente é muito hostil. Direito ausente, mídia contra e Lava Jato seletiva: é uma parada muito difícil. Não faço esses comentários com uma pretensão alarmista. Trata-se de uma opinião a mais, que pode estar bem calibrada ou não, sobre um tema que nos desafia no presente, que é entender bem o que aconteceu e entender razoavelmente bem o que pode acontecer. Aquele Brasil que tinha certos equilíbrios, onde o Judiciário funcionava e as organizações institucionais do Estado brasileiro não tinham virado centros autônomos, não existe mais. Não podemos ser ingênuos em pensar que, uma vez conquistadas três ou quatro trincheiras, eles não vão tentar conquistar a quinta, sexta e assim por diante.
O MDB agrupou uma parte da resistência democrática à ditadura. Virou PMDB com a redemocratização e vem participando de todos os governos desde então, assumindo agora um papel decisivo no movimento contra o governo de Dilma Rousseff. Como você definiria o PMDB hoje?
O MDB teve um papel respeitável na luta pela redemocratização, cumprindo o seu papel específico que tinha a vantagem de não ser visto como uma força subversiva. Esse passado tem que ser respeitado como tal. Por outro lado, se o PT metamorfoseou-se tantas vezes e de tantos modos como sabemos, sofremos e nos inquietamos, o que dizer do que aconteceu com um partido que era tão mais heterogêneo e rarefeito do ponto de vista programático e de seus fundamentos. Eles já tinham desandado há muitíssimo tempo. O PMDB que governou o país durante treze anos, desde o Lula até aqui, não aprendeu nada, não mudou nada em direção a uma posição onde alguns valores democráticos pudessem ter alterado seu DNA. É como aqui no Rio Grande do Sul, onde tirando os nossos dois governos, eles sempre estiveram no poder. Mas não tem responsabilidade por nada. A única responsabilidade que tem é em definir como ocupam seu espaço de poder e negociam.
O fato de que hoje os seus grandes nomes nacionais estão envolvidos até o pescoço em denúncias de corrupção reflete o que esse partido se tornou. Se nós somos severos com a nossa própria auto-avaliação, o PMDB se tornou algo que está fora de qualquer classificação. Quando você classifica as características de uma determinada formação política e social, ela deve ter alguns elementos de continuidade e de identidade que permitam fazer essa classificação. O PMDB, hoje, não só se desclassificou como um partido minimamente democrático, com simpatia por algumas causas populares, como se tornou o algoz de um governo do qual ele participou de manhã, de tarde e de noite com fatias de poder impressionantes, e em relação ao qual não assume nenhuma responsabilidade. Não tem o remoto cheiro do que foi na reconstrução da democracia, no final da ditadura.
No acordo que fizeram para participar do governo Lula eles tinham algumas coisas a oferecer e muitas coisas a ganhar. Como sempre acharam que ganharam menos do que acham que valem, ficaram mais parecidos com o que não valem. Nunca vi alguém do PMDB reivindicar o governo Lula ou Dilma como algo do qual fazia parte. Sempre cultivaram uma ambiguidade brutal. Ganharam uma carona muito bem remunerada e, rapidamente, passaram para o outro lado. Daí não sairá mais nada. Deve-se esquecer esse partido como um elemento positivo para o presente. Há algumas individualidades com valor e só. A biografia do PMDB acabou de se completar. É um partido que tem a cara de seus principais próceres, que são algumas das figuras mais abjetas da política no presente, como Eduardo Cunha e outros. É isso que eu acho do PMDB hoje.
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“O PMDB, hoje, tem a cara de algumas das figuras mais abjetas da política brasileira” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU