14 Junho 2019
Deve se achar muito inteligente quem se vangloria de explicar o mistério da Trindade! São inúmeros os nomes e os títulos que se dá a Deus… Para nós, cristãos, Deus é Pai, Filho e Espírito. Três que Se fazem Um só, na felicidade e no amor que experimentam na Criação e, sobretudo, na humanidade. Mesmo sendo «trindade» uma palavra abstrata, o nosso Deus não é um conceito: é o Deus do amor, que se faz Criador, Salvador e Guia, para a nossa felicidade.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho da Festa da Santíssima Trindade - Ciclo C. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Referências bíblicas
1ª leitura: "Assim fala a Sabedoria de Deus: desde a eternidade fui constituída, desde o princípio, antes das origens da terra" (Provérbios 8,22-31).
Salmo: Sl. 8 - R/ Ó Senhor, nosso Deus, como é grande vosso nome por todo o universo!
2ª leitura: "Estamos em paz com Deus, pela mediação do Senhor nosso, Jesus Cristo... porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (Romanos 5,1-5).
Evangelho: "Tudo o que o Pai possui é meu e o Espírito receberá do que é meu e vo-lo anunciará" (João 16,12-15).
Que audácia dos primeiros cristãos, afirmarem ser Deus, a uma só vez, Um e Três! Por que desafiar assim a inteligência humana? É que, nos evangelhos, Jesus nos fala do Pai, do Filho e do Espírito. Sim, ele os distingue, mas, especialmente em João, diz que cada um está no outro, que está cada um em cada um dos outros. A nossa fé na Trindade é antes de tudo obediência às Escrituras. Na verdade, as Escrituras nunca dizem que «são três» ou que «Ele é três». Claro, as Escrituras não fazem contas: não há nelas aritmética alguma com referência às «pessoas divinas». Aliás, até mesmo o termo «pessoa» não se encontra presente ali, a este respeito. Foi a partir do Pai, do Filho e do Espírito, assim nomeados no Novo Testamento, que os cristãos construíram todo um edifício dogmático, intelectual, marcado pelo contexto cultural e filosófico da época de sua concepção. Um caminho trabalhoso, sem dúvida, através de pistas falsas e de becos sem saída. Mas os Concílios acabaram por se colocarem de acordo quanto a «uma só natureza divina e três pessoas»; fórmula feita evidentemente de palavras tomadas da experiência do mundo criado. Querem dizer que há um só Deus, mas que o Pai, o Filho e o Espírito não designam apenas aspectos diversos de uma mesma realidade, como se fossem «fardamentos» com os quais Deus se mostraria conforme cada ação que estivesse fazendo em favor dos homens: Pai enquanto criador, Filho enquanto salvador, Espírito enquanto inspirador. Para a nossa fé, trata-se de três «sujeitos» (no sentido gramatical da palavra) constituídos de uma única «substância». Devemos confessar que, para nós, isto é incompreensível. O que é normal; pois, não podemos encerrar Deus em nossos conceitos. Confessemos também, aliás, ser igualmente impossível conhecer totalmente uma pessoa humana.
Curiosamente a palavra «Amor» encontra-se ausente das definições conciliares e dos Credos que chegaram até nós; no entanto, para o Novo Testamento, é a definição mesma de Deus. Não devemos, contudo, nos enganar quando dizemos que «Deus é amor», pois se trata também de uma analogia com a nossa experiência humana. O Amor que é Deus nos escapa e nos ultrapassa; mas o amor entre nós é uma «imagem e semelhança» daquele Amor. Deus é Uno pelo Amor que O constitui e que é a sua substância. Mas este Amor, que é Deus, não poderia existir se fosse solidão: para que haja amor é preciso haver o outro, algum outro. O Pai só é Pai pela existência de seu Filho. E sendo Ele «somente Pai», sem o Filho Ele não existiria. Sendo Amor, Deus é difusão de Si mesmo. Difusão que vai até à criação destes «outros» que são os seres humanos. Estes imitam a natureza divina, pois só existimos por mantermos relação com tudo o que não é nós: com os elementos que constituem a nossa carne e que nos vêm dos animais e vegetais dos quais nos alimentamos; o nosso DNA nos vêm dos nossos ancestrais; nossos conhecimentos nos foram transmitidos por nossos pais, nossos professores, nossas leituras; a língua que falamos é uma herança; a fé que professamos nos vem da Escritura, transmitida pelo Povo de Deus. E só podemos tornarmo-nos nós mesmos através do amor que faz com que demos aos outros tudo o que recebemos e que nos constitui. Eu me recebo e me dou: só assim posso ser imagem de Deus. A este movimento de troca e intercâmbio, posso nomeá-lo de Espírito. Espírito que me foi dado para que, por Ele, eu me construa como sua imagem e semelhança.
Ressalte-se de tudo isso que jamais devemos ver Deus através da imagem de um rei sentado em seu trono, ainda que flanqueado por um filho. Menos ainda, pela associação de três personagens de diferentes origens. Repitamos, Ele é intercâmbio, é relação, é passagem para o outro. A sua «substância» é isto. No princípio, diz João, era o Verbo, a Palavra. No começo, na base de tudo. A palavra é precisamente a passagem de um ao outro, para «informá-lo», dar-lhe forma, e a forma dada é, ainda e também, troca, intercâmbio. Imensa rotação que desborda todo limite e se expande em imagens e semelhanças que só podem existir se «seguimos o movimento». Esta passagem de si para o outro, pela qual cada um existe, podemos chamá-la de Amor, porque é a vontade de que o outro exista. É por esta vontade e por este dom de si mesmo, por esta passagem de si para o outro, que cada um existe. Eu só sou o que dou: e não há Pai pré-existente ao Filho. O Cristo não se torna totalmente Si mesmo senão no dia em que nos deu sua vida para nos fazer viver, entregando-se totalmente também ao Pai, de Quem Ele mesmo também se recebeu. João diz que, ao emitir o Espírito, Ele o entregou ao mundo. A Paixão é revelação trinitária. Não temos, pois, nenhuma definição da Trindade que seja plenamente confiável, mas temos dela uma demonstração «pascal». É por isto que o Corpo do Cristo, no singular, daí em diante é plural. É «assembleia» (Igreja). A unidade de Deus só é visível sobre a terra através da unidade dos homens. Estamos ainda longe de realizar isto e por isso é que ainda não vemos Deus tal qual Ele é (1 João 3,1-2). Enquanto esperamos, cabe-nos nos abrirmos para os outros, quaisquer que sejam eles, abrindo-nos para Deus, e nos tornarmos semelhantes a Ele.
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Quem é este Deus que encontra sua felicidade no meio dos homens? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU