23 Fevereiro 2018
“E transfigurou-se diante deles” (Mc 9,2)
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 2° Domingo do Tempo da Quaresma - Ciclo B (25/02/2018) que corresponde ao texto bíblico de Marcos 9,2-10.
Todos nós temos consciência que a superficialidade, o consumismo e o individualismo são as marcas de nossa sociedade atual. Marcas que nos des-figuram e nos desumanizam. Já o grande teólogo Paul Tillich (1886-1965) afirmava que “a grande tragédia do homem moderno é ter perdido a dimensão de profundidade”. Nas suas obras há um insistente apelo a re-encontrar aquilo que ele chamava “a dimensão perdida”.
Este é o contrassenso humano: por uma parte, salta à vista a tendência a instalar-se na superficialidade (chamemos isso de “zona de conforto” ou simplesmente “comodidade”) e, por outra, a certeza de que somos todos habitados por um anseio que nos chama constantemente para a profundidade (chamemos isso de “nossas raízes”, “nosso ser”..., em definitiva, “nossa casa”). Entre esses dois extremos – superficialidade e profundidade – transcorre nossa vida.
No fundo, a superficialidade, o consumismo e o individualismo são tão somente tímidas compensações que tentam aliviar o vazio de sentido que nos habita; ao mesmo tempo se apresentam como “cantos de sereia” que nos distraem daquilo que é verdadeiramente importante: viver o que somos.
Talvez, a chamada “dimensão perdida” não seja outra coisa que a “trans-figuração” de nossa verdadeira identidade. Este é o apelo do Evangelho de hoje: viver “trans-figurados” a partir de nossa interioridade.
Estamos vivendo fora de nós mesmos, daí que nosso mundo interno permaneça na obscuridade. Se nos voltarmos para dentro, se nossa atenção começa a dirigir seu foco para o interior, então tudo se ilumina.
O chamado “mistério” da “Transfiguração” poderia ter sido, em sua origem, um relato de aparição do Ressuscitado. Posteriormente teria sido re-elaborado para transformar-se numa declaração messiânica: Jesus, confirmado pelas Escrituras judaicas, representadas nas figuras de Moisés (“a Lei”) e Elias (“os profetas”), é apresentado como “Filho amado” de Deus. Todo Ele é transparência e luminosidade.
Jesus viveu constantemente transfigurado, mas isso não se expressava externamente com espetaculares manifestações. Sua humanidade e sua divindade se revelavam cada vez que se aproximava de uma pessoa para ajudá-la a ser ela mesma. A transfiguração deixa de ser um evento para tornar-se um modo permanente de Jesus viver, pois a única luz que nele se revela é a do amor; e só quando manifesta esse amor, ilumina. Na sua humanidade deixa transparecer a luz de Deus.
A Transfiguração não está só nos dizendo quem era Jesus, mas também quem somos realmente. Ela des-vela também nossa identidade e nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade. Por isso, uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano, é transparência de Deus.
A transfiguração desencadeia um movimento interno de busca continuada e revela que o ser humano é inquieto por natureza, e será sempre assim, em seu afã de abrir-se a um horizonte cada vez mais amplo. Todo o ser humano traz em seu interior uma faísca de luz que busca expandir-se; não falta ao seu coração a sede de eternidade.
Transfiguração, portanto, é transformação do espaço interior. Em meio às sombras profundas, marcadas pelos traumas, feridas, experiências negativas..., encontram-se “pontos de luz”. Temos todos os recursos necessários para ativá-los. Então, o círculo de nossa luz vai se ampliando, começando pelo nosso eu mais profundo; ela vai se fazendo cada vez mais extensa, iluminando toda a realidade cotidiana. Passaremos, a viver como “seres trans-figurados”.
Cuidemos, pois, do coração, pois dele brota a luz e a vida! Iluminemos nosso caminhar com a luz que há em nós mesmos!
Nesse sentido, a cena da Transfiguração vem nos recordar que, na essência, somos luminosidade; por detrás de comportamentos com frequência sombrios, continuamos sendo transparência. Isso é o que nós cristãos reconhecemos em Jesus: Ele é o “espelho” nítido no qual vemos nossa identidade profunda. E essa identidade é luz e transparência.
Não é casual que, mesmo perdidos nas trevas de nossa inconsciência, sentimos saudades da luz. Também não é casual que, mesmo nas ações mais complicadas e questionadas, procuramos justificar nossa transparência. Uma e outra des-velam quem somos; por isso mesmo, se tornam imprescindíveis para viver com mais intensidade. Que impede que possamos percebê-las em nós e nos demais?
Nossa essência é luminosa, transparente, simples, doce, verdadeira... Mas, para percebê-la, precisamos nos despertar. E isso implica e significa, ao mesmo tempo, viver ancorados em nossa verdadeira identidade.
Para além do “ego superficial”, a trans-figuração nos faz acessar a um “lugar” sempre estável, sólido e permanente, onde reconhecemos a presença d’Aquele que é a Luz indizível.
Esse “lugar” é sempre luminosidade e transparência. E a partir dele tudo fica transfigurado. Na realidade, não é que as coisas se transfigurem, senão que, mais exatamente, vemos em tudo a Verdade, a Bondade e a Beleza daquilo que é.
Se soubéssemos olhar com os olhos transfigurados veríamos que por detrás das pobres aparências se escondem muitos sentimentos de bondade, de generosidade, de fidelidade e amor.
A transfiguração nos fala da verdade que levamos dentro de nós, mas também dos novos olhos que precisamos para ver. Se soubéssemos olhar com os olhos do coração, veríamos a luz maravilhosa escondida no interior de cada pessoa.
Conhecemos as pessoas por fora. Quem as conhece por dentro?
Debaixo das aparências de vulgaridade, pode se esconder um grande coração.
Transparente é um modo de ser e de agir; é a condição para que possamos viver em chave pascal, para poder ver Deus presente e atuante em tudo e em todos.
O grande desafio para viver a transparência é facilitar, no meio de nossa cultura acelerada e carregada de imagens, espaços sossegados para perceber o que o Espírito vai fazendo em nós. Se não sabemos o que nos acon-tece por dentro, dificilmente poderemos ser presença iluminadora junto aos outros.
- Como seguidores(as) de Jesus, somos chamados a ser cúmplices do Espírito, abrindo-nos totalmente à sua ação e deixando-nos trans-figurar por Ele.
- Como isso pode se fazer presente no seu ritmo cotidiano de trabalho, nas relações, no compromisso...?
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Trans-figuração: expandir a luz interior - Instituto Humanitas Unisinos - IHU