A pandemia do novo coronavírus gerou uma paralisação inimaginável para o padrão de vida que se levava no século XXI. Até mesmo a Igreja Católica, lugar de fé e, para muitos, de cura, fechou as portas dos seus templos no mundo inteiro. A Celebração Eucarística não mais contava com a participação física da assembleia. Católicos acompanhavam a missa por celulares e computadores desde a sua própria casa. O confinamento litúrgico questionou: como ser católico sem os sacramentos? Qual o significado da missa digital? Como comungar em tempos de isolamento? Ao momento em que alguns locais reabrem seus templos, celebra-se a festa de Corpus Christi. Para essa data selecionamos algumas das reflexões sobre a Eucaristia em tempo de pandemia, publicadas pela IHU On-Line.
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O fechamento dos templos partiu de uma orientação do Vaticano. Em 20 de março, o Vaticano autorizou que padres oferecessem a absolvição geral para minimizar o risco de contágio pelo vírus. Ao final da Quaresma, em 25 de março de 2020, quando o coronavírus já estava em todos os continentes do mundo, um decreto da Congregação para o Culto Divino proibia a realização de missas na Semana Santa. Em 19 de abril, o papa Francisco na homilia de suas missas matinais reforçou a orientação para “não viralize a Igreja, não viralize o povo de Deus”.
Desde o Sínodo Pan-Amazônico o impedimento de alguns fiéis de receber a Eucaristia tornou-se assunto comentado entre os teólogos. Porém, há uma diferença evidente e crucial entre o debate proposto no Sínodo e durante a pandemia: a questão sanitária. Enquanto na Amazônia as comunidades queixam-se pela ausência de vocações e ministérios ordenados; durante a pandemia, a falta da Eucaristia, e de outros sacramentos e serviços, tem a ver com a saúde da população. Contraditoriamente, como aponta dom Robert Flock, bispo na Bolívia, “os grupos que dificultaram qualquer flexibilização às comunidades amazônicas, são os mesmos que defendem romper com o isolamento”.
O jejum eucarístico causou inquietação, provocou discussões e interpretações teológicas atualizadas ao momento excepcional que se vivia. No Vaticano e na maioria das paróquias, a solução encontrada foi a celebração online, transmitida ao vivo por diversas plataformas e redes sociais. Em alguns locais, criou-se até uma distribuição drive-through da Eucaristia. Porém, em que ponto uma celebração sem a assembleia é válida?
Para o monge Goffredo Boselli, as missas celebradas sem a assembleia reforçavam uma ideia de passividade aos leigos, que apenas assistem à consagração do pão e do vinho. O padre Vanildo Paiva também questionou a validade das missas por streaming: “as missas transmitidas pelas mídias equivalem à missa participada presencialmente? Obviamente não. Têm valor enquanto uma forma a mais de oração e escuta da Palavra de Deus e da Igreja, mas, mesmo que assistidas com piedade e devoção, para o fiel não é celebração eucarística”.
O monge beneditino Michael Davide Semeraro destaca que a prática passiva da celebração corre o risco de levar a um retorno à liturgia pré-conciliar. Para ele, a centralização do rito sacramental pode responder apenas a uma devoção pessoal. “Enquanto um presbítero se sentir não apenas no direito, mas até no dever de celebrar sozinho, sem comunidade, para cumprir uma devoção pessoal ao invés do seu próprio ministério ordenado à vida sacramental de uma comunidade, a ambiguidade permanecerá intocada”, pondera Semeraro.
Para Thomas O’Loughlin essa passividade não se deu apenas pela pandemia. O teólogo inglês ressalta que se tornou hábito a linguagem da passividade. “A imagem em nossas mentes é que a Eucaristia é algo ‘lá fora’, a que assistimos ou de alguma forma obtemos e da qual nos apossamos, como se fôssemos frequentadores de teatro ou consumidores. Mas a palavra ‘Eucaristia’ se refere a um verbo: é algo que nós, todo o povo de Deus, fazemos”, observa O’Loughlin.
Para dom Flock, a Eucaristia possui uma dimensão maior, complexa e completa. “Se vivermos os sacramentos na sua verdadeira profundidade como fiéis batizados, quando nos sentamos à mesa da Eucaristia, experimentaremos uma autêntica comunhão familiar, e quando nos sentarmos à mesa familiar, experimentaremos uma Eucaristia, porque ambas as atividades serão participação na morte e ressurreição de Cristo”, explica.
A compreensão da Eucaristia como a comunhão de um projeto, tal qual a vida de Cristo, recordam também do insistente convite que o padre jesuíta Hilário Dick, falecido em março deste ano, costumava proferir: “celebrar a Eucaristia é beber e comer da nossa utopia”.
No entanto não é consenso que as missas online significam mera assistência e passividade da assembleia para com o rito. Moisés Sbardelotto, doutor em Ciências da Comunicação, considerando as recomendações do Vaticano e da CNBB, pondera: “se uma missa ‘sem povo’ ou ‘sem a presença de fiéis’ é transmitida ao vivo justamente para que o povo e os fiéis possam participar ‘ativa e efetivamente’, é possível continuar afirmando a ausência desse mesmo povo? Será que a mediação digital permite uma forma de presença ou, pelo contrário, reforça a ausência do povo? As tecnologias ‘despresencializariam’ o contato humano?”.
Para Sbardelotto, a noção do que é conexão e contato precisa ser compreendida, mais do que “onde” isso acontece. “Ao estabelecermos um ‘con-tato’ em rede, deparamo-nos com novas experiências de ‘tato’, em que não abrimos mão de nossos corpos, afetos, sensações, sentimentos”, explica ao se referir que a conexão “digital” é também “real”. E conclui: “Para superar a mera assistência/audiência, a mera transmissão e o mero individualismo em rede, é preciso buscar formas que permitam um verdadeiro encontro, uma verdadeira escuta e um verdadeiro diálogo com as pessoas que se conectam com as redes digitais da Igreja [...] O ‘lugar’ de encontro muda de acordo com as pessoas e os tempos e hoje ganha novos sentidos e desdobramentos no ambiente digital. O importante não é o ‘onde’, mas sim reunir-se em comunidade em nome de Jesus – seja em rede ou fora dela”.
O jesuíta australiano Michael Kelly também provoca a pensar a relação do “catolicismo digital” com a Eucaristia, defendendo que tal prática já era aplicada antes da pandemia: “Hoje, enfrentamos outro desafio, e, sinceramente, não consigo ver que uma participação ‘virtual’ na Eucaristia seja tão teologicamente diferente do que ocorre nas megaproduções eucarísticas que ocorrem nas missas papais em todo o mundo”. Para o jesuíta é preciso refletir sobre “a expansão de oportunidades virtuais para a celebração da fé”.
O fechamento dos templos alterou a forma de trabalho da Igreja, provocando questionamentos sobre a sua própria razão de ser. Para o jesuíta boliviano Victor Codina e o teólogo tcheco Tomáš Halík a pandemia um sinal de Deus para uma mudança epocal, um “kairós”. Segundo Codina, era um convite para “passar de uma Igreja sacramentalista e clerical a uma Igreja evangelizadora”. E Halík provocou: “este nosso tempo de mudança de civilização não requer, talvez, uma nova teologia da história contemporânea e um novo modo de entender a Igreja? Podemos acolher isso como um kairós: um momento oportuno para ‘avançar para águas mais profundas’ e procurar uma nova identidade para o cristianismo, em um mundo que se transforma radicalmente debaixo dos nossos olhos”.
Em linha parecida aparece a crítica de José María Castillo às declarações do cardeal Robert Sarah, prefeito da Sagrada Congregação para o Culto Divino, sobre a rigorosidade com o rito de levar a comunhão aos doentes. Castillo escreveu: “no juízo de Deus, será determinante somente uma coisa: não o cumprimento e a observância dos ritos religiosos, mas sim a retidão e honestidade ética que tivemos com nossos semelhantes, sobretudo e concretamente com os que sofrem e passam mal na vida”.
Um movimento pela volta das missas também se formou e dirigiu ataques aos bispos “coniventes com a sociedade secularizada”. Tendo como lema “Devolvam-nos a missa”, os grupos de ultraconservadores chamaram os bispos de covardes por acatarem às recomendações de prevenção dadas pelos organismos internacionais de saúde.
Na Itália, a Conferência Episcopal também tentou adiantar a reabertura dos templos e criticou as medidas do governo que, na interpretação dos bispos italianos, comprometiam “o exercício da liberdade de culto”.
Os movimentos pela volta da missa causaram reações por diversos meios. Dom Luiz Flávio Cappio, bispo da Barra, na Bahia, acusou-os em carta para o clero e seminaristas da diocese: “são pessoas que não tem nenhum compromisso com a Igreja, grupos que nunca colocam seus pés em nossas Igrejas, mas que assumem posturas contrárias apenas para confundir os fiéis e criar divisão na Igreja”. O teólogo espanhol José Ignácio González Faus também os atacou: “Um farisaísmo católico equivaleria a um catolicismo não cristão. Parece inegável que o farisaísmo é a grande tentação de um certo catolicismo”.
José Antonio Rosas, diretor da Academia Latino-americana Católica, identificou nos grupos conservadores o mesmo padrão de ataques que sofrem às conferências episcopais da América Latina. Mas Rosas alerta para os “católicos comuns” que acabam aceitando com a visão radical devido ao incômodo com o “jejum eucarístico”. O direto ressalva “o enorme desafio que temos pela frente; é que deixemos nosso conforto e, em vez de reivindicarmos a abertura de um templo, encontremos Cristo de maneira especial entre os pobres, aflitos e doentes”.