19 Dezembro 2018
Venda à Boeing liquida empresa brasileira de sucesso mundial, frustra 50 anos de investimentos públicos e quebra sistema nacional de inovação. Governo pode barrar a venda. Terá coragem?
O artigo é de David Deccache, mestre em Economia pela UFF, ativista dos direitos humanos e, atualmente, exerce o cargo de Assessor Econômico da bancada de Deputados Federais do PSOL, publicado por Outras Palavras, 18-12-2018.
A Embraer anunciou, nesta segunda-feira, dia 17/12/2018, que aprovou, junto com a Boeing, os termos para a formação de uma joint venture na área de aviação comercial. O acordo ainda depende da aprovação do governo brasileiro e dos acionistas. A expectativa da empresa é de que receba o aval em 2019. O acerto prevê que a subsidiária da Boeing no Brasil adquirirá a participação de 80% do capital social no fechamento da operação, por um valor agregado de US$ 4,2 bilhões. O acordo manteve a possibilidade de a Embraer vender sua participação na joint venture de aviação comercial para a Boeing, a qualquer momento, por meio do exercício de uma opção de venda. Trata-se, basicamente, da aquisição de controle da Embraer pela Boeing. A Embraer é uma das maiores fabricantes globais de jatos de passageiros e foi a terceira maior exportadora do Brasil em 2017.
A sociedade entre Embraer e Boeing criará uma terceira empresa que, segundo o memorando de entendimento, será liderada por uma equipe de executivos sediada no Brasil uma vez que a transação seja consumada. Contudo, será a Boeing que terá o controle operacional e de gestão da nova empresa, ou seja, a Embraer será mera figurante na “parceria”.
Segundo informação divulgada no site da Embraer, com a finalização dos detalhes financeiros e operacionais da parceria estratégica e a negociação dos acordos definitivos da transação, o acordo estará, então, sujeito a aprovações regulatórias e de acionistas, incluindo a aprovação do governo brasileiro, já que apesar de a Embraer ser uma empresa privada, o governo brasileiro tem uma “golden share” na empresa (ação de ouro) que lhe dá poder de veto, de tomar decisões estratégicas ou de impor precondições a acordos. Caso as aprovações ocorram no tempo previsto, a expectativa é que a transação seja fechada até o final de 2019.
Inicialmente, no memorando de entendimento, a nova sociedade englobaria apenas a aviação comercial, que engloba a maior parte das atividades da empresa brasileira,deixando de fora suas áreas de aviação executiva, serviços e suporte e aviação de defesa. Contudo, a Embraer anunciou nesta segunda-feira, dia 17/12/2018, que o acordo também incluirá a formação de uma segunda joint venture com a Boeing envolvendo a área de defesa, inicialmente com uma parceria em torno do avião cargueiro militar KC-390, um dos mais modernos do mundo em sua categoria e, também, o maior avião produzido na América Latina.
A Embraer nasceu como uma iniciativa do governo brasileiro dentro de um projeto estratégico para implementar a indústria aeronáutica no país em um contexto de políticas de substituição de importações, ou seja, de busca pela maior independência comercial e por uma inserção mais ativa na divisão internacional do trabalho. São considerados os precursores da Embraer o antigo Centro Técnico Aeroespacial (CTA) que, em 2009, passou a ser denominado Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA) e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Ambas as instituições foram criadas, respectivamente em 1946 e 1950, pela Forca Aérea brasileira. Finalmente, a empresa foi fundada no ano de 1969 como uma sociedade de economia mista vinculada ao Ministério da Aeronáutica.
O final da década de 1980 foi marcado por crises financeiras que abalaram o conjunto dos países periféricos, atingindo em cheio a economia brasileira e,por consequência, a capacidade do governo em sustentar os investimentos necessários à sobrevivência da Embraer, que quase fechou. Em 1994, durante o governo Itamar Franco, a empresa foi leiloada.
Contudo, mesmo privatizada, nos anos 1990, o crédito público via BNDES foi fundamental para a empresa passar a ser a terceira maior fabricante de jatos comerciais do mundo, o que prova a forte participação do Estado desde a fundação da empresa até o momento de sua maturidade, ou seja, os custos de construção da Embraer foram historicamente socializados com o conjunto da sociedade, embora os lucros, em boa parte, estejam sendo privatizados.
Apesar do governo federal apontar para a consolidação do acordo, o Comandante da Aeronáutica, brigadeiro Nivaldo Rossato, afirmou, em 4/7, em audiência pública na Comissão de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, que não há nada de concreto sobre a fusão e que estão, ainda, considerando muito a questão da soberania nacional. Vale destacar que quando o Comandante da Aeronáutica se pronunciou neste sentido, as prévias de acordo não incluíam nenhum tipo de parceria na área de defesa. Segundo a fala do comandante, fica claro, portanto, que há riscos relevantes para a soberania nacional na negociação que está em curso, ainda mais agora que ficou claro que a área de defesa foi inserida no acordo.
É importante mencionarmos que a Embraer entregou 108 aeronaves comerciais e 117 executivas no ano de 2016, ao passo que construiu 15 aviões militares. É relevante notarmos que a maior parte da produção e, provavelmente, do lucro da empresa, decorre do segmento comercial. Com isso, a grande questão é se o setor militar da empresa sobreviverá e continuaria avançando sem o excedente de lucro gerado no segmento comercial. Sendo assim, caso o financiamento do segmento militar da empresa se torne inviável ou extremamente limitado, isso empurrará a empresa para novas negociações de parceira comercial na área militar no futuro. O segmento militar da Embraer, como muito bem advertiu o próprio comandante da Aeronáutica, é essencial para a manutenção da soberania nacional.
A Embraer é a terceira maior exportadora do Brasil, segundo balanço do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços para o ano de 2017. Está atrás apenas da Vale e da Petrobras, nessa ordem. Por questões de sigilo comercial, o ministério diz que não divulga o valor exato de exportação das empresas.
Os dados acima demonstram, claramente, a importância da Embraer como fonte de recursos em divisas internacionais, como o dólar, para o Brasil. Também fica clara a relevância da empresa para o equilíbrio do balanço de pagamentos brasileiro.
A geração de receitas em dólares e outras moedas fortes é fundamental para garantir a países periféricos como o Brasil autonomia e independência financeira de forma que os mesmos não corram o riso de ficarem sem recursos para realizarem importações e para o cumprimento de suas obrigações em moedas estrangeiras. A escassez de divisas, durante a década de 1990, nos levou a sérias crises que nos deixavam nas mãos do FMI, logo vulneráveis as demandas por contrapartidas perversas impostas pelas instituições lideradas pelos países centrais: privatizações, austeridade fiscal e desregulações trabalhistas. Perder a Embraer poderá ser um retrocesso, também, neste sentido.
Por fim, a fusão anunciada implicará em grande remessa de lucros e dividendos da produção aeronáutica brasileira para a “matriz estrangeira”, o que implica em deterioração estrutural do balanço de pagamentos.
Segundo o diretor do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (CIESP), Cesar Augusto Andrade, se não tiver proteção, a cadeia produtiva aeroespacial vai morrer num curto espaço de tempo. A cadeia produtiva da Embraer no Brasil é formada hoje por cerca de 70 empresas, que empregam em torno de 5 mil funcionários. No acordo anunciado coma Boeing a cadeia de fornecedores nacionais da Embraer não foi mencionada.
Um Sistema Nacional de Inovação compõe-se do envolvimento e integração entre três principais agentes: o Estado, responsável por aplicar e fomentar políticas públicas de ciência e tecnologia; universidades e institutos de pesquisa responsáveis por criar e disseminar o conhecimento; e empresas responsáveis pelo investimento na transformação do conhecimento em produtos. Nesses sistemas o investimento público e a ação do Estado como fomentador, financiador e aglutinador são sempre essenciais. A história da Embraer é um dos poucos casos na história econômica brasileira de um sistema nacional de inovação bem-sucedido que, agora, lamentavelmente, está sendo gravemente ameaçado (ver mais aqui).
Em 5 de dezembro, uma ação popular ajuizada pelos deputados federais do PT, Paulo Pimenta, Carlos Zarattini, Nelson Pellegrino e Vicente Cândido, gerou uma liminar que suspendeu a fusão. Contudo, no dia 10 deste mesmo mês, o Desembargador Federal Souza Ribeiro, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), cassou a liminar da 24ª Vara Cível da Justiça Federal de São Paulo que havia suspendido operação de transferência da Embraer para a Boeing. O relator alegou que a invasão do Judiciário na autonomia privada das partes causa insegurança jurídica: “uma negociação entre duas empresas privadas, que operam segundo os princípios da livre iniciativa e liberdade negocial, não se vislumbrando afetação a interesses públicos e nem restrições advindas de normas jurídicas em geral, constitucionais ou legais, de forma que se mostra incabível qualquer interferência do Poder Judiciário em tais ajustes que destoe do controle da legitimidade dos atos praticados”.
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Adeus à Embraer? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU