13 Outubro 2018
O fato de ver em primeira mão a pobreza e a repressão dos trabalhadores rurais, levou Romero a mudar.
A reportagem é de Gene Palumbo, jornalista freelancer que mora em El Salvador. Ele foi para lá em 1980, imediatamente após Romero ser assassinado e acabou ficando para cobrir a guerra civil no país (1980-1992) e as suas consequências. É também correspondente local do jornal New York Times em El Salvador e trabalhou para a National Public Radio, a BBC, a Canadian Broadcasting Company e as revistas Commonweal e Time. O texto foi publicado em National Catholic Reporter, 10-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A sabedoria convencional sobre Óscar Romero é a seguinte: quando um esquadrão da morte de direita matou um padre amigo dele logo depois que ele se tornou arcebispo, Romero – até então um conservador convicto – experimentou uma conversão comovente, realmente transformadora.
Mas a sabedoria convencional está gravemente equivocada.
O próprio Romero a rejeitou, assim como aqueles que mais o conheciam. Existem abundantes evidências, mas para mim o argumento decisivo é uma história contada por Paul Schindler, um padre de Cleveland que trabalhou em El Salvador antes e durante os anos de Romero como arcebispo de San Salvador.
Mulheres olham para uma pintura do arcebispo salvadorenho Óscar Romero na catedral de San Salvador (Foto: CNS/Reuters/Jose Cabezas)
Schindler era pároco da paróquia onde as irmãs ursulinas Dorothy Kazel e Jean Donovan – duas das quatro mulheres da Igreja dos Estados Unidos que foram estupradas e assassinadas em 1980 por tropas do governo – viviam e trabalhavam. Eu contei a sua história na revista ReVista: Harvard Review of Latin America (primavera de 2016):
O Pe. Paul Schindler lembra o dia em que Óscar Romero se sentou ao seu lado, tremendo. Romero sabia que não estava entre amigos. A cena foi uma reunião do clero no início de 1977, e muitos dos padres estavam furiosos: um homem com quem eles entraram em conflito – Romero – acabara de ser nomeado como o novo arcebispo.
Quando a reunião estava terminando, Romero – que ainda não tinha sido tomado posse – foi questionado se gostaria de dizer algumas palavras. Tudo o que Schindler sabia era que estas seriam as últimas palavras que ele ouviria dele. Desanimado com a perspectiva de trabalhar com Romero (...) Schindler havia dito a seu bispo em Cleveland que decidira voltar para casa depois de oito anos de trabalho paroquial em El Salvador.
“Ele caminhou até a frente da sala e começou a falar”, disse Schindler, “e, depois de meia hora, eu disse para mim mesmo: ‘Eu não vou a lugar algum’.”
Tendo arrumado suas malas, Schindler decidiu desfazê-las e continuar trabalhando em El Salvador depois de ouvir Romero. Isso foi antes de Romero tomar posse como arcebispo e antes do assassinato do padre amigo de Romero, o jesuíta Rutilio Grande.
O que tinha acontecido? Sem o conhecimento de Schindler – e de muitos outros –, Romero havia se transformado durante uma estada prolongada, em meados dos anos 1970, em um lugar distante da capital. No início dos anos 1970, como bispo auxiliar em San Salvador, ele era visto como altamente conservador; esse foi o período em que ele atraiu a ira dos padres que ficaram tão incomodados com a notícia da sua nomeação como arcebispo.
Mas, em 1974, ele foi nomeado bispo da diocese rural de Santiago de María. Lá, ele se aproximou de trabalhadores rurais e catequistas que eram alvo dos militares. O que ele viu o levou a uma grande mudança de perspectiva.
Mural de Dom Romero e do padre jesuíta Rutilio Grande em El Paisnal, El Salvador (Foto: CNS/Octavio Duran)
Durante o primeiro ano de Romero em Santiago de María, a Guarda Nacional massacrou os trabalhadores rurais na localidade de Tres Calles. Depois de visitar a cena, Romero escreveu uma carta ao então presidente, coronel Arturo Molina, expressando seu “firme protesto”
“... pelo modo como uma ‘força de segurança’ agira erroneamente, como se tivesse o direito de maltratar e matar. (...) [Eu fui lá] para consolar as famílias que haviam sido atacadas (...) por um esquadrão da Guarda Nacional. A caminho das suas casas, eu parei para rezar pelo corpo de uma vítima ainda não enterrada que havia sido baleada na cabeça. Sua esposa e sua mãe estavam ao lado dele, chorando. Quando cheguei às casas que haviam sido invadidas pelas forças armadas, partiu meu coração ouvir os amargos lamentos das viúvas e dos órfãos que, soluçando de forma inconsolável, me contaram sobre o ataque.”
Como Kevin Clarke relatou no livro Oscar Romero: Love Must Win Out: “Mais tarde, Romero visitou o comandante local [da Guarda Nacional] para protestar contra o massacre. O oficial descartou as mortes como um acerto de contas trivial com malfeitores locais e disse, apontando o dedo para Romero: ‘As batinas não são à prova de balas’”.
Romero estava começando a entender a situação.
Quando ele chegou à diocese, os proprietários de terras insistiram que ele fechasse um centro pastoral local que oferecia formação alinhada com o pensamento da Igreja do pós-Vaticano II. Os latifundiários estavam especialmente incomodados com um padre que ensinava lá. Eles alegavam que ele era comunista.
Certa noite, Romero foi até o centro e, sem que o padre soubesse, ficou do lado de fora da sala de aula, ouvindo a sua apresentação. Romero não achou nada de ortodoxo e, quando foi perguntado depois sobre o padre, comentou: “Se ele é comunista, eu sou marciano”.
Mesmo assim, ele fechou o centro – temporariamente. Quando sua decisão foi contestada, ele concordou em reconsiderá-la e, no fim, para a consternação dos latifundiários, reabriu o centro.
Romero ficou chocado com o sofrimento dos trabalhadores rurais itinerantes – muitas vezes famílias inteiras, incluindo esposas e filhos – que iam até a região para trabalhar na colheita do café. Obrigados a passar as noites frias dormindo ao ar livre no chão, eles muitas vezes acabavam ficando doentes.
Mais cedo, Romero havia citado com aprovação a passagem da encíclica do Papa Leão XIII sobre o trabalho e o capital (Rerum Novarum, 1891) que condenava a prática de fazer com que os trabalhadores fossem “entregues sozinhos e indefesos à desumanidade dos patrões”. Agora, ele abria as instalações da Igreja à noite para lhes oferecer comida e abrigo, e muitas vezes passava as noites com eles, ouvindo sobre suas dificuldades.
Ficou claro que, para que eles tivessem uma vida decente, o país teria que empreender uma grande reforma agrária, devolvendo as terras que lhes haviam sido tiradas anteriormente. Essa perspectiva era impensável para os proprietários de terras, tanto que, quando o ditador militar do país anunciou uma pequena reforma agrária como uma tática para enfraquecer o crescente movimento de protesto dos trabalhadores rurais, os latifundiários o forçaram a engavetá-la.
Sem se deixar intimidar pela hostilidade dos latifundiários, Romero considerou a questão da reforma agrária tão importante que agendou um congresso de três dias sobre o assunto para os padres e os leigos da diocese, convidando especialistas de San Salvador para dar as conferências.
Anos depois, um dos especialistas, Rubén Zamora, disse: “Eu ainda guardo esta imagem dele naquelas conversas: sentado a uma mesa escolar na primeira fila, tomando notas, ouvindo atentamente. Você podia ver que ele realmente queria aprender Sua preocupação era como a Igreja podia ajudar”.
Essas experiências e outras estão detalhadas em um livro cujo título é uma citação de Romero: In Santiago de María, I Came Face to Face With Misery [Em Santiago de María, eu me deparei com a miséria] (organizado por Zacarías Díez e Juan Macho Merino, 1995). Ele ficou tão afetado por aquilo que viu lá que, quando retornou a San Salvador em 1977 e proferiu a fala que fez com que Paul Schindler desse meia volta, ficou claro que ele mesmo havia dado meia volta.
Dom Romero visita La Chacra, em San Salvador, El Salvador, em 1979 (Foto: NCR/June Carolyn Erlick)
Eu perguntei à jornalista María López Vigil, editora e autora de Monseñor Romero: Memories in Mosaic, como ela via a evolução de Romero:
“As pessoas relacionaram quase mecanicamente a conversão de Romero ao assassinato de Rutilio e aos eventos ao seu redor. Eu acho que isso é excessivo. (...) Não foram ideias que mudaram [Romero]. Foi a realidade. Isso é elementar. Quando ele era bispo auxiliar em San Salvador, seu contato com a realidade era limitado pelo seu trabalho [secretário da Conferência Episcopal] e pelo escritório em que ele trabalhava. Quando ele estava em Santiago de María, em um período de repressão, ele se aproximou dos trabalhadores rurais em seu sofrimento, em seu trabalho e em seus compromissos como catequistas, e tudo isso o mudou. Acho importante destacar isso, para não simplificar demais o seu processo de conversão. O que aconteceu com Rutilio foi o ápice de uma jornada em que ele estava.”
Em uma recente homenagem a Romero, o eminente teólogo moral Pe. Charles Curran escreveu: “O que muitos chamaram de ‘milagre de Rutilio’ foi a realidade que levou ao compromisso [de Romero]”.
Certamente, o assassinato de Rutilio foi doloroso para Romero, dada a sua proximidade, mas não foi o “milagre” que alguns – o pacifista John Dear, por exemplo – insistem que foi. “De repente”, escreveu Dear no NCR, “a nação tinha uma figura imponente em seu meio. (...) De pé ao lado do corpo de Grande naquela noite, Romero foi transformado em um dos grandes defensores mundiais dos pobres e dos oprimidos”.
Mas Romero não foi “transformado de repente” ou “convertido de repente”; sua mudança foi um processo que vinha ocorrendo há vários anos antes do assassinato de Rutilio.
Também é importante refutar a alegação de Dear sobre quem Romero havia sido antes: “Ele se aliou aos gananciosos latifundiários, importantes agentes do poder e violentos esquadrões da morte”. Essa flagrante falsidade não tem absolutamente nenhuma base nos fatos. Ao contrário: mesmo antes da sua estada em Santiago de María, Romero havia denunciado como “injustas” aquelas leis que favoreciam “os interesses dos legisladores e da minoria dominante”.
O filme “Romero” é outro dos culpados que promovem a crença de que a mudança de Romero foi toda em torno da morte de Rutilio. Além de outras de suas falsidades (por exemplo, o filme mostra Romero sendo preso e encarcerado e, em outra ocasião, detido e despojado, e mostra um dos padres jesuítas que trabalhava com Rutilio pegando em armas – nada disso aconteceu), “Romero” inventa uma ruptura entre Rutilio e Romero pouco antes de Grande ser morto, em que Rutilio diz a Romero:
“Você não vê o que está acontecendo por aqui? Qualquer um que diga o que pensa sobre reforma agrária ou salários ou Deus ou direitos humanos (...) automaticamente é rotulado de comunista (...) Ele passa a viver com medo (...) Eles o levam embora (...) Eles o torturam, eles o matam (...) Você não acredita em mim, acredita? Adeus, Óscar.”
Essa é uma invenção total. Romero sabia o que estava acontecendo, e Rutilio, longe de romper com ele, estava constantemente tomando posição por ele, tentando convencer os padres relutantes a lhe darem uma chance. Uma ruptura entre os dois? De jeito nenhum. É claro, se você decidir que seu filme apresentará o assassinato de Rutilio como um “caminho para Damasco”, como um momento em que Romero, como Paulo, foi subitamente “convertido”, a narrativa da ruptura se ajusta bem às coisas. Há apenas um problema: não é verdade.
De fato, Romero se opôs às pessoas que falavam da sua “conversão”. O cardeal salvadorenho Gregorio Rosa Chávez diz: “Uma vez, eu lhe fiz a seguinte pergunta: ‘Monseñor, eles dizem que o senhor se converteu. É verdade?’. Lembro-me bem da sua resposta: ‘Eu não diria que foi uma conversão, mas sim uma evolução’”.
Como Romero escreveu em outra ocasião, foi “uma evolução do meu próprio desejo que eu sempre tive de ser fiel ao que Deus me pede; e, se antes eu dei a impressão de ser mais ‘prudente’ e mais ‘espiritual’, era porque eu sinceramente acreditava que, assim, respondia ao Evangelho, pois as circunstâncias do meu ministério não haviam se mostrado tão exigentes de uma fortaleza pastoral que, em consciência, eu creio que, sim, me era pedida nas circunstâncias em que assumi o arcebispado”.
Dom Romero preside uma missa de Crisma em Ateos, em San Salvador, El Salvador, em 1979 (Foto: NCR/June Carolyn Erlick)
O Mons. Ricardo Urioste era vigário geral de Romero e talvez a pessoa mais próxima dele. Ele também contesta a alegação de que houve um “milagre de Rutilio”:
“Diz-se que o arcebispo Romero mudou drasticamente com o assassinato do Pe. Rutilio Grande e que a sua conversão aconteceu menos de um mês depois que ele se tornou arcebispo. Eu não acredito que seja assim. (...) [Ele] começou a ver gradualmente, ao descobrir mais sobre o Evangelho, o magistério da Igreja e a dolorosa situação do povo. Tudo isso o modificou. Ele nunca falou de si mesmo em termos de conversão; ele falava de evolução. Por essa razão, ele escreveu sobre a ‘prontidão para mudar. Aquele que não muda não ganhará o reino’.”
Outro equívoco comum sobre Romero é que ele era um rebelde eclesiástico que agia com pouca consideração pela Igreja institucional. Não é verdade, diz López Vigil:
“Eu descobri que ele era imensamente fiel à Igreja institucional e à Igreja da base – a ambas. (...) Ele nasceu, cresceu, amadureceu e morreu com uma imensa fidelidade à Igreja institucional. Então, eu o vejo ‘dentro dela’ e não ‘apesar dela’.”
Assim, os posicionamentos que Romero tomou – posicionamentos que o colocaram em problemas e, no fim, o mataram – não foram exemplos de que ele ignorava a doutrina da Igreja ou se rebelava contra ela, mas de que ele a levava fielmente às suas últimas consequências – como ele fez, por exemplo, com a doutrina social católica.
O exemplo mais famoso ocorreu nas últimas palavras da sua homilia na véspera do seu assassinato. Naquela ocasião, como escreve Julian Filochowski, presidente do Romero Trust, “[Romero] abordou a espinhosa questão do que soldados comuns deveriam fazer quando ordenados a matar e a massacrar”. Romero disse:
“Perante uma ordem de matar que seja dada por um homem, deve prevalecer a Lei de Deus que diz: ‘Não matarás!’. Nenhum soldado é obrigado a obedecer a uma ordem contra a Lei de Deus. (...) Já é tempo de que eles recuperem a sua consciência e obedeçam antes à sua consciência do que à ordem do pecado. (...) Em nome de Deus, pois, e em nome deste sofrido povo cujos lamentos sobem até o céu cada dia mais tumultuosos, eu lhes suplico, eu lhes rogo, eu lhes ordeno em nome de Deus: cesse a repressão!”
Quando Romero fez esse apelo, Thomas Quigley, consultor da Comissão Justiça e Paz dos bispos dos Estados Unidos, estava sentado na catedral a poucos metros de distância. Quigley mais tarde escreveu: “Ele disse aos soldados, eles mesmos simples camponeses, que eles não estavam obrigados a cumprir ordens injustas de matar; uma teologia padrão dos manuais, mas, quando aplicada concretamente, geralmente era considerada traidora. Assim ela foi descrita no jornal da manhã de segunda-feira por um porta-voz do Exército”.
Romero foi assassinado na segunda-feira de tarde, enquanto celebrava a missa. A “teologia padrão dos manuais” havia sido considerada punível com a morte.
Urioste recordou outra ocasião em que Romero fez uma homilia particularmente forte. Depois, Urioste disse a ele que temia que isso provocasse uma resposta violenta. Romero respondeu: “Eu tinha que dizer aquilo. Se eu tivesse dito algo menos, eu teria fracassado; eu não estaria expressando a plenitude do ensino da Igreja”. Por essa razão Urioste, quando perguntado sobre que tipo de mártir Romero era, respondeu: “Ele foi um mártir do magistério”.
É apropriado, então, que Curran inclua em seu tributo a Romero um famoso exemplo de ensino magisterial retirado da declaração “A Justiça no Mundo”, do Sínodo internacional dos bispos católicos de 1971:
“A ação pela justiça e a participação na transformação do mundo parecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer, da missão da Igreja, em prol da redenção e da libertação do gênero humano de todas as situações opressivas.”
Com muita frequência, essas palavras foram ignoradas, mas não por Romero. Ele as viveu no seu ministério. Por fazer isso, ele foi acusado de ser antigoverno. Não, ele disse, “o conflito aqui não é entre a Igreja e o governo; é entre o governo e o povo, e a Igreja está com o povo”. Isso acabou levando a choques com as autoridades, mas, como Curran observou:
“A luta de Romero contra o governo e as suas injustiças não significaram um envolvimento inaceitável da Igreja ou das lideranças da Igreja no mundo da política. O que quer que afete as pessoas humanas, as comunidades humanas e o ambiente é, por essa mesma natureza, não apenas uma questão política ou legal. É uma questão humana, moral e, para quem crê, cristã. A tradição cristã tem reconhecido consistentemente que a ordem política está sujeita à ordem moral.”
Essa visão do papel da Igreja – compartilhada por Romero, mas rejeitada por aqueles que bloquearam o seu processo de canonização durante anos – foi ratificada pelo Papa Francisco ao desbloquear o processo e levá-lo em frente.
Uma multidão de San Antonio Los Ranchos, em Chalatenango, El Salvador, caminha com Dom Romero, ao chegar para celebrar a missa, em 1979 (Foto: CNS/Octavio Duran)
Francisco também não parou por aí. Ele fez outra coisa que há muito tempo clamava para ser feita. Muitas pessoas não estão cientes – mas Francisco sim – de como Romero era maltratado por todos os seus irmãos bispos, exceto um. Raramente houve uma condenação dos bispos tão forte quanto a que Francisco expressou a um grupo de peregrinos salvadorenhos que visitavam o Vaticano em 2015:
“Gostaria de acrescentar algo também que, talvez, passamos por cima. O martírio de Dom Romero não foi pontual no momento da sua morte. Foi um martírio-testemunho, sofrimento anterior, perseguição anterior, até a sua morte. Mas também posterior, porque, uma vez morto – eu era sacerdote jovem e fui testemunha disso –, ele foi difamado, caluniado, sujado, ou seja, seu martírio continuou inclusive por parte de irmãos seus no sacerdócio e no episcopado. Não falo por ter ouvido dizer. Eu escutei essas coisas.”
Foi bom ver – finalmente – Romero ser recompensado dessa forma.
Em uma visita ao Vaticano no fim dos anos 1970, Romero estava acompanhado pelo Pe. César Jerez, o então provincial jesuíta da América Central. No início dos anos 1970, Romero havia atacado os jesuítas pelo trabalho de conscientização que estavam realizando em seu colégio de elite em San Salvador. Ele também foi o líder do esforço que fez com que os jesuítas fossem expulsos do seminário interdiocesano, onde eles atuavam como professores há décadas e fez alusões desfavoráveis aos escritos do padre jesuíta Jon Sobrino, um proeminente teólogo da libertação que lecionava na universidade jesuíta de San Salvador.
Mas, quando Romero retornou à capital como arcebispo em 1977, ele convidou os jesuítas para produzirem um programa diário de notícias e comentários de uma hora para a rádio arquidiocesana e consultava Sobrino, entre outros, quando preparava suas cartas pastorais.
Jerez conta sobre uma noite em que eles deram um passeio pela Via della Conciliazione:
“Eu juntei a minha coragem e tentei convencê-lo a falar. ‘Monseñor, o senhor mudou... O que aconteceu?’
‘Você sabe, padre Jerez, eu me faço essa mesma pergunta quando estou em oração...’
‘E o senhor encontra uma resposta, Monseñor?’
‘Algumas respostas, sim... É que todos nós temos as nossas raízes, você sabe... Eu nasci em uma família pobre. Passei fome. Eu sei o que é trabalhar desde quando você é criança... Quando eu entrei no seminário e comecei meus estudos, e eles me enviaram para terminar de estudar aqui em Roma, eu passei anos e anos absorvido em meus livros e comecei a me esquecer de onde eu vinha. Comecei a criar outro mundo. Quando voltei para El Salvador, eles me colocaram como secretário do bispo em San Miguel. Eu fui pároco por 23 anos, mas ainda estava enterrado no meio da papelada... Então, eles me mandaram para Santiago de María, e eu corri para a pobreza extrema de novo. Aquelas crianças que estavam morrendo só por causa da água que estavam bebendo, aqueles campesinos se matando nas colheitas... Sabe, padre, quando um pedaço de carvão já foi aceso uma vez, você não precisa soprar muito para conseguir reacendê-lo... Então, sim, eu mudei. Mas eu também voltei para o lugar de onde tinha saído’.”
Essas palavras sublinham que foi a sua experiência em Santiago de María, e não um “milagre de Rutilio”, que levou Romero ao compromisso. No entanto, o assassinato de Grande ajudou a cristalizar esse compromisso, levando Romero a tomar medidas drásticas.
Quando ele escreveu ao presidente dois anos antes sobre o massacre de Tres Calles, ele manteve a carta privada, mas, após o assassinato de Rutilio, ele a tornou pública, denunciando o crime e declarando que, se o governo não fizesse uma investigação séria, ele boicotaria – como, de fato, fez depois – todos os eventos do governo, incluindo a vindoura posse do novo presidente do país.
Além disso, ao sentir que era necessário um sinal de unidade da Igreja após os ataques contra Rutilio e outros agentes de pastoral, Romero decretou que, no domingo seguinte à morte de Grande, todas as missas na arquidiocese estavam suspensas, e uma única missa seria celebrada na catedral, à qual toda a arquidiocese foi convidada a participar. Ele também cancelou as aulas nas escolas católicas durante três dias, ordenando que as escolas dedicassem esses dias a um estudo sobre os problemas do país.
Esses gestos incomodaram o Exército e o governo, e enfureceram tanto o núncio papal quanto o grupo de bispos salvadorenhos que o Papa Francisco mais tarde denunciaria. O núncio havia recomendado a nomeação de Romero como arcebispo, pensando que ele seria uma figura dócil e administrável. Agora, era a vez do núncio se surpreender, assim como Paul Schindler tinha se surpreendido.
Homem reza junto ao túmulo de Dom Romero na catedral metropolitana de San Salvador, El Salvador (Foto: CNS/Reuters/Jose Cabezas)
Como explicar as ações de Romero? Ele explicou assim: “Quando olhei para Rutilio deitado ali, morto, eu pensei: ‘Se o mataram por fazer o que ele fez, então eu tenho que seguir o mesmo caminho’”. E ele seguiu, sabendo muito bem quais seriam as consequências desse compromisso.
Em uma homilia no dia 11 de novembro de 1979, ele deixou claro que não havia como voltar atrás: “Peço-lhes orações para ser fiel a esta promessa: que eu não abandonarei o meu povo, mas correrei, com eles, todos os riscos que meu ministério me exige”.
Uma vez, eu tive a oportunidade – foi um presente, na realidade – de ouvi-lo expressar esse compromisso pessoalmente. Foi no encontro dos bispos latino-americanos em Puebla, no México, em 1979.
Pouco antes de Romero partir de El Salvador para Puebla, a Guarda Nacional havia assassinado Octavio Ortiz, um padre a quem Romero havia sido como um segundo pai. Ambos cresceram em famílias pobres nas zonas rurais do leste de El Salvador; ambos entraram no seminário muito cedo. Ortiz foi o primeiro padre que Romero ordenou depois de ser consagrado bispo.
Os militares atiraram em Ortiz – junto com outras quatro pessoas no retiro juvenil de fim de semana que ele estava dirigindo – e depois passaram um tanque sobre a sua cabeça. Romero denunciou a versão do governo sobre o incidente como “uma mentira do começo ao fim”. Naqueles dias, com uma ditadura militar governando El Salvador, declarações como essas poderiam facilmente se tornar as últimas palavras de uma pessoa; mesmo antes disso, Romero vinha recebendo sérias ameaças de morte.
Um dia em Puebla, alguns jornalistas conversavam com ele. Um de nós, sem mencionar as ameaças explicitamente, perguntou: “O senhor realmente está voltando para El Salvador?” – como se dissesse (mas sem dizer de verdade): “Se o senhor fizer isso, eles vão matá-lo”.
“Eu sei aonde você quer chegar”, disse Romero, “mas, você sabe, eles dizem que eu sou o pastor, e o pastor deve estar junto do rebanho. E o rebanho está em El Salvador. Então, sim, eu vou voltar”.
Não é possível esquecer comentários como esse. Eu voltei para casa em Nova York depois de Puebla e comecei a economizar dinheiro para comprar uma passagem de avião para El Salvador.
Eu estava me preparando para partir quando, na segunda-feira à noite, fui a uma paróquia ouvir uma palestra sobre teologia da libertação. No fim da noite, quando saímos da sala, o sacristão estava lá, esperando para trancar a igreja. Com um rádio na mão, ele perguntou:
“Vocês não estavam falando da América Latina?”.
“Sim.”
“Bem, eles acabaram de dizer no rádio que, em algum lugar lá, nesta noite, um bispo foi baleado e morto.”
Eu iria para El Salvador, mas nunca mais o veria.
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Arcebispo Óscar Romero: pondo os pingos nos ''is'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU