03 Outubro 2018
Em 2015, 40% dos bebês deixaram o útero materno antes de alcançar a maturidade biológica, em parte por causa de cesarianas eletivas.
A reportagem é de Ricardo Zorzetto, publicada na revista Pesquisa Fapesp, setembro de 2018.
O Brasil mantém há uma década uma preocupante posição de liderança mundial em partos cirúrgicos, as cesarianas. Em crescimento desde os anos 1970, a proporção de cesáreas ultrapassou a de partos normais em 2009 e, desde então, não sofreu redução significativa, apesar de tentativas do governo federal e das entidades médicas de fazê-la baixar. Dos 2.903.716 bebês que nasceram em 2015 em hospitais e maternidades brasileiros, 1.611.788 vieram ao mundo por meio de cesárea. Esse número corresponde a 55,5% dos partos e é excessivamente elevado, inferior apenas ao da República Dominicana, onde 56,4% dos 172 mil bebês nascem a cada ano por meio de cirurgia. Uma proporção elevada de cesáreas brasileiras (48%) pode ser desnecessária porque é realizada antes do início do trabalho de parto e, portanto, antes de a criança estar pronta para nascer. Essas cesáreas, em muitos casos combinadas com antecedência pelo obstetra e pela gestante, podem colocar em risco a saúde da mulher e da criança em vez de protegê-las.
A análise mais ampla já feita no país, publicada on-line em 5 de agosto na revista BMJ Open, confirma o que epidemiologistas, obstetras e pediatras suspeitavam havia tempo: as cesarianas possivelmente evitáveis aumentam a proporção de bebês que nascem antes da maturidade biológica. A conclusão resulta de um estudo coordenado pelo pediatra e epidemiologista Fernando Barros, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e da Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Com colegas do Uruguai, do Reino Unido e do Ministério da Saúde, Barros confrontou o número de nascimentos no Brasil em 2015 com informações sobre o tipo de parto, a idade gestacional da criança e a escolaridade materna.
O cruzamento dos dados mostrou que naquele ano nasceram no país 1.130.676 bebês (39,9% do total) com menos de 39 semanas, idade a partir da qual especialistas em saúde materna e infantil consideram a criança preparada para a vida fora do útero. Desse batalhão de bebês precoces, 286 mil nasceram com menos de 37 semanas (prematuros), provavelmente por problema de saúde da mãe ou da criança, e 844 mil na 37ª ou 38ª semana de gravidez. Há forte indicação de que um terço desses dois grupos – um total de 370 mil crianças – nasceu antes da hora em decorrência de cesariana desnecessária.
“Quem nasce com 37 ou 38 semanas corre um pequeno risco de ter complicações de saúde, que, no entanto, poderiam ser evitadas com o adiamento do parto”, conta Barros. Como essas crianças representam uma fração elevada dos nascimentos, explica o pesquisador, seus problemas teriam o potencial de gerar um impacto importante no sistema público de saúde. Pesquisadores do Instituto Karolinska e da Universidade de Uppsala, na Suécia, acompanharam por ao menos 23 anos 550 mil bebês nascidos entre 1973 e 1979. Em estudo publicado em 2010 na Pediatrics, eles afirmam que, em grau menor do que os prematuros, os bebês nascidos na 37a ou 38a semana de gestação apresentavam um risco maior de não concluir a universidade e de precisar de assistência do estado para cuidar da saúde.
“Suspeitávamos que os números seriam mais ou menos esses”, comenta o obstetra José Guilherme Cecatti, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sobre o nascimento precoce de bebês no Brasil. Cecatti não participou do artigo do BMJ Open, mas, anos atrás, identificou uma taxa mais elevada de prematuros, parte associada à cesarea, em um estudo com 33.740 gestantes do Nordeste, Sul e Sudeste. “O mérito do trabalho atual é mostrar esse fenômeno com números tão altos. Ele nos leva a deduzir que boa parte das cesáreas está sendo indicada antes do momento certo.”
Um dado reforça a hipótese de que essas cirurgias foram feitas sem um problema médico que as justificasse. A proporção de cesáreas antes do trabalho de parto cresceu continuamente com o aumento da escolaridade materna, um indicador do nível socioeconômico. Entre as 163 mil mulheres com até quatro anos de estudo, mais pobres e possivelmente com mais problemas de saúde, 13,2% tiveram bebê por cesariana antes do trabalho de parto. A proporção chegou a 49,2% entre as 528 mil mães com nível universitário, em princípio, mais ricas, saudáveis e bem informadas. “É o fenômeno que o epidemiologista britânico Julian Tudor Hart chamou de inversão do cuidado. Quem precisa mais recebe menos”, comenta o pediatra Marco Antonio Barbieri, professor da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (USP-RP).
“Estudos que acompanham populações sugerem que o nascimento antecipado é um fenômeno que seguirá o padrão das cesarianas, inicialmente mais frequentes nas classes mais ricas e hoje comuns também nas mais pobres”, conta a pediatra Heloísa Bettiol, colaboradora de Barbieri e professora na USP-RP. Esse efeito vem sendo notado nos estudos iniciados em 1978 em Ribeirão Preto, no interior paulista. A proporção de bebês que nascia na 37a ou 38a semana de gestação por cesariana passou de 28% no período 1978-1979 para 54% em 1994 e 68% em 2010, segundo dados apresentados por Barbieri e Heloísa ao Ministério da Saúde em 2017. Barros e seus colaboradores haviam observado anos atrás uma associação semelhante nos estudos de acompanhamento feitos em Pelotas (ver Pesquisa FAPESP nº 228).
No estudo da BMJ Open, a influência do excesso de cesáreas no aumento dos nascimentos antes da hora ficou mais evidente quando Barros e colaboradores analisaram os 2,5 milhões de partos (82,4% do total do país) sobre os quais havia informação de melhor qualidade, agrupados por município. Nas cidades em que a cirurgia respondia por mais de 80% dos partos, o número de crianças nascidas na 37a ou 38a semana de gestação foi 62% maior do que nos municípios em que as cesarianas representavam menos de 30% dos nascimentos, ainda assim o dobro do considerado seguro pela Organização Mundial da Saúde. A probabilidade de nascerem prematuros foi 22% maior no primeiro grupo de cidades do que no segundo.
Obstetras e pediatras sempre se preocuparam mais com os bebês que nascem com menos de 37 semanas, os prematuros, que correm risco maior de ter problemas de saúde. Mais recentemente, porém, surgiram estudos indicando que os nascidos com 37 e 38 semanas, de gestação a termo precoce, também apresentavam mais risco de ter complicações de saúde nas primeiras semanas de vida e problemas leves no desenvolvimento cognitivo anos mais tarde. “Os termos precoces nunca receberam muita atenção porque se considerava que estariam prontos para nascer”, conta Barros. “Mas eles se beneficiariam de mais uma ou duas semanas no ventre materno.”
Um problema comum dos nascidos entre a 34ª e a 37ª semana de gestação é que os pulmões, um dos últimos órgãos a amadurecer, ainda não estão completamente preparados para respirar. Por esse motivo, é maior o risco de a criança apresentar dificuldade respiratória, de precisar de suplementação de oxigênio e até passar algumas horas na unidade de cuidados intensivos, longe da mãe. Segundo a pediatra Maria Augusta Gibelli, chefe da UTI Neonatal do Hospital das Clínicas da USP, esses bebês nem sempre já desenvolveram a habilidade de sugar adequadamente o peito materno e podem apresentar uma redução nos níveis de glicose (açúcar) no sangue, exigindo a administração de formulações à base de leite de vaca ou cabra nos primeiros dias de vida.
A epidemiologista Maria do Carmo Leal, professora da Escola Nacional de Saúde Pública, no Rio de Janeiro, quantificou esses riscos entre os termos precoces a partir de informações de 12.646 crianças nascidas em 2011 e 2012 em 266 hospitais e maternidades brasileiros e acompanhadas por ao menos 45 dias. Publicada em dezembro de 2017 no BMJ Open, a análise dessa amostra, representativa do Brasil, confirma que uma ou duas semanas a mais no ventre materno podem fazer uma diferença importante.
Mesmo saudáveis, os bebês que nasceram na 37ª ou 38ª semana de gravidez apresentaram um risco baixo, mas superior ao dos gestados por 39 ou 40 semanas, de complicações nas primeiras horas ou semanas de vida. No primeiro grupo, 3,9% precisaram receber suplementação de oxigênio, ante 2,1% no segundo. Uma proporção semelhante precisou de banho de luz nos três primeiros dias de vida para neutralizar o excesso de bilirrubina, proteína tóxica para o sistema nervoso central. A hipoglicemia, redução importante nos níveis de glicose, foi três vezes mais comum entre os bebês de 37 ou 38 semanas (0,9%) do que entre os nascidos com 39 ou 40 semanas (0,3%).
A frequência de complicações foi bem mais elevada quando as crianças do primeiro grupo nasceram por interferência antecipada do obstetra, majoritariamente a realização de uma cesariana, sem que a mãe ou o bebê apresentasse problema de saúde. Essa situação ocorreu em pouco menos da metade dos casos e triplicou a necessidade de receber oxigênio (foi de 1,3% nos bebês de 39 e 40 semanas para 4,5% nos de 37 e 38); mais do que dobrou a frequência de internações em unidades de cuidados intensivos (de 1,5% para 3,6%); e aumentou nove vezes o risco, que era baixo, de morrer no primeiro mês de vida: subiu de três mortes a cada 10 mil nascimentos no primeiro grupo para 26 por 10 mil no segundo. “No Brasil, essas intervenções antecipadas são especialmente comuns nos hospitais e maternidades privados”, conta Maria do Carmo, que observou esse efeito em um trabalho publicado em 2016 na revista PLOS ONE.
“O direito da mulher de optar pela cesariana”, defende Fernando Barros, de Pelotas, “não deveria competir com o das crianças de nascer com 39 ou mais semanas”.
Deve começar em outubro um teste com 790 recém-nascidos brasileiros para avaliar a eficiência de um equipamento que, a partir da luz refletida pela pele, estima a idade gestacional do bebê no parto. Semelhante a uma lanterna pequena, o aparelho desenvolvido por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) usa leds para emitir luz de baixa intensidade e um sensor para captar o que é refletido. Essa informação alimenta um miniprocessador que, levando em conta o peso, calcula quanto tempo a criança permaneceu no útero – quanto mais longa a gestação, mais espessa é a pele e mais luz ela reflete.
Conhecer o tempo de desenvolvimento (idade gestacional) do bebê é essencial para orientar a ação dos médicos após nascimento. “O pediatra se baseia nessa informação, em especial no caso dos prematuros, para decidir se o bebê precisa de suporte respiratório e controle de temperatura ou de internação em uma unidade neonatal”, explica a ginecologista e obstetra Zilma Reis, professora da UFMG que desenvolveu o equipamento, chamado de Skin Age, com o astrofísico Rodney Guimarães. “Mesmo no Brasil, onde o acesso aos serviços de saúde é universal e gratuito, nem sempre há informação confiável sobre a idade gestacional das crianças”, diz Zilma.
Ela e Guimarães iniciaram a busca de uma forma não invasiva de determinar a idade do recém-nascido em 2014, estimulados por uma chamada para projetos sobre o tema feita pela Fundação Bill & Melinda Gates. A inspiração foi o oxímetro, aparelho que estima a concentração de oxigênio no sangue por meio de uma luz que atravessa a pele. “O objetivo era criar um equipamento de uso simples para as situações em que os exames pré-natais não fornecem informação adequada sobre a idade da criança ou não há um pediatra para calcular na sala de parto”, conta.
Com US$ 100 mil da Fundação Gates e US$ 50 mil da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig), Zilma e Guimarães analisaram como a pele do feto se modifica e reage à luz durante a gestação, desenvolveram os primeiros protótipos e fizeram um teste clínico que serviu como prova de conceito. Aplicado por alguns segundos ao antebraço ou à sola do pé, o Skin Age estimou a idade gestacional de 115 crianças nascidas em dois hospitais de Belo Horizonte com erro de 11 dias, segundo dados publicados em 2017 na revista PLOS ONE.
Com verba do Ministério da Saúde, o grupo de Minas deve testar agora o equipamento em 790 crianças de Minas, Rio Grande do Sul, Maranhão e Brasília. “Queremos usar os dados para aprimorar o equipamento e reduzir o erro para 7 dias”, diz Zilma. Um segundo ensaio clínico, financiado pela Grand Challanges Canadá e pela Fiocruz, deverá ser feito no próximo ano com 400 crianças do Brasil, de Portugal e Moçambique.
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Um batalhão de nascimentos precoces - Instituto Humanitas Unisinos - IHU