02 Outubro 2018
“É verdade que as mulheres – mesmo as mais obedientes – não se sentem verdadeiramente parte da Igreja, mas no máximo filhas obedientes, o que é outra coisa. Se elas realmente se sentissem parte da Igreja, em virtude do sacerdócio batismal, lutariam pela vida da Igreja, pela sua aderência às palavras de Jesus, onde quer que se encontrem.”
A opinião é da historiadora italiana Lucetta Scaraffia, membro do Comitê Italiano de Bioética e professora da Universidade de Roma “La Sapienza”. O artigo foi publicado no caderno “Donne Chiesa Mondo” do jornal L’Osservatore Romano, de outubro de 2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco, na sua Carta ao Povo de Deus, convidou todos os fiéis, todos aqueles que se sentem parte da Igreja, a refletir sobre a crise que ela está vivendo diante da denúncia dos abusos e a se esforçar para “curar” essa instituição, apontando, entre os males que a afligem, com particular veemência, o clericalismo.
As mulheres não têm nada a ver com o clericalismo do ponto de vista do envolvimento pessoal, porque as religiosas também são consideradas leigas, isto é, não ordenadas. Não existem mulheres que possam ser consideradas parte do clero, portanto, mas nem por isso podem ser consideradas automaticamente imunes ao clericalismo, que é outra coisa.
Para refletir sobre esse problema, devemos dar um passo atrás e examinar o compromisso das mulheres na Igreja, desde quando isso significou um confronto, explícito ou implícito, com o feminismo que estava transformando a sociedade ocidental.
A primeira reivindicação, iniciada no fim do século XIX pela protestante estadunidense Elizabeth Cady Stanton, foi a de ter o direito de estudar e, portanto, de comentar os textos sagrados. No âmbito da Igreja Católica, esse resultado só foi obtido após o Concílio Vaticano II – lembremos en passant que o comentário de Teresa d’Ávila sobre o Cântico dos Cânticos não pôde ser publicado porque Teresa oficialmente não tinha permissão para ter acesso ao texto! – e frutificou de modo rico e surpreendente.
Embora, obviamente, com valor descontínuo, as contribuições femininas à interpretação da Bíblia e, particularmente, do Novo Testamento também foram ricas, às vezes revolucionárias, tanto em finalmente reconhecer a densa presença de mulheres nos textos evangélicos e a relação livre e importante que Jesus estabeleceu com elas, quanto em olhar para os textos no seu conjunto com olhos novos e capazes de perceber aspectos ignorados até então.
É uma pena que esse longo e feliz trabalho, que já constitui um conjunto verdadeiramente importante, não chegou ao corpo sacerdotal nem faz parte oficial do ensinamento nos seminários. Quantas vezes ainda teremos que ouvir homilias em que não se dá nenhuma atenção ao fato de que a samaritana é uma mulher?
Se essa contribuição das mulheres, embora oficialmente ainda subvalorizada, pode ser considerada como um dom extraordinário para a vida da Igreja, não é igualmente positivo o balanço que devemos fazer sobre o aspecto mais “político” do compromisso “feminista” das mulheres católicas.
Se, de fato, não há dúvida – e essa análise é compartilhada por todas as mulheres que estão comprometidas dentro da Igreja, incluindo as religiosas – de que se trata de uma estrutura rigidamente patriarcal dentro da qual só é concedida às mulheres uma contribuição muito secundária, sempre submetida ao escrutínio das hierarquias e olhada com uma certa suspeita ou com suficiência, por sua vez, diversas são as estratégias propostas e implementadas, pelo menos parcialmente, para mudar essa situação.
Uma parte das mulheres católicas sensíveis a esse problema – e não são poucas – tentou transferir para dentro da Igreja as análises e as modalidades de luta das feministas do mundo secular, por sua vez tomadas de empréstimo e muitas vezes apoiadas pelas alas de esquerda. Estas consistem, obviamente, em um projeto de crescimento de poder dentro da instituição: muitas, de fato, pensam que o objetivo principal é o sacerdócio feminino, isto é, a base do poder, como único modo de transformar a instituição.
No entanto, para que a voz das mulheres – que sequer é ouvida pelos nós que principalmente as envolvem, como a família e a sexualidade – adquira autoridade, quase todas propõem que, mesmo sem o sacerdócio, as mulheres deveriam ser postas em posições de comando, como a direção de congregações ou departamentos.
A fim de alcançar esses objetivos, tratando-se obviamente de uma instituição patriarcal, deveria ser eleito um papa “bom” que finalmente abra as portas para as mulheres. Basicamente, trata-se de demandas de cooptação nas esferas das decisões e do poder.
Essa é uma posição que também se revela afetada pelo clericalismo: entrar para fazer parte, direta ou indiretamente, da esfera de poder mantido firmemente nas mãos dos clérigos. Não há dúvida de que essa abertura para as mulheres, se houvesse, não seria negativa, porque significaria, mesmo assim, uma abertura aos leigos, uma fissura no clericalismo. Mas continuaria sendo uma abertura pilotada pelo clero e poderia se transformar em uma clericalização cultural das mulheres. O que acontece frequentemente.
Em suma, é como se as mulheres, não se sentindo verdadeiramente parte da Igreja, tivessem que esperar o convite para nela entrar, possivelmente nos altos graus.
Mas aqui está o problema: é verdade que as mulheres – mesmo as mais obedientes – não se sentem verdadeiramente parte da Igreja, mas no máximo filhas obedientes, o que é outra coisa. Se elas realmente se sentissem parte da Igreja, em virtude do sacerdócio batismal, lutariam pela vida da Igreja, pela sua aderência às palavras de Jesus, onde quer que se encontrem, mesmo que adeptas às limpezas, com todas as armas que têm à disposição, que, aliás, não são tão poucas.
Em vez de olhar para a ausência de mulheres nos andares superiores, seria preciso olhar para o que as mulheres podem fazer nos andares inferiores, mesmo às custas de se chocarem com as hierarquias. Não é fácil, é claro, mas impressiona ver o silêncio de tantas mulheres diante dos abusos, mulheres que as transformações da sociedade civil tornaram fortes, preparadas culturalmente, muitas vezes também afirmadas profissionalmente. Muitas, diante de injustiças evidentes, optaram por se calar, talvez para depois se lamentar que não eram muito consideradas na Igreja.
Elas não se sentiam parte da Igreja, mas apenas um rebanho anônimo que estacionava na frente das portas à espera de serem escolhidas. Isso é clericalismo, e é desse clericalismo que as feministas católicas devem se curar: porque a condição das mulheres na Igreja só mudará se as mulheres tiverem a coragem de começar a mudá-la a partir de baixo, com as denúncias, se necessário, com as perguntas que nunca são feitas.
Quantas vezes a ausência de mulheres nos conselhos paroquiais, nas comissões e assim por diante não se deve a dogmas ou prescrições canônicas, mas apenas a uma tradição enraizada, já totalmente inatual?
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Feminismo e clericalismo. Artigo de Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU