13 Setembro 2018
Lucetta Scaraffia, comenta o último ensaio de Marcel Gauchet, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 12/13-09- 2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
O fim da dominação masculina - transformação histórica a que estamos testemunhando no mundo ocidental - é certamente um evento social de rara espécie, que toca profundamente a sociedade, ou seja, na maneira em que ela é constituída e perpetuada.
Estas são as considerações do filósofo francês Marcel Gauchet, que em um recente ensaio aborda a questão em toda a sua complexidade, destacando, em primeiro lugar, que temos a oportunidade "pela primeira vez na aventura humana, de entrar nas razões que presidiram essa organização arqui-milenar dos papéis sexuais", tão radicada que conseguiu passar por um tempos imemorável como inscrita na ordem das coisas. Tão radicada que, escreve o filósofo, "existe uma ligação íntima entre a dominação masculina e religião." Como moldaram juntos, em diferentes níveis, a existência coletiva, assim hoje estão passando por uma profunda crise que envolve ambas. Ambas respondiam a uma exigência profunda, de garantir a existência de uma sociedade, assegurando a continuidade de sua cultura e a identidade de sua organização para além da renovação de seus membros. As mulheres detêm o poder de garantir a reprodução física do grupo humano, os homens aquela cultural: nas sociedades tradicionais o poder de procriar era compensado por um poder equivalente, mas a superioridade da ordem cultural – transcendente em relação à precariedade da vida biológica - tornava-se a base da dominação masculina. A essência da masculinidade estava na possibilidade de elevar-se acima de seu sexo para alcançar o status de um indivíduo universal.
Esse tipo de organização deixou de existir, provocando transformações radicais tanto nas condições de reprodução biológica quanto nas de reprodução cultural, alterando radicalmente as referências ao masculino e ao feminino. Hoje, a dimensão cultural explícita e consciente foi absorvida por aquela implícita do processo social. Como Gauchet observa com extrema lucidez, "o que mudou fundamentalmente é o modo pelo qual as sociedades garantem a sua travessia no tempo". A dominação masculina perdeu sua razão de ser e, justamente por isso, os fundamentalismos insistem tanto na relação entre os sexos, tema que pareceria periférico a uma visão religiosa do mundo.
O lúcido ensaio sugere novas e importantes linhas de interpretação da mudança em curso na sociedade e na família, mas em relação à religião Gauchet cai no erro de considerar todas as formas religiosas como patriarcais: no que diz respeito ao catolicismo, certamente tem razão se pensarmos na instituição, mas não tem razão se pensarmos em seu fundamento sagrado, os Evangelhos. Neles, o testemunho de Jesus inverte de mil maneiras a estratificação patriarcal em que vive, com modalidades que influenciaram fortemente o desenvolvimento histórico do Ocidente. Se, como defendia o teólogo ortodoxo Inácio Hazim, depois Patriarca de Antioquia, a missão de todas as Igrejas "é ser a consciência viva e profética do drama deste tempo", hoje um retorno mais consciente ao texto evangélico poderia permitir à Igreja apresentar-se novamente como uma mensagem profética, tornando-se assim o laboratório no qual as bases culturais da nova sociedade serão concebidas. Mulheres e homens juntos.
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Uma mudança epocal. Artigo de Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU