03 Julho 2018
A crise econômica aguçou a individualização das condutas até o paroxismo, mas não apenas como um profilático diante da mesma, ao estilo salve-se quem puder, mas como ferramenta do poder. E isto tem a ver com o conceito denominado ‘governo das vontades’, que seria algo assim como as práticas e os discursos centrados no controle das condutas e os pensamentos das pessoas, com o objetivo de conseguir que a própria ocupação e a própria maneira de estar no mundo e enfrentar a realidade, por mais dura que seja, reforce o controle do Estado, isente a este de qualquer responsabilidade e justifique a inviabilidade natural de alterar a ordem das coisas. Com bem recorda Mark Fisher, a narrativa terapêutica da autorresponsabilidade heroica é o último recurso pessoal em um mundo no qual as instituições já não garantem seguridade alguma”, escreve Paco Roda, professor da Universidade Pública de Navarra, em artigo publicado por Ctxt, 20-06-2018. A tradução é do Cepat.
A “marca” Espanha tem sua contracapa. Uma lista cheia de números vermelhos. São os números mais vergonhosos que um Estado que alardeia como social pode apresentar. Talvez por isso são esquivados, maquiados, ignorados ou inclusive banalizados. Mas, estão aí. São os números da pobreza, da exclusão, do desemprego, da taxa de proteção por desemprego, da pobreza infantil e da qualidade de seus Serviços Sociais.
Esses números dançam ao ritmo de uma crise que se iniciou em 2008 e cujo final alguns certificam, enquanto outros, os muitos, continuam padecendo. E são esses números os que desafiam os discursos hegemônicos da classe política governante e do establishment midiático.
É que na Espanha vivem mal 10,2 milhões de pessoas com uma renda abaixo da linha da pobreza. Isso representa uma taxa de pobreza de 22,3%. Só Romênia e Bulgária são mais pobres. A Espanha sofre uma epidemia de desemprego que chega a 18,9%. Quase três milhões de pessoas vivem com 11,4 euros por dia. Como em Angola e Bielorrússia. Mais de 60% da população espanhola tem dificuldades para chegar a fim do mês e só 54% daqueles que são marcados pelo desemprego recebem algum tipo de ingresso por conta disso.
A renda do emprego piora, ou seja, trabalha-se mais desde 2012. De fato, os lucros empresariais dispararam, desde então, até 200,7%, mas o custo salarial aumentou apenas 0,6%. E as mulheres levam a pior parte, já que significam 58% das pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade. Sete em cada dez pessoas que recebem os salários mais baixos são mulheres. Elas recebem até 14% menos que os homens. E também a juventude que consegue um emprego comprova como seu salário anual é 33% inferior em relação ao de 2008.
Estes dados, por si mesmos, não dizem nada. Banalizaram-se. Contudo, são arte e parte de uma estratégia, de uma governança e de uma política austericida, iniciada em 2008, que se ativou como consequência de uma crise mundial autogerada com a intenção de inaugurar uma nova maneira de governar e gerir o mundo.
Ser pobre hoje tem um alto preço pessoal que se paga muito caro no mercado do estigma atribuído. Ser precário ou precária, trabalhadora pobre ou excluído do circuito do consumo e a normalização social não é apenas uma situação vivida e padecida, é também uma realidade interpretada e rotulada pelo poder, que se encarrega de desenhar dispositivos ideológicos e de argumentos para tornar digerível e amável o discurso em torno da pobreza e a exclusão.
É que a crise não apenas mudou ou reformulou o discurso sobre a pobreza, o desemprego, a precariedade e a exclusão social. Não mudaram apenas seus ecos e suas ressonâncias sociais. Também o discurso político e econômico, que justifica a crise e a reproduz, criou um novo sujeito social perfeitamente adaptado a esta nova situação. Um sujeito que, além de sofrer uma grave crise de individualidade, agora se autoculpa por sua situação pessoal e social. Agora, este sujeito tem uma noção de si mesmo e de sua experiência vital moralmente reprovável. Observe o desempregado ou o usuário dos serviços sociais que recorre a estes para solicitar um subsídio ou prestação econômica. Não só evidencia uma situação de precariedade ou exclusão social, consequência de uma estrutura social desigual que raramente é observada ou identificada pelos profissionais que lhe atendem. Além disso, incorpora um juízo moral sobre si mesmo e assim é avaliado.
A crise econômica aguçou a individualização das condutas até o paroxismo, mas não apenas como um profilático diante da mesma, ao estilo salve-se quem puder, mas como ferramenta do poder. E isto tem a ver com o conceito denominado “governo das vontades”, que seria algo assim como as práticas e os discursos centrados no controle das condutas e os pensamentos das pessoas, com o objetivo de conseguir que a própria ocupação e a própria maneira de estar no mundo e enfrentar a realidade, por mais dura que seja, reforce o controle do Estado, isente a este de qualquer responsabilidade e justifique a inviabilidade natural de alterar a ordem das coisas. Com bem recorda Mark Fisher, a narrativa terapêutica da autorresponsabilidade heroica é o último recurso pessoal em um mundo no qual as instituições já não garantem seguridade alguma.
Dois grandes teóricos europeus nos ajudam a interpretar estas derivas, a conferir sentido a esta nova governança e autogovernança, diante da adversidade. Por um lago, Löic Wacquant, com sua obra Punir os pobres, incide em um novo governo de inseguridade social encaminhado para modificar os desajustes sociais provocados pela desregulação da crise econômica e a reconversão do bem-estar. Por outro lado, Maurizio Lazzarato, em A fábrica do homem endividado, defende que “a dívida serve para disciplinar as pessoas, pois não se trata apenas de um problema contável, mas que possui uma dimensão mais profunda, na qual convergem elementos morais, políticos e estratégicos”.
É que o neoliberalismo não é apenas uma ideologia asséptica ou um sistema segregatório de acumulação do capital; é uma ferramenta de dominação e de autodominação pessoal e social. Porque o atual capitalismo é um picador de carne que não seria nada sem a nossa ativa colaboração. E para isso tem se articulado estratégias que transversalizam todos os sistemas sociais, econômicos, culturais e políticos.
Vamos nos deter nos sistemas de proteção social. É que há tempo as políticas públicas patologizam e individualizam aquelas biografias, itinerários e acontecimentos que escapam aos processos de normatização e normalização social. O sistema de saúde e o de serviços sociais vitimizam os processos pessoais, fazendo o sujeito acreditar que ele é o culpado de sua situação. Reconversões, desemprego de longa intensidade, precariedade trabalhista, exclusão social, pobreza endêmica, divórcios, estresse e ansiedade se envolvem em novas categorias gnosiológicas que explicam os novos problemas sociais, problemas por outra parte absolutamente despolitizados em sua origem, análise e significado.
Por exemplo, os Serviços Sociais inventaram ferramentas de normatização social como a Busca Ativa de Emprego, os acordos de incorporação, o itinerário de inserção e outras lindezas técnico-burocráticas, descontextualizadas da realidade social, pelas quais os sujeitos vitimizados e desautorizados se veem obrigados a se desprender de seu protagonismo histórico. Já não interessam as causas que geraram essas biografias da pobreza, o abandono ou o desespero, como se os sujeitos tivessem escolhido sua própria miséria. Nada se opina sobre as condições e relações trabalhistas, sociais, familiares, patriarcais, sexistas ou de dominação. Nada sobre a inseguridade, as submoradias, os salários parciais, as oficinais ilegais e as múltiplas formas de exploração invisível. Nada. Como se só nos interessasse assistir aqueles que estão à deriva, àqueles que não assimilam seu naufrágio voluntário.
Enquanto a classe corrupta sai imune de seus ultrajes, os pobres se veem obrigados a se sentar diariamente diante do tribunal do Santo Estigma. E não é um exagero. Uma espécie de culpabilização coletiva lhes obriga a prestar contas por sua própria pobreza. A ser investigados por receber - os que recebem -, por embolsar os auxílios que recebem: por desemprego, subsídios de todo tipo e ingressos garantidos ou rendas de inserção. A dizer onde estão, onde vivem, com quem, onde estão registrados, se viajam ou não, se saem do país ou não, se se casam, se juntam ou se jogam na loteria. Em definitivo, um controle da própria subjetividade que Foucault já tinha anunciado no século passado. A pobreza também tem sua própria gestão neoliberal. Uma gestão que percorre de forma transversal quase todos os dispositivos dos sistemas de proteção social, especialmente os de Emprego e Serviços Sociais.
Porque é aqui, na fila do desocupado, na janela do desemprego ou nos escritórios de Serviços Sociais e em seus dispositivos de acompanhamento, acolhida, orientação e prestação de auxílios econômicos que se implementam dinâmicas neoliberais de atenção e controle da cidadania. Controle que se realiza através de ferramentas formativas, de acompanhamento ou delineados nas denominadas políticas de ativação e autogovernança amparadas pelo falso mito da autonomia pessoal e da ilusória empregabilidade.
Muitos trabalhadores pobres, precários e precárias, subsidiados e desempregadas recorrem aos escritórios do SEPE e quando não recebem ajuda, acabam nos Serviços Sociais demandando Renda Garantida. Um dos principais dispositivos de luta contra a exclusão social são os Programas de Rendas Mínimas de Inserção, cujos destinatários são pessoas com ingressos abaixo da linha da pobreza, trabalhadores e trabalhadoras pobres. Estes programas contêm dois elementos: um ingresso econômico mensal que varia em função de cada Comunidade Autônoma e um Itinerário Personalizado de Incorporação Social, título grandioso para denominar um contrato entre a administração pública e a pessoa beneficiária, onde se pactuam uma série de ações para favorecer a suspeita inserção social em troca da prestação recebida. E nestas práticas que as tecnologias do eu surgem em forma de ferramentas de controle e dinamização neoliberal baseadas na pedagogia do déficit.
Esse sujeito que sofre a intervenção é considerado órfão de habilidades, atitudes, aptidões ou capacidades sociopessoais para enfrentar a adversidade de sua existência. E assim inventamos, ao amparo de diretrizes europeias, uma série de dinâmicas que intercambiamos a partir dos serviços de emprego e serviços sociais ao cidadão mais precário. Contudo, nada de falar da estrutura econômica que gerou essa desigualdade e essa exclusão do emprego. Trata-se de ativar ferramentas que responsabilizem o sujeito, que assuma sua própria desclassificação interior e o reative através de tecnologias redentoras.
A forma se configura, assim, como um mito, um estágio ao qual chegar. Sem formação não há paraíso, ainda que o paraíso já não exista. É que nos distintos programas de ativação para o emprego destinados à população desemprega e à população que está protocolizada e monitorizada pelos Serviços Sociais a formação atua como motor de mudança. E é isto o que se vende aos pobres e desempregados como produtos de salvação: cursos de formação pré-emprego, de formação profissional, cursos para elaborar um currículo ou como participar de uma entrevista de trabalho, ainda que seja precário, ou a busca ativa de emprego, como se os sujeitos estivessem infantilizados para tal fim, ou de habilidades sociais, pessoais e comportamentais. Ou, inclusive, para melhorar a autoestima, sendo que a autoestima não melhora, a não ser com um emprego digno e uma ressocialização igualitária, ou de habilidades sociais, como se uma não as houvesse demonstrado antes para suportar essa pobreza ou precariedade que padece. E o cúmulo é a oferta dos cursos de inteligência emocional, compreendidos como recurso reparador e redentor de nossa situação, como se os culpados do desemprego fossem forças internas que é necessário gerir emocionalmente, mas não politicamente.
Diante da ruína dos sistemas públicos de proteção social, frente à sanha dos cortes nos principais seguros vitais que nos proporcionaram mais ou menos seguridade diante da adversidade, frente ao assédio e destruição do público como estrutura de proteção, não poucos coletivos civis e religiosos, ONGs, instituições privadas de solidariedade, com e sem fins lucrativos, e grupos cidadãos de vários tipos levantaram a bandeira da desigualdade e a pobreza como formas de solidariedade redentora.
Numerosas iniciativas sociais e de apoio mútuo buscam salvar as pessoas dos despejos, da pobreza, do frio, da fome, dos cortes de água e luz, da precariedade e a carência das necessidades básicas. Todas práticas louváveis, de reconhecida solvência solidária, de grande reconhecimento social, mas que sigilosamente se formalizam como substitutas das formas de distribuição garantidoras procedentes dos sistemas públicos. Como se os sistemas públicos, invisibilizados e descapitalizados, para não dizer despolitizados, fossem incapazes de abordar este buraco social criado pela crise.
E isto tem efeitos secundários de obrigatória leitura. Os meios de comunicação a serviço da ideologia neoliberal dominante estão fabricando um discurso por trás do qual esse terceiro setor de caráter beneficente é apresentado como o único ator possível para responder às situações de emergência, pobreza e precariedade generalizada. E isso provoca não só uma desconfiança nos sistemas públicos, ultrajados como ineficazes pela ideologia neoliberal, mas algo muito pior: sua retirada simbólica do imaginário coletivo como corretores das desigualdades. Daí a aceitar a caridade bem entendida e a beneficência intensiva como únicas possibilidades para sair do lamaçal vital é somente um passo: a aceitação merecida da perda de cidadania reconvertida, agora, em um sucedâneo de cidadania premiada com prestações ex-gratia.
Contudo, a questão de fundo é como essa ingente overdose e inflação de solidariedade horizontal entre iguais está se convertendo, por ação ou omissão dos sistemas públicos de proteção ultrajados e descapitalizados, na estratégia dirigida e invisibilizada da nova gestão neoliberal da pobreza. Porque esta instauração da caridade privada, a que nos sai da alma, com vocação social e aceita como um valor inato das pessoas em ação e voluntários de todo tipo e condição, está contribuindo para o amparo discursivo do final do estado social e democrático de direito. Porque essa caridade bem entendida rompe, conscientemente ou não, com o princípio de igualdade vital na democracia social. Custa dizer, mas nisto também, como disse Marta Sanz, os que acreditam que não fazem parte do discurso dominante, cada dia o alimentam mais.
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A gestão neoliberal da pobreza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU