29 Março 2018
Nem Cervantes, nem Erasmo, nem Teresa de Ávila, nem Nikos Kazantzakis, nem José Saramago, nem Pedro Miguel Lamet, para citar escritores sérios, faltaram com o respeito a Maria, a de Magdala, um povoadozinho junto ao lago da Galileia, a Madalena, quando imaginaram a mulher mais citada dos Evangelhos, mais que a mãe Maria. É uma grande figura bíblica que, no entanto, a Igreja católica tachou durante séculos, sem misericórdia, como prostituta, adúltera, pecadora, possuída por sete demônios, chorona. Madalena também não fica estagnada em romances extravagantes, mas exitosos, como O Código da Vinci, de Dan Brown, que a retrata como a esposa de Jesus Cristo, ou no cinema menos rigoroso.
A reportagem é de Juan G. Bedoya, publicada por El País, 26-03-2018. A tradução é do Cepat.
Juntos, forçaram o Vaticano a retificar as informações infundadas sobre a Madalena, a reboque também dos movimentos feministas. Desde junho de 2016, é santa no calendário romano com o nome de Santa Maria Madalena. Foi o que estabeleceu a Pontifícia Congregação para o Culto Divino por desejo do Papa Francisco. Sua festa litúrgica é no dia 22 de julho de cada ano, para “exaltar a importância desta mulher que mostrou um grande amor a Cristo e que foi tão amada por Cristo, e para ressaltar a especial missão desta mulher, exemplo e modelo para toda mulher na Igreja”. Assim o Vaticano sentenciou, há apenas dois anos. A prostituta se eleva, desde então, como apostola apostolurum, “a apóstola dos apóstolos”.
“Alguns disseram que Jesus havia expulsado sete demônios de minhas entranhas, mas tampouco isso é verdade. O que Bfez, sim, foi despertar os sete anjos que dormiam dentro de minha alma, esperando que ele viesse me pedir socorro: Ajuda-me”, escreveu B como epílogo a um de seus grandes livros, O Evangelho segundo Jesus Cristo, de 1991. Muitos anos antes, o grego Kazantzakis havia publicado, em 1953, um desses romances que merecem um Nobel. Deu a ele o título A última tentação de Cristo. Quando em 1988, Martin Scorsese o levou ao cinema, com o mesmo título, dezenas de milhares de católicos integristas tentaram boicotá-lo, manifestando-se com grande estrondo nos locais onde era exibido. Inclusive, foram aos tribunais acusando o diretor de “ultraje à religião”. Também expressaram sua irritação incontáveis bispos, escandalizados por algumas cenas nas quais se via Jesus passando a noite na cama de Madalena, seguindo o belo relato de Kazantzakis. O papel de Jesus foi interpretado por Willem Dafoe, Maria Madalena era Barbara Hershey.
A literatura e o cinema se ocuparam inúmeras vezes da figura de Madalena nas muitas versões que foram escritas ou realizadas sobre a vida de Jesus. O francês Jean-Luc Godard causou grande alvoroço com Je vous salue Marie [Eu Vos Saúdo, Maria], de 1985, e também a corrosiva A vida de Brian (1979), dos Monty Python. O ateu Pier Paolo Pasolini rodou, em 1964, O Evangelho segundo São Mateus, no parecer do Vaticano o melhor filme sobre seu fundador, no qual os protagonistas eram alguns dos familiares ou amigos do diretor, grande parte comunistas como ele: sua mãe interpretava Maria; o irmão e sobrinho de Elsa Morante, a esposa de Alberto Moravia, interpretavam José e João; o poeta marxista Alfonso Gatto era André; o filósofo Giorgio Agamben, Felipe, e a escritora Natalia Ginzburg interpretou Maria de Betânia.
O último filme sobre a Madalena bíblica se vê nestas semanas nas telas espanholas, dirigido pelo australiano Garth Davis, com o título Maria Madalena. Rooney Mara é Madalena e Joaquim Phoenix faz o papel de Jesus. Não é um filme de Semana Santa, ao estilo de O Rei dos Reis ou Os dez mandamentos. Apresenta uma Madalena de prestígio e, contra os tempos de nacional-catolicismo, não se atém ao tópico cinema bíblico que as hierarquias gostavam para tais datas, censura mediante, ao estilo Cecil B. DeMille em O Rei dos Reis (1927), onde uma prostituta do mesmo nome se convertia em rica cortesã em um carro puxado por zebras. O último êxito foi protagonizado pelo exitoso Jesus Cristo Superstar, que na Espanha cantaram em 1973, angelicalmente, Camilo Sesto, como Jesus Cristo, e Ángela Carrasco, como Maria Madalena.
Quando Maria Madalena perdeu o papel que teve ao lado de Jesus e nas primeiras décadas da seita judaica, finalmente convertida na Igreja? Por que foi distorcido seu bom nome em uma Igreja que, em seus primeiros passos, foi sobretudo uma igreja de mulheres? Os católicos pouco inteirados ainda se surpreendem quando, sem maiores explicações, veem elevada aos altares e idealizada como “a apóstola dos apóstolos” aquela a quem ainda consideram prostituta ou um demônio de vícios.
“Aquela a quem o evangelista Lucas chama de mulher pecadora é a Maria da qual são expulsos os sete demônios, e o que significam esses sete demônios, senão todos os vícios?”, proclamou o Papa Gregório Magno, no ano 591. Tomem nota do adjetivo. O Magno. Só outros dois pontífices romanos mereceram esse título, entre os 266 que, segundo uma história muito discutida, sentaram na cadeira de Pedro. Como costuma se dizer, se o prior opina isso de Madalena, o que não pensará a comunidade? Na memória cristã perduram opiniões deste tipo: “O marido ama a mulher porque é sua esposa, mas a odeia porque é mulher” (Santo Agostinho). Ou “a mulher é um asno teimoso, um verme terrível no coração do homem, filha da mentira, sentinela do inferno” (São João Damasceno). Ou a opinião de São Tomás de Aquino, “o doutor angélico” do qual bebem os bispos quando estão perdidos: “A mulher é um varão equivocado e fracassado”.
Foi o apóstolo Pedro quem colocou a primeira pedra de tais maledicências. Maria Madalena financiou e sustentou, junto a outras muitas mulheres, os três anos de campanha pela Palestina do fundador cristão. “Ajudou o Mestre com seus bens”, diz o Evangelho de Lucas. Quando foram crescendo como seita judaica, antes de fazer a romaria (a Roma), para se tornar grandes até substituir ao Império romano, é provável que a temperamental mulher de Magdala quis impor sua autoridade como companheira predileta de Jesus e a melhor amiga da mãe, Maria. Pedro já havia expressado sua irritação pela forma como era tratada, pelo carinho e deferência. Para acabar com seu prestígio, logo se começou a dizer que havia sido prostituta, ou que esteve possuída pelo demônio, ou que não tinha a força necessária para mandar...
Cabe imaginar a cena. Não está em filme algum, mas imaginemos. Madalena, a amiga de Maria e a mais amada por Jesus, não fugiu quando detiveram e crucificaram o chefe e é a primeira a quem o Ressuscitado aparece. Ao contrário, Pedro, destacado pelo fundador como a pedra sobre a qual se edificaria a Igreja, fugiu e negou o mestre três vezes por medo insuperável. Antes, Pedro havia criticado Maria Madalena na presença de Jesus, por intromissão e tagarelice. O Mestre a defendeu com determinação. Não é imaginação. O conflito aparece em vários evangelhos, oficiais ou não. Por exemplo, no de Tomé. “As discussões entre a Madalena e Pedro aparece em mais lugares, também no Evangelho de Maria, que data seguramente do século II. Aí se mostra Levi, discípulo de Jesus, respondendo a Pedro quando este critica a Madalena: ‘Se o Salvador a fez digna, quem é você então para desprezá-la? Com certeza, o Salvador a conhece bem; por isso a amou mais que a nós”. Isso aparece com Diarmaid MacCulloch, em seu imponente Historia de la Cristiandad.
O teólogo Xavier Pikaza destaca como a Igreja foi se instituindo como uma religião de varões. “No princípio, não foi assim. Ainda em meados do século II, apesar da ascensão imparável de uma visão hierárquica e patriarcal dos ministérios cristãos, uma parte considerável das igrejas cristãs eram dirigidas por mulheres. A igreja oficial pode ter sentido medo de Maria Madalena e preferiu destacar o papel de Maria, a mãe de Jesus. Contudo, as duas mulheres caminham juntas, as duas são essenciais na primeira igreja. Madalena não pôde ser bispo ou papa na Igreja que triunfou a partir do século II-III, mas poderia ter sido em uma igreja não hierárquica, nem patriarcal do futuro”.
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Maria Madalena, de prostituta a apóstola dos apóstolos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU