22 Março 2018
O filme de Garth Davis finalmente retrata a personagem de Maria a partir dos textos evangélicos. Esse mesmo enfoque pode também ser conferido no livro escrito por Carlo Maria Martini, lançado justamente nestes dias: a primeira apóstola de Jesus é a sua verdadeira discípula, porque entende que a revolução messiânica não envolve a passagem de um poder para outro, mas a libertação de toda forma de poder.
O artigo é de Marinella Perroni, doutora em Teologia e autora de vários livros, entre os quais citamos o mais recente, “Dio nessuno ha mai visto” Gn, 1,28. Una guida al vangelo de Giovanni” (2017), publicada por Il Regno, 19-03-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em um mesmo dia, dois "lançamentos" dedicados a Maria de Magdala, um livro e um filme, e isso só confirma o interesse por uma personagem a quem os Evangelhos - de modo muito especial o de João - reconhecem o papel de protagonista, mas para a quem a longa tradição posterior também dedicou uma atenção toda especial.
Dado o grande respeito reservado a seu autor, o falecido cardeal Carlo Maria Martini, é provável que o livro aufira um sucesso muito maior do que o destinado para o filme. No entanto, para além de uma evidente coincidência de enfoque entre as duas obras, o filme também precisa ser levado muito a sério.
Não por seu valor cinematográfico específico, sobre o qual não tenho competência para julgar, mas pela capacidade de retratar finalmente a personagem de Maria a partir dos Evangelhos e não ficar mecanicamente repetindo o que uma longa história de interpretação, tanto bíblica como artística, contribuiu para gravar na memória histórica do ocidente cristão, ou seja, uma imagem totalmente adulterada da discípula de Jesus, a primeira apóstola do Evangelho da ressurreição.
Para apresentar o filme, no entanto, talvez seja melhor partir de seus pontos em comum com a narrativa do Cardeal Martini. O livro retoma um curso de exercícios espirituais que ele frequentou enquanto estava em Jerusalém com um grupo da Ordo virginum da diocese de Milão, no final de 2006.
A partir da aproximação entre Maria e a Sulamita do Cântico dos Cânticos, tão apreciado na liturgia, Martini apresenta a figura da mulher de Magdala "como o amante em êxtase, como aquela que age fora de si mesma, fora de todas as medidas humanas, de todas as convenções, de todo discurso "politicamente correto", para realizar gestos de superação e assim conhecer o coração de Deus, fazendo-o por sua vez conhecido" (29).
Permitam-me dizer que quase literalmente essas mesmas palavras poderiam ser usadas para comentar o filme do australiano Garth Davis que com razão, em minha opinião, foi definido mais espiritual do que religioso. E é talvez justamente por isso que, mesmo que não tenha um grande sucesso de público, mereceria ser explorado pelo menos naqueles circuitos que podem promover uma divulgação saudável das narrativas evangélicas.
O filme certamente tem suas falhas, porque a narrativa é lenta, corre o risco de ser excessivamente didascálico e, às vezes, é até mesmo um pouco estereotipado. Também não cabe pensar que o tema poderia engendrar algum tipo de suspense, visto que bem se sabe qual será seu final. Porém, tem o grande mérito de finalmente render justiça a essa mulher a quem a anunciação da fé no Messias ressurgido deve tanto, senão tudo.
Quem afirma que o filme é uma sequência de clichês, não sabe o que diz, enquanto quem considera que é expressão do feminismo da época do #Metoo está percebendo algo muito importante. Na verdade, a reabilitação de Maria Madalena, finalmente não mais apresentada como a pecadora arrependida pensada por Gregório Magno (591), foi possível graças a um século de exegese feminista que reabriu as pastas consideradas definitivamente fechadas e guardadas nos arquivos da memória e forçou a um questionamento o imaginário ocidental, dominado por obras literárias e artísticas, muitas vezes extraordinárias, mas, tantas vezes, totalmente distantes dos textos evangélicos.
Para Garth Davis, como para Carlo Maria Martini, Maria Madalena é aquela que "está fora de si". Como para Jesus, que era considerado por sua própria família "fora de si" (Marcos 3:21), a busca por uma relação com Deus mais profunda e totalizadora leva Maria a seguir o profeta de Nazaré, mas principalmente a ser a única em condições de entender a estreita relação que existe entre a sua pessoa e sua mensagem. Não por acaso, o filme inicia e termina com a parábola do grão de mostarda (cf. Mc 4,30-32) que, de forma bem incisiva, condensa a teologia do Reino e comunica a sua autêntica espiritualidade.
Entre os discípulos que seguem Jesus, Maria é a única que consegue compreender o seu significado, porque o anúncio do Reino atingir plenamente as suas expectativas e responde à sua necessidade de um Deus capaz de causar a implosão a partir de dentro do sistema patriarcal, opressivo para as mulheres, assim como para todos os pobres, mas também para os israelitas forçados a suportar a cruel ocupação romana.
Até o final dos outros discípulos, ao contrário, não compreendem e esperam, cada um à sua maneira, que o messianismo de Jesus se resolva em uma revolução mundana. O acirrado enfrentamento entre Maria e Judas expressa que só ela, nas palavras de Martini, teve a coragem de colocar-se “fora de todas as medidas humanas, de todas as convenções". A revolução messiânica não é aquela esperada por Judas e pelos outros discípulos, porque não envolve a transição de um poder para outro, mas a libertação de toda forma de poder, inclusive o das convenções sociais e religiosas.
A Maria que os Evangelhos sinópticos apresentam, juntamente com as outras, como aquela que seguiu e serviu Jesus durante todo o seu ministério (cf. Mc 15,41) e o Evangelho de João apresenta como aquela que procura (cf. Jo 20:15), é a única que sabe plenamente como ser uma discípula de Jesus, pois é moldada pela sua palavra e entende perfeitamente o valor de sua atividade taumatúrgica.
Portanto Jerusalém, o lugar para todos os outros da grande desilusão, torna-se para ela o seu lugar da vitória: Maria é a única capaz de emergir do abismo em que a morte do Mestre fez afundar os seus seguidores, porque é a única capaz de perceber que o encontro com o Messias ressuscitado agora está todo contido em um nome apenas sussurrado.
Um nome que só pode ser percebido por aquela que foi capaz de entender a lógica do Reino com a inteligência do coração. Pedro, como conservado em algumas tradições apócrifas, tem dificuldade em aceitá-lo porque, como mostra precisamente a sua visão das implicações de exclusão ligadas à diferença sexual, não consegue se desvincular da ideologia patriarcal, aquela mesma ideologia que esmaga Judas e as suas expectativas religiosas. Justamente por essa razão, talvez, Maria Madalena é um filme mais espiritual que religioso, como são mais espirituais que religiosas as narrativas do Evangelho.
M. Perroni, C. Simonelli, Maria di Magdala. Una genealogia apostolica, Arachne, Ariccia (RM) 2016
E. Lupieri, Una sposa per Gesú. Maria Maddalena tra antichità e postmoderno, Carocci, Roma, 2017.
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Maria Madalena e a lógica do Reino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU