15 Fevereiro 2018
"Tenha ele percebido ou não, Francisco, voluntariamente, atou suas próprias mãos, fazendo com que a decisão ulterior relativa a Barros seja resolvida não de acordo com a própria vontade papal, mas conforme o que as evidências relevarem."
O comentário é de John L. Allen Jr., jornalista, publicado por Crux, 09-02-2018. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Em diferentes sentidos, é surpreendente que o estilo espontâneo do Papa Francisco em suas aparições públicas não tenha lhe trazido sérios problemas até então.
Houve alguns pequenos desentendimentos ao longo do caminho – por exemplo, o que ele exatamente quis dizer com que os católicos “não precisam se reproduzir como coelhos”, quando falava numa coletiva de imprensa em janeiro de 2015 de volta das Filipinas? –, eles mas nunca foram suficientes para estragar a sua imagem amorosa junto à imprensa.
Na verdade, este estilo aberto do pontífice e a sua inclinação por um discurso franco fazem parte desta junção, contrastando com as frequentes críticas que figuras públicas recebem das mídias convencionais.
Nos últimos tempos, no entanto, este romance parece ter entrado em crise em meio à crítica intensa que corre em torno da declaração do papa no voo que o trouxe de volta do Chile e do Peru em fins de janeiro, segundo a qual as vítimas de abuso sexual no Chile, que dizem que um bispo tinha conhecimento dos abusos sexuais e os acobertou, não haviam “se apresentado”, declaração contrastada diante das inúmeras reportagens pela Associated Press de que uma carta escrita pelas vítimas que delineava estas acusações havia sido entregue ao pontífice pelo Cardeal Sean O’Malley, de Boston, em 2015.
Na verdade, o papa não disse exatamente “se apresentado” no sentido usual de “vir a público”. O que ele disse, literalmente, no original italiano foi: “Non sono venuti, non hanno dato le evidenze per il giudizio”, ou seja: “Eles não vieram, não deram evidências para o juízo”. Parece claro, no contexto, que ele quis dizer que as vítimas “não vieram” até ele, colocando evidências diretamente em suas mãos.
Por outro lado, o fato de o papa ter, realmente, sido presenteado com detalhes das acusações contra Dom Juan Barros, da Diocese de Osorno, três anos atrás é conhecido há bastante tempo.
Vários meios de comunicação, incluindo o Crux, publicaram reportagens em 2015 informando que as vítimas do padre pedófilo mais notório do Chile, Fernando Karadima, haviam viajado a Roma para discutir a nomeação de Barros com membros da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, grupo criado pelo Papa Francisco para assessorá-lo nas iniciativas antiabusos sexuais. Mais tarde, uma participante da comissão na época, a sobrevivente de abusos sexuais irlandesa Marie Collins, deu uma carta das vítimas a O’Malley, quem prometeu transmiti-la ao papa.
Portanto, há tempos se sabe que Francisco teve acesso aos relatos das vítimas, o que faz o atual frenesi parecer um pouco antiquado.
(Para constar: a acusação é a de que Barros sabia dos abusos, mas os acobertou numa época em que era padre ainda, portanto, estritamente falando, não se trata de um caso de “responsabilização episcopal”. Vale também notar que o fato de alguém ter colocado uma carta nas mãos do papa, o que acontece 100 vezes por dia, não é garantia de que ele a leu, muito embora é difícil imaginar que ele não o tenha feito desde então.)
A interpretação natural do que Francisco está dizendo no caso de Barros, portanto, parece ser a de que ele está ciente das acusações, mas não acredita que elas se põem no nível das evidências a justificar uma punição.
No foco atual sobre “O que o papa sabia e quando ele o soube?”, um aspecto central corre o risco de se perder, a saber: o de que Francisco baseia o debate nas evidências, e não na autoridade.
Eis uma outra forma como ele poderia ter respondido à questão de Barros em sua coletiva a bordo do avião: “Na Igreja Católica, é o papa quem decide quem se enquadra para ser bispo. Eu tomei esta decisão, e estou mantendo-a”.
Naturalmente, uma resposta assim teria sido um desastre em termos de relações públicas, mas, a partir de um ponto de vista eclesiológico e do direito canônico, ela é também perfeitamente cabível. Formular a resposta desse jeito, evidentemente, implicaria que não há, realmente, evidências que farão Francisco mudar de ideia e, portanto, não há espaço para discussão.
Ao invés disso, Francisco fez o critério fundamental ser a presença ou a ausência de evidências de que Barros, de fato, testemunhou – ou pelo menos sabia dos – abusos cometidos por Karadima, e não agiu com base neste conhecimento. A implicação é a de que, se tais evidências forem verificadas e confirmadas, então uma ação irá se seguir.
Por sua vez, isso torna a atual missão de Dom Charles Scicluna, de Malta, extremamente importante. Scicluna foi encarregado pelo papa de investigar o caso de Barros, e todos os que conhecem a reputação de Scicluna desde a época em que fora o principal promotor do Vaticano nos casos de abuso sexual sob o comando do hoje Papa Emérito Bento XVI – cuja principal ação foi derrubar o falecido padre mexicano Marcial Maciel Degollado, fundador da Legião de Cristo – estão cientes de duas coisas:
Tenha ele percebido ou não, Francisco, voluntariamente, atou suas próprias mãos, fazendo com que a decisão ulterior relativa a Barros seja resolvida não de acordo com a própria vontade papal, mas conforme o que as evidências relevarem.
Isso pode ser bom para as vítimas chilenas, que acham que apresentaram provas suficientes para levar a uma ação jurídica contra o religioso. No entanto, independentemente do nível de “evidências” a que Francisco espera, em princípio o que ele fez é importante: o resultado é que nem mesmo uma invocação da autoridade papal bastará para salvar um bispo, caso evidências objetivas confirmem a participação do prelado em um acobertamento de abusos sexuais.
Em outras palavras, o destino de Barros não está de fato nas mãos de Francisco agora, mas nas de Scicluna; e se Barros for, realmente, culpado de acobertamento, então é pouco provável que ele se sentirá confortável com este raciocínio.
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Em escândalo sexual, o Papa se baseia em evidências, não na autoridade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU