17 Janeiro 2018
De acordo com dados parciais da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram 65 pessoas assassinadas em conflitos no campo no ano de 2017, muitos com requintes de crueldade. Esse índice confere ao Brasil o infeliz título de País mais violento para as populações camponesas no mundo.
A notícia é publicada por Comissão Pastoral da Terra, 16-01-2018.
O ano de 2017 começou e terminou sangrento. O contexto vivido pelos povos da Terra, das Águas e das Florestas exigiu teimosia, resistência e questionamento sobre o papel do Estado e do modelo de desenvolvimento. Também foi preciso muita reflexão e mobilização para superar as formas viciadas e distorcidas de construção de poder.
Em 2017 vimos consolidar no Brasil – através de uma sucessão de ataques a direitos conquistados historicamente pelo povo brasileiro – um sombrio ciclo de retrocessos políticos. Conduzidos pelo conjunto das forças mais elitistas e reacionárias do País, tais retrocessos penalizaram principalmente as classes mais empobrecidas e a natureza. Isso representa a materialização do golpe parlamentar de direita que teve por motivação não apenas a destituição da presidenta eleita, mas a subtração de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras do País com o fim de garantir pleno poder econômico e poder político aos principais operadores do sistema: bancos, indústrias, agronegócio, construtoras, latifundiários e a grande mídia.
O Brasil assumiu voluntariamente o papel de quintal do mundo, produtor de commodities, dando em troca os seus territórios de Vida. Multiplicaram-se casos de cercamento e privatização das águas, privatização de territórios pesqueiros por complexos de energia eólica, envenenamento do solo pelo uso de agrotóxicos, reconfiguração de territórios em razão de grandes obras, entre tantos outros exemplos. A lista de crimes cometidos pelo Estado seguiu religiosamente os preceitos anunciados pelo capital, para quem o desenvolvimento só é possível por meio do sacrifício e da espoliação da vida humana e do meio ambiente.
Por isso, para os povos da Terra, das Águas e das Florestas, inimigos históricos desse modelo desenvolvimentista, o impacto foi ainda maior, já que a bancada ruralista foi uma das principais responsáveis pelo golpe de Estado. Em 2017, vimos intensificar a tendência observada nos últimos 10 anos ao consolidar as comunidades tradicionais e as famílias posseiras como as principais vítimas da violência e de crimes cometidos pelo latifúndio, pelo agronegócio, pela mineração e por grandes obras de infraestrutura – principais causadores de conflitos agrários no país.
De acordo com dados parciais da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram 65 pessoas assassinadas em conflitos no campo no ano de 2017, muitos com requintes de crueldade. Esse índice confere ao Brasil o infeliz título de País mais violento para as populações camponesas no mundo.
Observamos que nos anos anteriores os homicídios caracterizavam-se por uma seletividade nos alvos – assassinatos de lideranças, com a finalidade de intimidar os demais que ousassem lutar. Em 2017, porém, vivemos a generalização da violência no campo e uma antiga prática retornou: os assassinatos em massa, a chacina, como o método perverso de aniquilar todos os focos coletivos de resistência no campo.
Foram exemplos: a Chacina de Colniza, no Mato Grosso, em abril, quando nove posseiros do assentamento Taquaruçu do Norte foram torturados e assassinados por pistoleiros a mando de madeireiros da região; a Chacina de Vilhena, em Rondônia, ocorrida no mês de maio, quando três trabalhadores rurais foram mortos por lutarem pela Reforma Agrária; o Massacre em Pau D’Arco, no Pará, também ocorrido em maio, onde Policiais Militares e Civis do estado assassinaram 10 camponeses; o Massacre em Lençóis, na Bahia, ocorrido em julho, quando oito quilombolas foram assassinados na comunidade de Iúna.
Além dos episódios com vítimas fatais, outros ataques violentos foram vividos pelas comunidades do campo, como o caso do povo indígena Gamela, que sofreu tentativa de extermínio por pistoleiros ligados a fazendeiros da região por causa de disputa territorial no município de Viana, no Maranhão. Cerca de 13 índios foram feridos, sendo um alvejado pelas costas e com as mãos decepadas. Esses casos representam uma parcela da violência no campo, protagonizada pelo poder privado e pelo próprio Estado brasileiro e seu modelo de desenvolvimento que vitimaram centenas de milhares de famílias camponesas em todo o País.
A violência no campo atingiu tal patamar estimulada pelo contexto político e jurídico em que a elite deixa de ter seus interesses terceirizados pelo Governo para ser ela a própria governante. Com o advento de um Estado de Exceção, implementado pelo Golpe parlamentar de direita, tanto o agronegócio quanto o latifúndio aprofundam o controle que já existia, sendo o Estado brasileiro seu principal instrumento de captação de lucros e produção de violência. Ironicamente, o discurso oficial que afirma ser o agronegócio um dos setores mais produtivos do País torna-se verdade se considerarmos toda a produção de ameaças, expulsões e mortes.
A violência e perversidade presentes no controle da terra e dos territórios não bastaram. A elite econômica que controla os três poderes do Estado ambicionou mais, e manobrou para que a legislação se ajustasse totalmente a seus interesses, de maneira ainda mais explicita e escancarada do que em outras ocasiões existentes na história política do País.
Logo no início de 2017 tivemos a vigência da Medida Provisória 759/2016, que alterou consideravelmente as normas relativas à Reforma Agrária no País. Tal iniciativa revela a essência deste momento político, com efeitos danosos e avassaladores para a Reforma Agrária. Entre os pontos mais perigosos está a resolução que torna possível comercializar lotes após 10 anos da implantação do assentamento. No mesmo passo, houve a redução progressiva do orçamento destinado à Reforma Agrária e a demarcação de territórios tradicionais, bem como o desmonte do conjunto de políticas públicas destinadas às comunidades camponesas.
Os recursos reservados para a obtenção de terras no Brasil foram reduzidos em mais de 60% se comparados ao valor do ano de 2015. Os recursos para a Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), de igual modo, foram somente metade do valor destinado no ano de 2016. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) também sofreu cortes que chegam a inviabilizá-lo em vários estados. Em 2016, foram destinados ao Programa R$ 439 milhões. Já em 2017, foram somente R$ 150 milhões, o que representou uma redução de 66% em um único ano. A soma dessas iniciativas permitirá que assentamentos que nunca receberam qualquer infraestrutura possam ter seus lotes negociados, deixando as famílias presas fáceis do assédio dos latifundiários. Se em 2017 assistimos ao ataque generalizado às políticas públicas consolidadas nos últimos 15 anos, o ano de 2018 será ainda pior. O governo golpista reduziu em 35% os recursos para a agricultura camponesa e familiar, além de ter cortado mais de 56% dos recursos destinados à segurança alimentar e nutricional para o ano de 2018.
Ademais, em estágio avançado, duas iniciativas de Projetos de Lei articuladas politicamente pelo governo Temer e a bancada ruralista pretendem garantir em 2018 um novo golpe, desta vez atacando a soberania do povo brasileiro sobre seu próprio território. O primeiro projeto é uma antiga reivindicação de grandes empresas multinacionais. Trata-se do Projeto de Lei (PL) conduzido diretamente pela Casa Civil que pretende permitir que estrangeiros possam comprar ou arrendar diretamente terras em território brasileiro. Enquanto isso, outro Projeto, o PL 827/2015, conhecido como Projeto de Lei de Proteção aos Cultivares, quer passar para grandes empresas o controle sobre o uso de todas as sementes, plantas e mudas modificadas. Dessa forma, a comercialização do produto que for obtido na colheita dependerá da autorização do detentor das chamadas cultivares, que são plantas que tiveram alguma modificação pela ação humana, como as híbridas, por exemplo. Considerando o aumento exponencial do cultivo de sementes híbridas e transgênicas produzidas por grandes corporações estrangeiras, que também controlam a produção de agrotóxicos, podemos entender os impactos integrados que essas medidas, se aprovadas, poderão provocar na produção de comida no Brasil.
No bojo desse regime de inviabilização de políticas públicas, anulação de direitos constitucionais e de legitimação da exploração da classe trabalhadora e das comunidades camponesas, veio a aprovação da reforma trabalhista, em julho de 2017. O resultado foi a imposição de uma lei nefasta que flexibiliza a jornada de trabalho, reduz a remuneração, altera as normas de saúde e segurança do trabalho, fragiliza a organização sindical, dificulta o acesso à Justiça do Trabalho, além de criar a figura do/a trabalhador/a intermitente. Os gritos e revoltas do povo nas ruas não foram ouvidos dos plenários de votação do Congresso Nacional.
Também em 2017, a luta contra o trabalho escravo sofreu inúmeros ataques, todos no sentido de favorecer a bancada ruralista e anular o protagonismo brasileiro no combate ao trabalho escravo, reconhecido internacionalmente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em outubro, o Ministério do Trabalho e Emprego publicou a Portaria 1129/2017, que revogou a Lei Áurea, ao reduzir o conceito de escravidão contemporânea, retirando da fiscalização situações de condição degradante e jornada exaustiva. Outras aberrações presentes na Portaria foi a necessidade de registrar Boletim de Ocorrência Policial para instauração do processo de inclusão do empregador na Lista Suja, além de anistiar os empregadores que constavam em listas anteriores. A portaria teve seus efeitos suspensos no mesmo mês de sua divulgação, em face da decisão liminar da ministra Rosa Weber, nos autos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental distribuída pelo partido político Rede de Sustentabilidade.
Graças à pressão de organizações da sociedade civil organizada e da Campanha Nacional da CPT de Combate ao Trabalho Escravo, o Ministério do Trabalho e Emprego voltou atrás e publicou nova Portaria Interministerial, em dezembro de 2017. Recuando, o Ministério do Trabalho e Emprego atende ao conceito contemporâneo de escravidão, presente no Artigo 149 do Código Penal brasileiro, além de se adequar às convenções e pactos internacionais de Combate e Erradicação ao Trabalho Escravo. Contudo, é preciso estar de olho aberto com as modificações contidas na nova legislação trabalhista, que no lugar de trazer dignidade, trouxe precarização, exploração e mais desemprego aos trabalhadores e trabalhadoras.
O ano foi também de divulgação da Lista Suja do Trabalho. Publicada nos meses de março e outubro, a Lista Suja apresentou 67 e 130 nomes, respectivamente. Dentre eles, é possível encontrar a JBS Aves Ltda., subsidiária da JBS e outra gigante da agroindústria, a Sucocítrico Cutrale Ltda.
Além das perdas de direitos trabalhistas, a proposta de reforma da Previdência deixou a população em estado de alerta e de mobilização. Diversos protestos foram realizados com o objetivo de denunciar os graves impactos que poderão ser causados caso a reforma da Previdência seja aprovada. Em dezembro, camponeses e camponesas ligados/as ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e ao Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) realizaram uma greve de fome por 10 dias na Câmara dos Deputados em Brasília, como forma de repúdio à reforma. Camponeses e camponesas colocaram suas vidas em risco na luta contra as assombrosas medidas que acabam com os direitos previdenciários enquanto deputados ignoravam os anseios do povo. Apesar de não ter sido aprovada em 2017, a votação da reforma será um grande risco para a população brasileira em 2018.
Para enfrentar o quadro, o povo brasileiro com suas mais variadas pautas não se calou e fez história. Ocupou as ruas cotidianamente para denunciar os desmandos do Governo e ampliar as trincheiras para a superação das desigualdades, intensificadas nesse período. No campo, o que animou foi a pulsão de vida dos Povos da Terra, das Águas e das Florestas, bem como de suas organizações sociais frente ao contexto de Morte do Estado Brasileiro.
No campo, a esperança veio das principais vítimas de violência: as comunidades tradicionais, que desafiaram a ambição e o poder do agronegócio e do latifúndio, lutando pela permanência em seus territórios tradicionais, espaço de Vida e Diversidade. Muitos de seus processos de resistências cotidianas não apareceram na TV, nem nos jornais – que, como previsto, cumpriram o papel de disseminar a narrativa criada pelo pacto das elites.
Vários foram e são os sinais de luz e de resistências capazes de alumiar e alimentar a utopia de uma terra sem males: a experiência da Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, que apresenta novas possibilidades de organização coletiva dos povos do campo; a construção de autonomia pelos diversos povos tradicionais do País, com experiências de autodemarcação de seus territórios; a articulação dos povos do Cerrado, que mesmo localizados em regiões distintas, conseguiram fortalecer a luta comum em defesa de um dos biomas mais ameaçados do País; a organização e mobilização das comunidades quilombolas de todo o Brasil para tentar barrar a aprovação da ADI 3239 no Supremo Tribunal Federal, que uma vez procedente paralisará a titulação dos territórios quilombolas em todo o País; o forte levante em defesa das águas, protagonizado pelo povo de Correntina, na Bahia, que denunciou os impactos do modelo de produção e irrigação que devasta o meio ambiente em benefício de poucas empresas ou latifúndios; a resistência de trabalhadores e trabalhadoras sem-terra, que por mais um ano mantiveram-se firmes embaixo da lona preta reivindicando a partilha da terra; as incontáveis experiências de produção agroecológica que cuidam da terra e cultivam a saúde do povo brasileiro, entre incontáveis outros exemplos.
Essas resistências experimentadas pelas Comunidades Camponesas e Tradicionais indicam um velho e novo caminho não somente de combate ao projeto de Morte das Elites e do Estado brasileiro, mas, principalmente, de construção de outras relações de poder, de vivência e autonomia que precisam ser urgentemente enxergadas. Por isso, 2018 é um ano que se inicia com o desafio de enxergarmos muito mais além das conquistas eleitorais. Motivados e motivadas pela memória subversiva do evangelho, é sempre tempo de seguir os ensinamentos de Jesus, que enviou seus discípulos para caminhar com as comunidades. Em meio às crises provocadas pelo Estado de Exceção e pelos podres poderes das elites, é tempo de colheita. É tempo colher os frutos de uma nova sociedade que está sendo gestada no meio das comunidades, no meio do povo.
12 de janeiro de 2018
Comissão Pastoral da Terra – Regional Nordeste 2
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Comissão Pastoral da Terra (CPT) registra 65 pessoas assassinadas em conflitos no campo em 2017 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU