10 Outubro 2017
“Não há dúvida de que o Papa Bergoglio está conduzindo a Igreja para além das Colunas de Hércules, do tradicionalismo do rito. Exige uma conversão genuína: cada um deve sair de si mesmo, do próprio individualismo. Isto não é fácil, nem garantido. Impõe uma escolha que leva para o céu aberto, fora da zona de segurança, fora das sacristias e das certezas”, afirma Vincenzo Paglia, arcebispo italiano, atual Presidente do Pontifício Conselho para a Família, foi assistente da Comunidade de Santo Egídio e grande propulsor do processo de canonização de D. Oscar Romero.
A entrevista é de Aldo Cazzullo, publicada por Corriere della Sera, 08-10-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
D. Paglia, em seu novo livro o senhor escreve que "a fraternidade é a promessa não cumprida da modernidade".
Infelizmente, sim. Não que a liberdade e a igualdade desfrutem de ótima saúde; mas a fraternidade é a mais negligenciada, e permanece uma utopia a ser realizada. O ‘Nós’ deve vir antes de nós mesmos: o ‘eu’ nasce de um ‘Nós’, está dentro de um 'Nós'; que no fim das contas é Deus. O ‘Nós’ vem de Deus. Mas, depois da morte de Deus, parece que agora chegou a morte do próximo.
A crise, o senhor afirma, está dentro de nós mesmos.
Estamos construindo o mundo global, mas o risco é que falte a alma. Como se quiséssemos construir uma dimensão universal, sem aquele ‘Nós’ que justifica tal fenômeno. Esta é a profunda contradição do nosso tempo: o advento do mundo global coexiste com a desintegração da sociedade de convivência, através da forma associada da vida, da família até a cidade e as nações; como confirma agora o drama catalão. Assistimos ao nascimento de um novo individualismo que escraviza tudo a si mesmo, obriga toda a existência a se curvar. Como um vírus que enfraqueceu e desintegrou a ato de ficar juntos.
Nem mesmo a família resiste?
A família permanece, sem dúvida, no topo dos desejos de todos. No entanto, é o lugar onde emerge a maioria das contradições, onde os vínculos se enfraquecem pouco a pouco: as pessoas não se casam para construir um futuro juntos, casam-se para se realizar, até despotencializar a força dos vínculos. Chegamos ao absurdo de um homem, e depois uma mulher, que se casaram com si mesmos.
São apenas figuras à procura de publicidade.
E que, infelizmente, alcançaram seu objetivo. O individualismo também dobra a família a si próprio; e uma sociedade ‘desfamiliarizada’ leva a uma sociedade ‘dessocializada’, onde os vínculos estão à mercê das ambições individuais. Tudo isto não responde à necessidade profunda que cada um tem de superar a solidão. O mundo começa plural.
No livro há um capítulo dedicado ao “erro de Deus”.
Deus cria o ser perfeito, e então percebe que ele está sozinho, reflete um pouco e cria a sua obra-prima: a mulher. Na frente dela, até mesmo Adão cai de joelhos. E à sua aliança Deus confia tanto a proteção da criação como os cuidados de todos os vínculos sociais. A aliança do homem e da mulher deve orientar não só a família, mas também a história humana. Enquanto não estiver bem esta aliança, a história também não irá bem.
A exclusão do outro, o senhor escreve, manifesta-se pela rejeição dos migrantes, com a polêmica contra o ius soli. Não está preocupado que sobre este ponto a Igreja tenha perdido a sintonia com grande parte da opinião pública italiana?
A Igreja não pode deixar de defender o acolhimento e propor a todos reconhecer sua própria necessidade do outro. Neste sentido, deve ser interpretada de forma correta inclusive a parábola do Bom Samaritano.
De que forma?
Percebe-se pouco que Jesus inverte a pergunta ‘Quem é o meu próximo?’. Jesus não responde, a inverte. Ele diz que você deve ser o próximo do outro. E próximo é superlativo de proper: você deve ser o mais próximo ao outro. É por isso que o acolhimento do estrangeiro é o começo para re-tecer o tecido do ‘Nós’. Se você rejeitar seu irmão que chega, é o mesmo que em uma casa o filho único rejeitar a chegada de outro. Precisamos reinventar a proximidade, o modo de ser mais próximo daquele que é o mais rejeitado. Começar de novo pelas periferias, diria o Papa Francisco.
Em poucos meses, será o quinquagésimo aniversário da Comunidade de Sant'Egidio, nascida exatamente nas periferias romanas. O senhor, quando jovem padre, deixou sua paróquia para ser assistente espiritual do grupo de jovens liderados por Andrea Riccardi.
Desde a infância eu queria ser padre. Entrei para o seminário aos nove anos. O livro é dedicado à comunidade: uma história que foi além de Roma, para abraçar o mundo inteiro. Não é uma história acabada, testemunha a urgência de partir de novas periferias O planeta é uma imensa megalópole. A ultrapassagem foi marcada em 2006: mais da metade da população mundial vive nas cidades.
O senhor disse ao "Corriere" que nos anos 1970 nas periferias só estavam vocês e as Brigadas Vermelhas.
Em Roma havia cem mil moradores em favelas. Mas hoje, se possível, o tecido social está ainda mais rasgado e complexo. A periferia tornou-se um conglomerado de bairros onde se perdeu aquele sentimento de comunidade que ainda existia nas favelas. Começou o colapso daquele ‘Nós’ que ainda amarrava e fazia resistência à solidão. Hoje esse processo atinge o clímax: a questão das periferias é a questão central da contemporaneidade.
Nos subúrbios das grandes cidades luta-se uma guerra entre pobres, entre residentes e recém-chegados.
Multiplicaram-se os conflitos. O veneno da violência tornou-se ainda mais letal e consegue recrutar todas as fases da vida, das crianças aos idosos. As pessoas são abandonadas a si próprias, ao ressentimento, ao rancor. É óbvio que em um terreno desprovido de relações humanas só pode crescer a erva daninha do ódio. Tudo isto não só gera violências transversais; coloca em discussão a manutenção da democracia. Por isso surge o populismo: qualquer pessoa que de alguma forma se impõe torna-se um líder, com base nas emoções mais do que na razão.
Mas o individualismo não é um instinto eterno do homem? Não poderia ser até um impulso positivo?
O valor do indivíduo é uma grande conquista da cultura cristã. Mas agora se tornou narcisismo, traindo a si mesmo. O primeiro santo do Ocidente, o número um do calendário, é Narciso. Roubou o posto a Prometeu, Ulisses e todos os santos.
Qual a cura contra o narcisismo?
Mudar a pergunta: não "Quem sou eu?", mas "para quem sou eu?". Vivemos hoje o enfraquecimento da esperança, que é a única que torna possível superar os egoísmos inatos de cada um de nós. Se não houver um sonho para o qual valha a pena viver, a pessoa recolhe-se em si mesma, e que cada um se salve como puder. O Papa Francisco é um exemplo extraordinário, porque é uma pessoa que sonha grande.
Não está se manifestando uma forte oposição conservadora contra Bergoglio?
Não há dúvida de que o Papa Bergoglio está conduzindo a Igreja para além das Colunas de Hércules, do tradicionalismo do rito. Exige uma conversão genuína: cada um deve sair de si mesmo, do próprio individualismo. Isto não é fácil, nem garantido. Impõe uma escolha que leva para o céu aberto, fora da zona de segurança, fora das sacristias e das certezas. A oposição nasce assim. Não é o primeiro a quem acontece. Basta pensar em Jesus e também em João XXIII e Paulo VI, os papas do Concílio. Em João Paulo II, o Papa do diálogo interreligioso de Assis. E em D. Romero, assassinado por esquadrões da morte no altar, durante a elevação".
Romero tornar-se-á finalmente um santo? O senhor é o postulador da causa.
Espero que seja reconhecido logo o milagre da cura de uma mulher, com a criança que ela estava gerando. Assim, após a decisão do Papa, a Igreja terá outro santo que carregava o cheiro das ovelhas, e é por isso que ele foi assassinado.
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Vamos nos rebelar à ditadura de Narciso que roubou o posto a Prometeu, Ulisses e todos os santos. Entrevista com Vincenzo Paglia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU