31 Mai 2017
A população brasileira está "cada vez mais indignada" com os sucessivos escândalos de corrupção e a crise política que atingiu o presidente Michel Temer, mas essa indignação, em vez de se canalizar em um "grito de basta" suficientemente forte para promover mudanças, vem se traduzindo em "desolação, apatia, conformismo", considera o sociólogo Sérgio Abranches.
"As pessoas das mais variadas procedências estão dizendo 'não tem jeito', 'eu quero ir embora'. Essa é a pior reação", opina Abranches. "Eu gostaria de ver uma explosão social, gostaria de ver o povo na rua, completamente indignado, não aparelhado, realmente disposto a ir às últimas consequências, se necessário, para mudar a situação."
O sociólogo de 67 anos acha ser necessária uma "ruptura" para restabelecer a representatividade política, uma reação popular desgarrada das "velhas estruturas partidárias".
"Não estou defendendo a baderna. Mas essa (a mobilização social) é uma das poucas saídas que vejo para mudanças mais radicais no Brasil", diz em entrevista à BBC Brasil, 30-05-2017.
Autor do recém-lançado livro A era do imprevisto: A Grande Transição do Século 21 (Companhia das Letras, 2017) e colunista da rádio CBN, Abranches considera que o governo Temer não tem mais salvação após a crise deflagrada pelas delações da JBS e acha que o presidente comete um "segundo crime de responsabilidade" ao prolongar sua permanência no poder.
Eis a entrevista.
A crise explodiu de um dia para o outro, mas não está claro se ela irá se resolver em um espaço de semanas ou meses. Que duração essa crise está se desenhando para ter?
Acho muito pouco provável que vá até as eleições de 2018. A Presidência Temer vai terminar antes disso. No curto prazo, você teria uma solução mais rápida que já foi descartada por Temer, a renúncia. Essa seria a forma mais rápida, eficaz e indolor de colocar o país de volta nos trilhos, mas já foi descartada. Ao decidir resistir, na minha opinião, ele cometeu o segundo crime de responsabilidade, porque isso vai custar caro ao país, a ele e ao orçamento público.
O que o senhor chama de "segundo crime de responsabilidade"?
Ele decidiu ficar sabendo que para tal terá que fazer mais concessões, incorrer em gastos públicos e contratações espúrias simplesmente para sobreviver, e comprar o apoio do Congresso. Há uma possibilidade de ele ainda fazer uma saída honrosa, que é aceitar o veredito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que julga supostas irregularidades de campanha na chapa Dilma-Temer em 2014) e decidir não recorrer. Se o TSE considerar que a chapa não é legítima, isso dá a ele um álibi adicional, que é o fato de o crime eleitoral principal não ter sido cometido por ele mas pela Dilma, a cabeça de chapa. Ele sairia de uma forma melhor, e não pelas razões principais relacionadas à conversa promíscua com o (empresário da JBS) Joesley Batista, que trazem um claro crime de responsabilidade.
O senhor acha que a saída é pelo TSE?
Acho que essa crise se resolveria com relativa facilidade desde que tivéssemos uma negociação nacional que fosse além do Congresso e dos partidos para definir quem fará essa ponte até 2018. As soluções que estão sendo discutidas internas ao Legislativo não são adequadas. Eu não considero que o (presidente da Câmara dos Deputados) Rodrigo Maia, por exemplo, tenha densidade política, capacidade de liderança ou isenção suficiente em relação à Lava Jato e ao governo Temer para fazer essa transição. Não é um bom nome, definitivamente.
Por outro lado, um senador como Tasso Jereissati, que é um homem respeitado em todas as frentes e tem muita experiência, também não é exatamente capacitado para construir esse consenso nacional, porque ele é do PSDB, e a gente tem uma polarização PSDB-PT que precisa ser superada no Brasil.
Superada, mas não ignorada.
Isso, não pode ser ignorada. Você não pode simplesmente achar que pode resolver para um lado ou para o outro. É preciso haver uma negociação que atenda também a essa despolarização. Um nome percebido com tal grau de isenção que seja visto tanto por lideranças do PT como do PSDB como uma pessoa apropriada para fazer essa ponte. E que tenha, por outro lado, um mínimo de respeitabilidade popular. Que a população indignada, decepcionada e frustrada com os rumos que o Brasil tomou com todo esse escândalo de corrupção ao menos considere que não é uma pessoa suspeita.
Os protestos que vimos até agora não foram de massa, como os de 2013. Como o senhor acha que a população está encarando mais esse escândalo? O excesso levou a um estado de dormência? Há mais cansaço que capacidade de se escandalizar?
Acho que a população brasileira em sua maioria, ao menos pelo que eu consigo captar nas ruas, está desolada. Embora esteja cada vez mais indignada, essa indignação está produzindo uma desolação, uma apatia, um conformismo.
As pessoas das mais variadas procedências estão dizendo 'não tem jeito', 'eu quero ir embora'. Essa é a pior reação. Eu gostaria de ver uma explosão social, gostaria de ver o povo na rua, completamente indignado, não aparelhado, realmente disposto a ir às últimas consequências, se necessário, para mudar a situação. Acho que tem horas que a sociedade precisa dar um grito de basta que seja suficientemente forte, vigoroso e desgarrado dessas velhas estruturas partidárias, para que realmente seja ouvido pela elite e promova uma mudança. Acho que estamos precisando de uma ruptura.
Isso faz pensar no quebra-quebra em Brasília, que despertou muitas críticas e foi visto com reserva, despertando dúvidas sobre quem estava por trás dos episódios de depredação.
Acho que o quebra-quebra em Brasília não faz parte desse grito de indignação. Foi uma coisa meio anárquica, mas na verdade aparelhada. E seletiva. Aquelas pessoas que estavam em Brasília não protestaram contra a corrupção do PT.
Na verdade eu falo em uma população que vá para a rua sem liames partidários. Por razões de fato difusas. Por todos os seus descontentamentos. Como foi em 2013.
Não estou defendendo a baderna. Mas a mobilização social é uma das poucas saídas que eu vejo para mudanças mais radicais no brasil. Senão as mudanças serão muito lentas e difíceis, e terão muita resistência dessas oligarquias.
Nas últimas semanas vem se falando muito na construção de um "pacto nacional" para escolher um candidato para substituir Temer via eleições indiretas. Isso não adiaria esse momento de ruptura que o senhor defende para promover mudanças?
Mas veja, essa é a única solução menos negativa que nos dê alguma perspectiva de mudança adequada para preparar as eleições de 2018. Porque uma eleição direta agora não daria à população a possibilidade de fazer escolhas alternativas ao establishment. O sistema político brasileiro foi construindo uma série de barreiras à entrada de novos atores políticos, denominados de aventureiros. Isso começou no governo Collor.
O (ex-presidente Fernando) Collor pode ter sido ruim, mas aventureiro ele não era. Era neto e filho de políticos, tinha sido governador. Não era um outsider. Mas foram tomadas uma série de medidas legais para evitar aventureiros como Collor na política. Foi um álibi para reforçar o controle de ferro das oligarquias sobre o sistema político.
Se não tivermos regras que democratizem as eleições e campanhas e exponham os candidatos mais diretamente à população, não vamos conseguir fazer uma mudança.
As discussões de reforma política no Brasil precisam considerar isso - a possibilidade de abrir a porta, escancarar as portas, para novas entradas no sistema político. Uma eleição como a do (novo presidente Emmanuel) Macron na França é impossível pela legislação brasileira.
Em seu novo livro, o senhor fala que um fosso está se abrindo entre os partidos políticos e a população, não só no Brasil mas no mundo todo. Como se resgata essa conexão?
A democracia representativa está em crise no mundo todo e vai precisar, no longo prazo, ser aprofundada, alargada, complementada com novos instrumentos de representação e de controle social da política, que não eram possíveis no passado.
A estrutura política no mundo é toda analógica, à exceção de alguns recursos digitais usados por figuras como Barack Obama e Macron. A política ainda se faz toda com tecnologia analógica, ou sem tecnologia. Mas a sociedade é digital. As pessoas trocam ideias, se ofendem, se amam e se persuadem mutuamente pelas redes, digitalmente.
Temos que pegar esses mecanismos da sociedade digital e introduzir nas política, para torná-la mais transparente e tornar os partidos, governos e parlamentos mais representativos. Isso muito no longo prazo.
Acho que a democracia vai ter que mudar muito profundamente. Claro que a democracia é uma grande conquista, e temos que manter essa grande conquista, mas ela tem que ser transformada.
No livro o senhor fala de transformações radicais que estariam pro vir em muitas frentes. Na frente política no Brasil, o senhor considera a Lava Jato um elemento-chave para impulsionar essas mudanças?
Sim, e por outro lado ela também ilustra coisas que podem ser feitas hoje graças às mudanças radicais na tecnologia. É um exemplo da digitalização da democracia de que eu estou falando. Os juízes fazem o upload das provas, dos documentos, das sentenças, dos pareceres, das acusações etc. para o meio eletrônico. Os jornalistas têm treino para acessar aquele material digital - que corresponderia a salas e mais salas com pilhas de processos de papel, e que seria dificílimo de manusear e selecionar.
Eles sabem abrir pastas que contêm outras pastas que contêm outras pastas para chegar ao documento que importa à opinião pública e que de fato dá transparência ao sistema. Então na verdade a Lava Jato já está trazendo mudanças. Deu à Justiça um grau de transparência que não tinha. A Justiça era uma caixa-preta e agora deixou de ser. Já está mudando o procedimento judicial.
Temer havia acabado de completar um ano no poder antes de a crise estourar. Se ele cair, qual terá sido o legado desse um ano, na sua opinião?
Ficam dois legados, um muito negativo e um positivo em termos. O positivo é o fato de que ele realmente percebeu o que era preciso fazer para reequilibrar a economia e tirá-la da pior recessão da sua história. Colocou gente muito competente no Banco Central, no Ministério da Fazenda e fez uma proposta legislativa que atendeu os mercados, com as reformas.
O negativo é descobrir que o mesmo presidente capaz de tirar o país do buraco ao mesmo tempo tinha um subterrâneo na residência oficial na qual recebia pessoas que não podia receber para conversas que não poderia ter. E ao ser pilhado nesse ato muito impróprio, que é crime de responsabilidade por ferir o decoro do cargo, ao invés de reconhecer a sua culpa e renunciar, e dizer que não tem mais condições de governar, ele fica encastelado, resistindo uma luta que já perdeu. É a mesma coisa que a Dilma Rousseff fez no interregno do impeachment.
E a gente vê que foram os piores momentos para o país, gerando confusão e incerteza mesmo com o desfecho já conhecido de antemão. É uma resistência teimosa, custosa, que transfere os ônus para a população mas não chega a beneficiar aqueles que estão resistindo.
Um dos trunfos do governo Temer era o apoio grande de que desfrutava no Congresso. Permanecendo no poder, o que acontece com a sua base parlamentar?
A equação se inverteu. Ele tinha uma coalizão de alta eficácia e baixo custo. Precisava fazer muito menos concessões do que Dilma e Lula para obter as coisas que queria aprovar no Congresso. Apesar de sua impopularidade, ele tinha a permanência até 2018 garantida, e isso era o suficiente para manter a base de apoio no Congresso. Tinha uma capacidade de gestão da coalizão invejável. Mas agora ele se torna refém do Congresso. E ser refém custa muito mais caro. Ele vira um presidente de baixa eficácia, alto custo. Porque cada vez que ele precisar de alguma coisa, o Congresso vai lembrar: 'você cai se eu quiser'. O Rodrigo Maia está sentado numa pilha de pedidos de impeachment.
Temer já não consegue pedir nada ao Congresso que não seja a sua própria sobrevivência. O governo acabou, não tem mais salvação. As declarações que ele fica fazendo na televisão chegam a ser patéticas como erro de comunicação. Porque a população não está ouvindo, não quer saber. Não é isso que importa para a população. Ele está falando sozinho. É um exercício narcísico.
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Indignação com política tem gerado apatia em vez de mobilização, diz sociólogo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU