29 Março 2017
“Dom Romero se esforçou em fazer que sua pregação sobre a dignidade das vítimas não fosse só retórica, mas que seu trabalho pastoral estivesse em sintonia com aquela. Isso teve custos para ele, sendo o maior deles a perda de sua vida. A coerência entre palavra e ação, quando ambas buscam conquistar uma maior justiça, é mal vista pelos poderosos de todos os tempos. Do lado contrário, a incoerência é bem vista e, mais ainda, é fomentada através da chantagem e os favores econômicos e políticos”, escreve Luis Armando González, licenciado em Filosofia pela UCA e mestre em ciências sociais pela FLACSO, em artigo publicado por America Latina en Movimiento, 27-03-2017. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Neste mês de março, no marco da comemoração do XXVII Aniversário do assassinato de Dom Romero – e no marco do processo de sua proclamação como santo por parte do Vaticano – é importante reafirmar a atualidade de Dom Romero nestes tempos tão necessitados de referências culturais e morais de envergadura. Exploramos aqui, pois, os valores de Dom Romero e refletimos sobre assuntos que o fazem atual em uma época distinta daquela que ele realizou seu magistério e ofereceu sua vida.
Desde o assassinato de Dom Oscar Arnulfo Romero, no dia 24 de março de 1980, este mês se converteu, ano a ano, em um espaço para a reflexão, a memória e a atualização do legado do Arcebispo mártir. Trata-se de um legado, o seu, rico em implicações de todo tipo: sociopolíticas, históricas, educacionais e morais. É esta última dimensão do legado de Dom Romero que quero destacar nestas páginas.
Acredito ser necessário e urgente refletir sobre os valores que Dom Romero apresentou e que marcaram sua atuação como Arcebispo de San Salvador nos convulsivos anos setenta até sua morte, em março de 1980. Que se compreenda meu enfoque: não é uma preocupação moralista ou moralizadora a que me leva a abordar o tema dos valores em Dom Romero, mas uma preocupação com a deterioração de referências morais fundamentais em nossa sociedade, em seus diferentes âmbitos privados e públicos.
Os valores de Dom Romero que me interessa destacar são esses valores fundamentais de sua atuação como pastor e como cidadão consciente de suas obrigações, em um país atravessado por graves conflitos e desigualdades socioeconômicas. Não repetirei o que se disse em muitas ocasiões sobre sua fidelidade à verdade e seu compromisso com a justiça, mas darei atenção a valores a respeito dos quais pouco se fala, mas que são centrais para compreender a grandeza de sua figura moral.
a) A consciência das próprias obrigações diante dos demais
Este é o primeiro valor que eu vejo em Dom Romero. Os valores são um assunto de consciência, ou seja, de convicção íntima acerca do que é bom e mau, humano e desumano. Possuir a convicção de que temos obrigações diante dos demais – seus problemas, necessidades, misérias – constitui um valor de primeira importância. Um valor que Dom Romero possuiu sem sombra de dúvidas e que se traduziu em uma práxis de compromisso com os outros.
b) A dignidade dos outros, especialmente das vítimas de abusos dos poderosos
A obrigação com os demais (com os outros) teve em Dom Romero uma clara direção: trabalhar por sua dignidade, o que supunha um compromisso com sua humanização. Dom Romero privilegiou, em seu trabalho humanizador, aqueles que eram violentados em sua humanidade por estruturas de poder injustas e excludentes. Não é outro o sentido da expressão “opção preferencial pelos pobres” que Dom Romero – inspirado em Medellín e Puebla – fez sua e traduziu à realidade salvadorenha.
c) A busca de coerência entre a palavra e a ação
Nada mais difícil que essa coerência, sobretudo nos tempos atuais, quando está na moda atuar de costas ao que se prega. Dom Romero se esforçou em fazer que sua pregação sobre a dignidade das vítimas não fosse só retórica, mas que seu trabalho pastoral estivesse em sintonia com aquela. Isso teve custos para ele, sendo o maior deles a perda de sua vida. A coerência entre palavra e ação, quando ambas buscam conquistar uma maior justiça, é mal vista pelos poderosos de todos os tempos. Do lado contrário, a incoerência é bem vista e, mais ainda, é fomentada através da chantagem e os favores econômicos e políticos.
d) Olhar a realidade do país a partir daqueles que estão em pior situação, ou seja, a partir das vítimas
O normal na época de Dom Romero (e na nossa) é que a partir dos círculos de poder econômico, político e religioso a realidade fosse vista sob o prisma daqueles que estavam no alto da pirâmide social. Dom Romero fez o oposto e desafiou aos poderosos para que olhassem as vítimas e que, a partir delas, julgassem o país que tínhamos. É claro que não fizeram isto. Contudo, Dom Romero atuou assim e seu julgamento foi severo: El Salvador estava edificado sobre a miséria e a exclusão da maior parte de seus membros. O país construído a partir dos interesses dos poderosos era um país desumano.
e) Ajuizar a realidade nacional com uma palavra firme e clara
Em nosso tempo, outra das modas é a ambiguidade naquilo que se diz, não só para ser “politicamente corretos”, mas para ficar bem com todos e que ninguém possa nos reprovar uma expressão ofensiva ou questionadora. No tempo de Dom Romero, a moda não era a ambiguidade no que se dizia, mas a proclamação contundente de mentiras sobre a pobreza, a violência e a injustiça. Dom Romero, consciente que afirmar o contrário ao proclamado pelos poderes de turno era perigoso, agiu assim. Sem ambiguidades, chamou as coisas por seu nome e fez isto de tal forma que todos compreenderam o que queria dizer.
f) Por último, não cobiçar poder e riquezas
Não se deve perder de vista que Dom Romero esteve na cúpula do poder católico nacional. Deste local, o acesso ao bem-estar material, privilégios, bens e demais coisas que simbolizavam uma vida prazerosa estavam ao alcance de sua mão. O mais fácil e que poucos veriam como negativo era optar pelos privilégios do cargo e trabalhar para subir mais na hierarquia de poder eclesial internacional. Mas, este bom homem não fez isso; não pensou que ter riquezas, privilégios e poder fossem uma opção de vida para ele.
Não sei como devem enxergar Dom Romero aqueles que acreditam que aquilo que é necessário buscar em qualquer cargo público é a acumulação de riquezas, mas, de um ponto de vista ético, sua lição é maiúscula: invejar aos ricos e querer ser como eles não é bom, nem correto, pois isso é uma bofetada naqueles que – uma maioria de salvadorenhos – vivem na miséria e na exclusão.
Em definitivo, Dom Romero foi um homem de sólidos valores humanos e humanizadores. Os valores que dele destaquei nos são distantes ou ao menos só são cultivados por um punhado de gente de boa vontade, gente que se costuma ver como idealista, ingênua e à margem do pragmatismo imperante hoje em dia. No entanto, trata-se de reivindicá-los como algo necessário para construir uma sociedade melhor, na qual o oportunismo e o se aproveitar dos demais seja algo inaceitável na consciência de cada um.
O século XXI avança rápido não só em termos cronológicos, mas em termos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Mudanças de diferente índole ocorrem em todos os lugares; a chamada “sociedade líquida” parece ter se imposto definitivamente. Vivemos, pois, “tempos líquidos” nos quais a fugacidade dos acontecimentos, mais que sua estabilidade e permanência, é o mais normal na vida das pessoas.
A cultura atual, a cultura predominante, é a que melhor expressa e reforça esta dinâmica de mudança permanente. O “ir com pressa” em busca do êxito fácil é a sua marca mais característica. Nunca como em nossa época se valoriza tanto a rapidez e se despreza em igual medida a lentidão. Parar-se, deter-se, fazer uma pausa, tomar distância... Nada pior que isto para frear o ritmo dos processos, o ritmo da cotidianidade, o ritmo dos comportamentos e decisões.
Daí o movimento incessante de pessoas e coisas, de opiniões, modas e gostos. Quem mais se move, quem avança mais de pressa que os demais, alcançará antes que eles e elas qualquer meta, mas, depois de tudo, a meta é o de menos, porque a mesma também é algo volátil, algo que uma vez que se alcança perde sentido, ao se tornar obsoleta diante daquilo que a superou.
Na sociedade líquida, assim como algumas pessoas ultrapassam outras, ao ir mais rápido que elas, algumas coisas ultrapassam outras (como acontece com os novos modelos de telefones celulares que ultrapassam incessantemente os antigos, que eram “novos” apenas ontem).
Este estar vivendo em velocidade, com pressa, ultrapassando aqueles que surgem no caminho como um obstáculo a vencer, corrói a convivência social, ao introduzir práticas agressivas e violentas nas relações sociais. Este é o efeito imediato e cotidiano do ir com toda pressa para qualquer lugar.
Mas há outros efeitos de médio e longo prazo. Um dos mais graves é a perda de perspectiva do que é importante e do que é secundário na realização pessoal, familiar e social. O mais imediato e fácil se converte no mais importante. Os projetos que exigem olhares de longo prazo, compromissos e disciplinas se perdem de vista. O agora é a única coisa que conta.
Perde-se de vista a solidariedade e a cooperação, sem as quais uma sociedade decai na anomia e a perda de sentido de seus membros. Em uma sociedade na qual “chegar primeiro” é o mais valorizado, aqueles que se atrasam são desprezados, são vistos como “perdedores” e “fracassados”. O que quer dizer que não devem ser objeto de atenção e proteção, mas de rejeição e condenação.
Em uma visão competitiva da vida, como a que a cultura neoliberal alimenta, o bem comum e a opção pelas vítimas brilha por sua ausência. Conta o êxito próprio, que se ostenta e se divulga para que não fique dúvidas de quem ganhou na concorrência social e econômica.
Por fim, a cultura do vertiginoso, a cultura da vertigem produzida pela mudança incessante nas relações pessoais e nas coisas, tem uma forte presença nas sociedades atuais. Marca os comportamentos e as práticas sociais, gerando graves danos ao tecido social.
Podemos encontrar algo em Dom Romero que nos ajuda a nos colocar de outra maneira diante desta cultura do líquido, do imediato e do fácil?
É claro que sim. Há muitas ajudas para isso em seu trabalho pastoral e em sua obra político-teológica. Mencionemos três:
A primeira é a de fazer as necessárias pausas no caminho para tomar distância dos acontecimentos e não nos deixar arrastar por eles. Como faz falta na consciência cidadã o hábito da “pausa no caminho” e a meditação de como se está parado na realidade.
Não tomar uma mínima distância dos acontecimentos e não meditar sobre nossas ações, supõe ser arrastados pelas dinâmicas nas quais deveríamos intervir. Dom Romero manejou com maestria o hábito da tomada de distância, a pausa no caminho e a meditação sobre as próprias ações.
A segunda ajuda que Dom Romero pode nos oferecer é a de nos obstinar a estabelecer prioridades em nossa vida, mas não quaisquer prioridades, mas aquelas que colocam em primeiro lugar a dignidade das pessoas, e principalmente das mais fracas e vulneráveis. Definitivamente, nem tudo acontece da mesma forma na vida das pessoas; nem todas as metas pessoais e sociais são equivalentes.
Há metas mais importantes que outras, e entre as primeiras – como ensinou Dom Romero – as que contam são aquelas que fazem com que a vida e a dignidade dos pobres e despossuídos seja menos miserável.
E, em terceiro lugar, Dom Romero também nos ensina que o êxito fácil, simbolizado na riqueza e ostentação, não é uma aspiração que deve ser fomentada socialmente, mas que, ao contrário, deve ser contida e criticada. É que caso se permita que ela floresça, seus efeitos são nocivos para a sociedade, pelas dinâmicas de abuso, desprezo e agressividade que gera entre seus membros.
Em dom Romero há uma ética cívica sobre a qual quase ninguém fala, mas que é inestimável em um país como este, tão corroído moralmente.
Mencionei apenas três aspectos dessa ética cívica, mas não resta dúvida que na obra de Dom Romero há muito mais elementos nessa categoria que estão à espera de ser destacados e colocados a serviço de uma mudança moral-cultural em El Salvador.
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Atualidade de Dom Oscar Arnulfo Romero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU