22 Setembro 2015
O papa Francisco chega neste sábado (19/09) a Havana, Cuba, para uma viagem de dois dias, depois dos quais seguirá para os Estados Unidos. Para além da questão religiosa, a viagem de Bergoglio à ilha comunista é repleta de significados políticos, já que ele foi um dos interlocutores – quiçá o principal – do início dos diálogos, e consequente reaproximação, entre Estados Unidos e Cuba.
A entrevista é de Marianela González, publicada pela Revista Temas e republicada por Opera Mundi, 19-09-2015.
Para decifrar o contexto e significados dessa visita, a revista cubana Temas entrevistou o sociólogo e especialista em Igreja Católica em Cuba, Aurelio Alonso. Para o pesquisador e vencedor do Prêmio Nacional de Ciências Sociais, a visita dos dois papas anteriores a Francisco: João Paulo II e Bento XVI a Cuba os impactou na medida em que descobriram que há “uma possibilidade de pobreza com dignidade”.
Para Alonso, no entanto, a visita papal “pode se converter realmente em um fator para que o bloqueio comece a se flexibilizar”, mas “vai ganhar muitos inimigos nos Estados Unidos, da direita norte-americana”.
Eis a entrevista:
O que significaram as visitas dos papas a Cuba? Que particularidades terá esta primeira visita do papa Francisco?
Cuba deixou uma marca em João Paulo II, e isso fez com que Bento XVI também quisesse vir. De forma que o único país latino-americano que até 1998 não tinha sido visitado por nenhum papa, agora será um dos poucos visitados pelos três últimos.
Esse impacto sobre aqueles dois papas consistiu na descoberta de que havia uma possibilidade de pobreza com dignidade. Este país vive em um fracasso econômico permanente ocasionado pela mistura de bloqueio e de problemas internos, e de incapacidade para rumar para um modelo sob essa situação bloqueada, que ultrapasse a linha da sobrevivência. A população vive em condições que consegue vencer o desamparo, porém não a pobreza. Ali há algo que do ponto de vista evangélico tem um sentido.
No entanto a visita de Francisco será diferente das duas anteriores. Este é o papa que mais fez a favor de Cuba no curto período que tem de pontificado. Não se limitou a uma mera condenação ao bloqueio, ofereceu seus serviços como mediador, o que foi suficientemente importante para que se reconheça o seu papel pelo governo cubano e pelos Estados Unidos, junto com o governo do Canadá.
O papa vai chegar quando as embaixadas estarão abertas, o que é o primeiro resultado efetivamente importante dessa mediação, o restabelecimento das relações diplomáticas [entre Cuba e os Estados Unidos]. Não é ainda, como disseram os governantes, os nossos e os outros, a normalidade das relações. Porém é o início desse processo.
Esta terceira visita vai ser a mais importante das vindas dos papas, apesar de não ser tão comprida como a de João Paulo II. Não terá a pompa e circunstância como teve a primeira, com uma numerosa comitiva. Trata-se da mais importante, em primeiro lugar, porque é o pontificado que mais deu provas de ter uma disposição mais pró-ativa, para uma aceitação do processo de transformação cubana com sua soberania e seus desdobramentos. E, em segundo lugar, porque penso que há mais coisas para dizer entre os discursos deste pontífice e dos líderes do processo cubano.
Vem a Cuba e, logo em seguida, aos Estados Unidos. Vai continuar no seu papel de mediador. Ele pode se converter realmente em um fator para que o bloqueio comece a se flexibilizar, para que comecem a se encontrar caminhos de flexibilização. Ele vai ganhar muitos inimigos nos Estados Unidos, da direita norte-americana.
Não sei como será agora a situação, porém houve momentos em que a hierarquia episcopal norte-americana deu provas de simpatia e de aproximação com Cuba nos anos 1980 e 1990. O fato de abrir embaixadas, a presença de figuras do clero norte-americano durante sua visita a Cuba, como convidados, pode ser muito maior do que nas visitas dos papas anteriores. Não apenas numericamente, porém muito mais importante, mais significativa, com peso, inclusive, na promoção do desdobramento das relações diplomáticas. Ainda que a igreja católica não seja majoritária nos Estados Unidos, frente ao protestantismo como conjunto, como igreja individual, trata-se de um passo muito grande.
Entre outros fatores, o anticomunismo da igreja católica cubana restringiu sua presença na sociedade cubana. Esta presença foi recuperada em certa medida, junto a seu nível de diálogo com o governo. Como você aprecia a relação entre as posições progressistas de Francisco e uma igreja cubana atravessada por correntes conservadoras que tendem ao encerramento e a fomentar fiéis obedientes? A próxima visita pode contribuir para recuperar o clima de diálogo e propiciar correntes a favor do compromisso social e a colaboração com outras instituições da sociedade civil cubana?
A igreja cubana continua sendo conservadora; porém é menos do que nos anos 1960. O triunfo da revolução acontece três anos antes de começar o Concílio Vaticano II; quando o que prevalece é a igreja tradicionalista tridentina.
Antes do Vaticano I, o último Concílio foi o de Trento, em 1540. Este foi feito sob a influência do nascente mundo jesuíta, que criou a contrarreforma, e que expressou um reformismo conservador, dirigido para criar símbolos que resgataram a estrutura da igreja católica. O sistema moderno de educação a invenção dos jesuítas, que estabelece aulas de uma hora, com dez minutos de recesso entre as disciplinas. Articular estas disciplinas na escola da forma como nós a conhecemos não existia antes. Essas normas, que são as tridentinas, provenientes do Concílio de Trento, são as que se mantêm vigentes e que o Vaticano I não consegue alterar, porque este concílio não chega a ser concluído. Dessa forma, o Vaticano II é o evento que produz uma reforma feita na igreja.
Quando triunfa a revolução cubana, a estrutura da igreja no país ainda não havia sido modificada pelo Concílio Vaticano II. Trata-se de uma igreja conservadora, que inclusive tinha ficado contra a independência nacional até o último momento no século XIX.
Você me fala do anticomunismo da igreja, porém não do ateísmo do marxismo. O comunismo que foi assumido em Cuba – majoritariamente o aprendido da URSS – era ateísta. Para as cabeças que pensam assim, a religião é uma deformação ideológica, um atavismo chamado para acabar, não um componente legítimo da cultura.
Agora vejamos bem, a igreja teve um processo de assimilação da mudança social cubana; e ainda que continue conservadora, não é como antes; e isso teve influência da revolução, mas também do Vaticano II.
Depois dos conflitos que foram produzidos no início dos anos 1960 entre a igreja e o Estado, e a expulsão daqueles 131 sacerdotes no barco Covadonga, acontece uma espécie de congelamento nas relações entre ambos. No entanto, o primeiro passo de aproximação não é dado pelo Estado cubano, mas pela igreja, como consequência da participação dos bispos cubanos na segunda reunião da Conferência Episcopal Latino-americana, em 1968, realizada em Medellin, onde a influência do Vaticano II se traduz para a América Latina. Nesta mudança, influenciam também sacerdotes como Carlos Manuel de Céspedes, formados pela aura deste concílio.
E aí aparecem as duas famosas pastorais nas quais a igreja condena o bloqueio, chamando-a dessa forma de “o bloqueio dos Estados Unidos a Cuba”, em 1969. E depois lança outra pastoral onde se diz que não há problemas para que haja um diálogo entre cristãos e marxistas. Diante das declarações, a liderança cubana não reage a favor, porém muito pelo contrário. Em 1971, foi realizado o Congresso de Educação e Cultura, que foi fortemente antirreligioso e promoveu o ateísmo. No Primeiro Congresso do Partido (1975) houve uma resolução sobre a igreja e os fiéis, que, embora não citasse expressamente o ateísmo, dizia que a concepção do mundo do Partido era a concepção científica, o que significava ser ateu.
Minha hipótese é de que, quando acontecem essas pastorais da igreja, que poderiam ter provocado uma maior aproximação, uma reação distinta, a subsistência do projeto cubano já estava em crise, e tínhamos que nos sentar no CAME (Conselho para Assistência Econômica Mútua) com a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Então, em vez de continuar com a igreja uma política de propiciar a aproximação, esta foi descartada, porque estávamos a caminho do CAME e não íamos então precisamente adotar uma política fora do ateísmo.
Monsenhor Sacchi, o encarregado de negócios que ficou representando o Vaticano aqui, contribuiu muito para que se restabelecesse um diálogo. O Vaticano nos tinha retirado o Núncio, e não o substituiu, deixou esse encarregado de negócios, que não era nem o primeiro secretário, nem o conselheiro, mas apenas o segundo secretário. No entanto, Cuba não fez a recíproca; no lugar de retirar o embaixador, nomeou um embaixador cubano católico no Vaticano, Amado Blanco, um homem inteligentíssimo, muito culto, revolucionário e muito católico. Politicamente foi um gesto brilhante e garantiu que da parte cubana a relação se mantivesse ali no mais alto nível.
Eu acredito que nós fomos mais ateus do que deveríamos ser quando a igreja estava começando a gerar um mecanismo de aproximação.
Então você acredita que esta próxima visita do papa Francisco poderia contribuir para recuperar um pouco o clima do diálogo, e como dizia, propiciar correntes a favor do compromisso social e a colaboração com outras instituições, principalmente da sociedade civil?
Sim. E, além disso, acredito que um espírito diferente será insuflado no meio cristão. Eu acredito que isso pode ser benéfico.
Dadas as características deste pontificado, e o papel que a igreja cubana desempenhou nos seus últimos anos, incluída, pela primeira vez, a intervenção na libertação de presos políticos e comuns. As libertações, que a igreja sempre pede, respondendo ao sentimento de piedade, somam-se a outros gestos, que lhe permitem mais visibilidade, mais presença, um espaço maior na educação. A igreja aspiraria sempre que pudesse ter escolas católicas em Cuba, como os salesianos, as escolas dos jesuítas. Carlos Manuel sempre apostava que isso iria acontecer; eu lhe dizia que via em perspectiva uma abertura do ensino religioso, porém articulado ao sistema de educação nacional. Ele me insistia que eu estava equivocado, que isso poderia acontecer inicialmente, porém que seria um passo para que também se pudesse voltar a abrir o espaço para as escolas católicas. Ele me dizia: ‘Você e eu, e também [o ex-presidente cubano] Fidel Castro, viemos dessas escolas, e a maioria dos membros do governo do país’. Ele sempre brincava com isso e dizia: “Você já percebeu que os membros do Comitê Central e os do Birô Político do Partido Comunista, a mais alta liderança política, são quase todas figuras formadas em escolas católicas. Enquanto a maioria dos bispos se formaram em escolas básicas criadas pela revolução e que não têm nada a ver com o ensino católico”. Olhe só que paradoxo é isso.
A presença de Francisco, e o contato com ele, pode desempenhar um papel positivo e uma aproximação, em uma abertura maior do episcopado atual para a revolução. A mudança política para a sociedade que vem, porém não vista com um padrão fechado.
Francisco não está a favor da mercantilização da sociedade; porém que não se perca o padrão de igualdade. Não estará a favor de que ser perca em Cuba o que ele quer que se ganhe para o restante do continente, porque está demasiado perdido.
Ainda que em Cuba você possa perder o amparo, porque nada é irreversível. Quase tudo o que ganhamos, menos a memória, que sempre está aí – nada mais poderoso do que a subjetividade –, porém tudo o demais pode se perder progressivamente. O Haiti é a sociedade mais pobre e desamparada da América, e foi a colônia mais rica no século XVIII. As reversões podem ser brutais.
Não penso que a visita de Francisco vá gerar um aumento impactante de fiéis católicos, porque em Cuba também, como em outras regiões da América Latina, a reanimação da fé religiosa já foi se mostrando pelas correntes de pensamento religioso não tradicional, foi se dando pela via do pentecostalismo, que é hoje mais poderoso do que o catolicismo.
Essa demografia religiosa básica que foi se configurando em Cuba não é alterada com a visita de um papa, é um fenômeno que tem suas próprias raízes arraigadas. Embora possa impactar favoravelmente, deixar uma boa lembrança, não pode sacudir a demografia religiosa do país.
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Em Cuba, Igreja descobriu que há possibilidade de dignidade na pobreza, diz sociólogo cubano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU