Há uma demanda no Brasil por extremismos de direita que é maior que o bolsonarismo. Entrevista especial com Pedro Telles

Bolsonaro, embora seja uma figura proeminente da extrema-direita no Brasil, agora divide o protagonismo radical com outros personagens capazes de aglutinar anseios que a democracia tem tido cada vez mais dificuldade de atender

Pablo Marçal | Foto: Divulgação/Campanha de Marçal

Por: IHU e Baleia Comunicação | 12 Novembro 2024

Nos últimos anos Jair Bolsonaro aglutinou em torno de si os desejos de parte da população que vê no autoritarismo uma saída para as encruzilhadas contemporâneas, mas o bolsonarismo como movimento, viu-se, nas últimas eleições municipais, ameaçado por outros personagens igualmente extremistas. O que está em jogo não é o extremismo em voga, mas o protagonismo do ex-presidente. “Quanto que, de fato, é um movimento liderado por Bolsonaro primariamente ou quanto que ele é um movimento em que o Bolsonaro foi protagonista por um tempo. É mais centralizado em sua liderança ou sequer é mais um movimento, podendo ser mais uma pulsão social que leva a um interesse eleitoral pela extrema-direita, mas que não se configura como movimento?”, questiona Pedro Telles, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

“Cada vez mais percebemos que a extrema-direita é um campo maior do que ele e que, significa, ela pode e tende a continuar nesse caminho mesmo que ele saia de cena. Existe uma demanda eleitoral colocada aí e por isso que o transcende”, propõe o entrevistado. “É muito difícil continuar chamando de bolsonarismo a ideologia promovida por Bolsonaro, pois é uma ideologia da qual ele efetivamente não é 'dono', inclusive sequer se mantenha como o principal ator capaz de pautar essa ideologia e promovê-la, não da forma hegemônica como já fez”, complementa.

O cenário se complexífica ainda mais quando levamos em conta o papel das Big Techs na democracia e no processo eleitoral. Telles chama atenção para um aspecto levantado por um defensor do Brexit (processo de saída do Reino Unido da União Europeia), colocando os cientistas de dados como mais confiáveis que cientistas políticos. “A visão é que cientistas políticos e outros atores tradicionais da política e do marketing político com muita frequência se baseiam mais em palpites pessoais e em um suposto entendimento que se tem individualmente com essa dinâmica política e com relação ao eleitorado. Por outro lado, cientistas de dados se baseiam em números e não em palpites e, com frequência, acertam muito mais em função disso. Portanto, devemos escutar mais e melhor as angústias, anseios, desejos e necessidades dos cidadãos”, descreve.

Pedro Telles é pesquisador sênior em Social and Economic Equity na London School of Economics and Political Science (LSE), mestre com distinção em Development Studies pela University of Sussex, pós-graduado em Análise Econômica pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) e em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), e bacharel em Comunicação Social pela ESPM. Especialista em advocacy, políticas públicas e engajamento cívico, é professor de Relações Internacionais na Fundação Getúlio Vargas - FGV. Além disso, é diretor da Quid, membro do conselho diretor do Advocacy Hub e membro do conselho consultivo do Engajamundo, sendo cofundador das três organizações. Em 2022 fez parte da equipe de transição do governo Lula-Alckmin.

Confira a entrevista.

IHU – No Brasil a extrema direita, ao menos desde 2017, se organiza a partir do signo do bolsonarismo. Até que ponto a extrema direita brasileira se reduz ao bolsonarismo e a partir de que ponto ela tem outras feições?

Pedro Telles – Pelo fato de o Bolsonaro ter se construído, até pouco tempo, como uma liderança da extrema-direita incontestável do Brasil, a ideia de extrema-direita se associou muito à ideia de bolsonarismo, esses conceitos se tornaram quase sinônimos. Mais recentemente, com o Bolsonaro se fragilizando, vai ficando claro que a extrema-direita brasileira vai além e está acima do bolsonarismo.

Tem uma dimensão do Bolsonarismo que é a dimensão dele enquanto um projeto pessoal do Bolsonaro e da sua família. Tem uma outra dimensão que é do bolsonarismo como suposto rompimento e também como suposta ideologia. É claro que o projeto pessoal dele continua existindo e pode ser chamado de bolsonarismo.

Agora, a ideia de bolsonarismo como movimento está bastante fragilizada, pode ser muito questionada. Quando percebemos a quantidade de eleitores de extrema-direita que se associam ao Bolsonaro, que apoiam ele, mas que acabam votando em candidatos que não são apoiados por ele, como o caso do [Pablo] Marçal em São Paulo. Quanto que, de fato, é um movimento liderado por Bolsonaro primariamente ou quanto que ele é um movimento em que o Bolsonaro foi protagonista por um tempo. É mais centralizado em sua liderança ou sequer é mais um movimento, podendo ser mais uma pulsão social que leva a um interesse eleitoral pela extrema-direita, mas que não se configura como movimento?

Em termos de ideologia, a mesma coisa. Tem diversos atores que estão emergindo de forma mais independente de Bolsonaro, em alguns casos até disputando espaço com ele localmente, pelo menos na extrema-direita, que compartilham dos mesmos signos, símbolos e propostas em grande parte e que mostram que isso não está atrelado ou amarrado ao Bolsonaro. Esse é um pouco o contexto que as eleições nos trazem para refletir.

Transcendendo Bolsonaro

É claro que o Bolsonaro continua sendo a principal liderança e tende a continuar sendo uma grande liderança nesse campo, no médio prazo pelo menos, talvez no longo prazo. A questão é o quanto que isso significa que ele é “dono” da extrema-direita. Cada vez menos isso é verdade e cada vez mais percebemos que a extrema-direita é um campo maior do que ele e que, significa, ela pode e tende continuar nesse caminho mesmo que ele saia de cena. Existe uma demanda eleitoral colocada aí e por isso que o transcende.

IHU – Pablo Marçal representa uma ameaça à hegemonia do bolsonarismo?

Pedro Telles – O Marçal representa uma ameaça ao Bolsonarismo menos enquanto indivíduo e mais enquanto símbolo. É muito difícil falar que qualquer ator específico vai conseguir se tornar maior do que o Bolsonaro em um futuro previsível da política brasileira ou vai derrotar o Bolsonaro em absoluto. Mas ele mostra que é, sim, possível que lideranças que não estão amarradas ao Bolsonaro não devem nada a ele.

Assim como surgiu o Marçal, podem surgir mais, podemos ter cinco, seis, sete, oito, nove ou dez figuras como o Marçal emergindo nos próximos anos no Brasil. Em seu conjunto fragilizam ainda mais o lugar do Bolsonaro como liderança desse campo e também tem um cenário em que uma figura individual chega nesse lugar, mas é menos interessante olhar para o Marçal como o Marçal em si e sobre ele destronando o Bolsonaro no futuro etc., e mais olhar como esse campo está em disputa por muitos atores e como na sua soma desses diversos atores, de outros que estão emergindo e que podem emergir, quanto que pode se fragmentar ainda mais esse campo político. É impossível dizer exatamente o que vai acontecer.

IHU – O que significa dizer, tal como em seu artigo no Intercept, que Pablo Marçal pode ser a morte do bolsonarismo?

Pedro Telles – A ideia de que Marçal pode ser a morte do Bolsonarismo, que eu escrevi no artigo, tem menos a ver com uma morte absoluta ou desaparecimento do Bolsonarismo, e muito mais com uma morte do bolsonarismo como o definimos e como o vemos até recentemente. Isso se conecta com o que respondi anteriormente, hoje eu acho muito difícil continuar definindo como “bolsonarismo” o movimento político que o elegeu. Não me parece que o Bolsonaro é dono desse movimento ou seja ele o organizador do fenômeno como um movimento. Também é muito difícil continuar chamando de bolsonarismo a ideologia promovida por Bolsonaro, pois é uma ideologia da qual ele efetivamente não é “dono”, inclusive sequer se mantenha como o principal ator capaz de pautar essa ideologia e promovê-la, não da forma hegemônica como já fez.

Enquanto projeto político continuará existindo o bolsonarismo, eleitores e grandes apoiadores fiéis a ele vão continuar existindo, o que não quer dizer que ser fiel a ele é fiel inclusive para apoiar quem ele apoia. Sabemos que hoje existe um grupo de eleitores grande que continua fiel ao Bolsonaro, mas que para outros cargos vota em nomes que ele não apoiou, como é o caso do Marçal. Ainda que alguma dimensão dele possa continuar existindo, é nesse sentido, não de uma morte absoluta, mas de uma morte como até hoje ouvimos e tratamos na política brasileira, inclusive como ele mesmo construiu estratégia e como outros atores constituíram estratégias ao redor.

IHU – O próprio Jair Bolsonaro fez em suas redes sociais e falas, no início da campanha à prefeitura de São Paulo, uma série de acenos indiretos – nem tão discretos assim – a Marçal. Não estaria aí a possibilidade de uma refundação, ainda mais radical, do bolsonarismo?

Pedro Telles – O Bolsonaro fez tanto acenos no sentido de aproximação ao Marçal, quanto movimentos de ataque, ele e os filhos dele muitas vezes também falando em nome da família. Ele teve uma postura bastante errante em relação ao Marçal, o que indica uma dificuldade do Bolsonaro e da família de lidar com esse fenômeno. Como reagir a uma figura, que na maior cidade do país, está no seu campo, disputa os votos, cresce muito rápido e não está respondendo. O certo é tentar derrubar essa figura antes que ela fique grande demais? Parece que ele tentou fazer isso e não conseguiu. Tenta se aproximar dela para não rachar esses votos e ter alguém que de uma forma os leve mais ainda e que tire de vez esses votos, ao invés de complementar localmente você segue como figura relevante nacional? É uma escolha difícil e ao que indica o Bolsonaro não foi capaz de fazer essa escolha com assertividade com relação ao Marçal e ao [Ricardo] Nunes. Quem que cresce politicamente nesse sentido em São Paulo é muito mais o Tarcísio [de Freitas] que fez uma escolha muito consistente em favor do Nunes, que tem essa figura eleita.

Acima de tudo, o Bolsonaro foi errante nessa trajetória. Não sei se existe uma clareza de estratégia do Bolsonaro no sentido de uma refundação mais radical do Bolsonarismo. Agora, que existe a possibilidade de emergência e de crescimento de outras figuras radicais, sem dúvida existe. O Bolsonaro, ao longo do seu governo, foi se aproximando em termos de acordo e construções conjuntas do Centrão, na prática, o discurso mais radical dele de ser antissistêmico e tudo mais, fomos vendo, com o passar do governo dele, que ele cada vez mais se imbricou dentro do sistema – ele que já era uma figura do sistema. O Marçal é muito mais outsider e alguém de fora do sistema que o Bolsonaro. Então, sem dúvida, o espaço para uma extrema-direita ainda mais radicalizada existe, mas quanto que o Bolsonaro está construindo isso e colocando de pé ativamente, é difícil dizer a partir do que temos de evidências nessa eleição.

IHU – Desde a derrota de Bolsonaro em âmbito nacional e a vitória de Tarcísio de Freitas em São Paulo, a mídia passou a ver em Tarcísio uma espécie de bolsonarismo moderado, inclusive tecendo elogios a políticas liberais adotadas pelo governador do Estado. A pergunta, diante disso, é: existe bolsonarismo moderado?

Pedro Telles – A ideia de que pode existir um bolsonarismo moderado é uma contradição em termos. O bolsonarismo é uma forma de extremismo. Desde que esse termo passou a ser usado para descrever esse fenômeno que surge junto com o crescimento do Bolsonaro e a eleição dele para presidência, é muito evidente que esse termo é usado para definir uma forma de extremismo usado por Bolsonaro. Não existe a possibilidade de um extremismo moderado, são dois conceitos incompatíveis.

Retórica moderada

Isso não quer dizer que um político extremista não possa ter um discurso, uma retórica e uma estética que pareça mais moderada com o objetivo de atrair atores e eleitores que também se veem como mais moderados para apoiá-los. E há políticos que são bastante hábeis em fazer isso, em ter uma prática extremista e promover políticas extremistas, mas ter uma retórica e uma estética que soa mais moderada, para ascender ao poder e se manter no poder. Contudo, seguem sendo, efetivamente, extremistas. Com muita frequência, se não sempre, usam essa retórica moderada muito conscientemente, com muita estratégia, para poder seguir avançando nas suas práticas extremistas.

Inclusive, geralmente políticos que são extremistas não adotam posturas e propostas extremistas em todas as dimensões da sua atuação. Com muita frequência tem algumas parcelas das propostas e ideias que eles promovem, que isoladamente não são extremistas, o que também tem um apelo para um cidadão que está preocupado com ter um voto associado com o despropósito daquela figura que se relacionam e dialogam sem a ausência de limites. Isso está a serviço e faz parte de um projeto que é extremista e que no seu cerne se propõe a implantação de políticas antidemocráticas, antidireitos humanos e antigarantias fundamentais e assim por diante.

IHU – Que afetos são mobilizados pela extrema direita que torna tão sedutor seu discurso para uma parcela não desprezível da população?

Pedro Telles – O mais importante aqui é entender que atores de extrema-direita crescem, menos por uma capacidade de acessar um conjunto específico de afetos que dialoga com a população como um todo ou como uma grande fatia dela de forma uníssona por assim dizer, e mais por entender uma boa parte da força desses atores tem a ver com a capacidade de dialogar com diversos segmentos da população, que tem angústias, necessidades e desejos que também são diferentes. É o conjunto desses grupos e a capacidade de falar com eles que traz a força.

Por exemplo, Bolsonaro se elege, por um lado, se alavancando muito em cima de uma retórica anticorrupção, muitas vezes enganosa – no caso Bolsonaro isso já tem muita evidência –, absolutamente contraditória e incoerente com o que ele mesmo fez, mas que não foi ele quem criou. Mas ele se alavanca em cima disso e fala com uma parte da população. Ele fala com uma outra parte da população apelando para pautas de costumes a partir de um olhar de valores de conservadores. Ele olha parte outra da população dialogando sobre os problemas econômicos que o país tinha quando ele é eleito e com propostas que tinham mais a ver com angústias em relação à economia e políticas socais.

Incapacidade Bolsonarista

E, o que leva o Bolsonaro a perder depois de um tempo, é justamente a incapacidade dele de entregar mudanças nessas agendas. Lula se reelege de volta, muito recuperando as propostas econômicas e sociais onde ele teve um desempenho melhor do que o Bolsonaro historicamente. O Bolsonaro perde muito apoio em função dos escândalos de corrupção do governo dele.

O importante aqui é entender que se tentarmos sintetizar o fenômeno da extrema-direita a um conjunto específico de valores que supostamente atraem a população como um todo, a dinâmica não é essa. A dinâmica está em entender diferentes segmentos da população e conseguir dialogar bem com eles, que juntos formam a grande maioria que permite a eleição. E na facilidade da extrema-direita de ter um entendimento com esses públicos, de conseguir falar com eles de formas e plataformas diferentes, no Brasil e no mundo, aí que está o cerne da questão.

IHU – De que forma é possível enfrentar a ideologia da extrema direita no Brasil, cuja plasticidade é capaz de produzir, a cada eleição, um facínora ainda pior que o anterior?

Pedro Telles – Essa é uma pergunta muito grande e que muita gente está tentando responder no Brasil e no mundo. Eu não me proponho a dar uma resposta exaustiva ou conclusivo, mas tem algumas pistas que podemos e devemos seguir.

A primeira pista é a forma como Bolsonaro foi derrotado aqui no Brasil. Um elemento central para isso foi a construção de uma frente ampla democrática, onde atores de campos políticos diferentes, historicamente adversários, se juntaram em defesa do sistema democrático e em oposição ao ator claramente antidemocrático. Esses atores se juntaram e, inclusive, abriram mão de alguns interesses individuais, pessoais e algumas prioridades políticas e ideológicas em nome de juntos enfrentarem esse ator que era uma ameaça maior. Isso não aconteceu só no Brasil. Essa questão de uma união, bastante pragmática inclusive, vimos acontecer esse ano com algum sucesso, por exemplo, na França e em algumas partes do mundo. Esse é um dos elementos.

Processo de escuta

Tem um segundo elemento que tem a ver com os atores que estão buscando defender a democracia e derrotar os extremistas irem escutar as pessoas, os cidadãos e construírem propostas, políticas e campanhas eleitorais mais baseadas em dados do que em palpites, por mais que sejam palpites bem-informados, e também baseadas em experiência política que se formou ao longo do último par de décadas, mas que em grande parte a dinâmica mudou recentemente.

Um dos grandes ideólogos da campanha bem-sucedida do Brexit, da saída da Inglaterra da União Europeia, dizia que se pedissem um orçamento para contratar uma equipe, ele preferia muito mais contratar cientistas de dados do que uma equipe de cientistas políticos. A visão dele é que cientistas políticos e outros atores tradicionais da política e do marketing político com muita frequência se baseiam mais em palpites pessoais e em um suposto entendimento que se tem individualmente com essa dinâmica política e com relação ao eleitorado. Por outro lado, cientistas de dados se baseiam em números e não em palpites e, com frequência, acertam muito mais em função disso. Portanto, devemos escutar mais e melhor as angústias, anseios, desejos e necessidades dos cidadãos.

Regra do jogo

Tem uma terceira dimensão que é da “regra do jogo” e das instituições que preservam essas regras e fortaleçam esses aspectos. É muito evidente a relevância que a Internet, e as redes sociais em específico, têm hoje em dinâmicas políticas, não só em eleições. E, é muito evidente também, como há inúmeros abusos: uma parte deles já ilegal, mas não coibido, outra parte não ilegal, mas só porque a lei ainda não está atualizada para lidar com os novos desafios. Então, tem uma questão de regulação de Big Techs que é muito central e vou além, como podemos fortalecer os mecanismos da justiça eleitoral para lidar com essas dinâmicas em seu novo tempo e assim por diante.

IHU – Em um contexto marcado por profundas desigualdades e um sempre presente ressentimento por parte dos excluídos, como derrotar o projeto político da extrema direita que promete a redenção por meio do esforço individual?

Pedro Telles – Aqui tem uma questão bastante central da gente olhar, que é a capacidade da democracia entregar para as pessoas melhoras de vida. É muito comum quando debatemos extrema-direita ficarmos concentrados no período eleitoral, mas o período eleitoral é pontual, é um elemento do sistema democrático e, em muitos sentidos, ele é o ponto final de processos políticos. É o ponto onde o povo decide a partir do que aconteceu nos anos anteriores, a partir do contexto político do país e contexto econômico oficial. Concretamente, olhando para o Brasil e para o mundo mais amplamente, vemos desigualdades crescendo, direitos trabalhistas diminuindo, problemas ambientais impactando cada vez mais diretamente a população.

Em um contexto em que as políticas públicas não estão entregando adequadamente, não estão oferecendo uma perspectiva de futuro e melhoria de vida às pessoas, é mais fácil prosperar um discurso onde é cada um por si, onde cada um tem que garantir o seu e se defender, que inclusive é uma lógica que só tende a piorar a dinâmica coletiva. Mas tem o seu apelo em uma situação em que as pessoas estão percebendo que por meio do poder público e a coletividade do Estado, acima de tudo, não tem uma perspectiva de melhoria concreta. Tem um olhar importante de comunicação e estratégia política eleitoral que é super relevante na pergunta que você faz, mas, mais a fundo tem uma questão de como fortalecer a capacidade da democracia e das instituições públicas de entregar para as pessoas melhorias de vida mais relevantes e concretas.

IHU – É possível pensar, no Brasil de hoje, a construção de uma direita civilizada, com projetos políticos capazes de respeitar preceitos civilizatórios?

Pedro Telles – Não é só possível pensar no Brasil de hoje a construção de candidaturas de direitas democráticas, como é necessário. Precisamos, no campo conservador, ter alternativas a todos os extremistas e ter alternativas com capacidade de se eleger. Claro que é um cenário muito desafiador para essa direita, porque os principais líderes do campo da direita hoje são extremistas, então, tem que enfrentar de partida essas figuras, porém se debruçar sobre o desafio.

Assim como a esquerda também tem a necessidade de se debruçar sobre o desafio de renovar seus quadros e renovar suas ideias para que elas dialoguem melhor com ao atual contexto e que não passem o sufoco de saber se vão conseguir ou não se eleger contra extremistas. Certamente é uma possibilidade, por mais difícil do que seja. E, mais do que isso, é imperativo que atores de direita comprometidos com a democracia busquem mostrar e abrir espaço para candidaturas que são conservadoras e de direita, contudo, que respeitam o sistema democrático.

Quando olhamos para a dinâmica nacional, para a disputa da Presidência ou de prefeituras em umas grandes capitais, o debate às vezes fica um pouco binário, que é a disputa entre Bolsonaro e alguém indicado por ele ou do campo dele versus Lula ou alguém apoiado por ele diretamente ou de mais visibilidade. Agora, quando olhamos para uma dimensão subnacional – governadores, municípios e legislativo – tem muito mais nuances. Essa fragmentação inclusive do campo da extrema-direita com o Bolsonaro perdendo sua hegemonia, que conservamos antes, possibilita mais espaço para o surgimento de propostas, ideias e nomes que estão no campo de uma direita democrática – isso também é necessário. A disputa presidencial e nas grandes cidades são muito relevantes e, inclusive, a atenção midiática recebida por elas é muito maior, mas é crucial que se perceba a disputa nas cidades menores e nos cargos legislativos, que são lugares onde o espaço tende a ser maior para novos nomes, propostas e ideias e para um enfrentamento à extrema-direita em uma outra configuração. É bem importante olhar para isso.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Pedro Telles – Um ponto que eu acrescento tem a ver com a necessidade de sairmos da defensiva. Em um contexto de ataques à democracia é natural que atores democráticos adotem uma postura de defender o sistema democrático, de estar respondendo a ataques. Mas precisamos também construir horizontes e formas de pautar os debates com nossas propostas, políticas e assim por diante.

Tem uma dimensão importante nessa discussão toda que é quem pauta o debate? Quem dá os termos do debate? E vamos vendo no Brasil, nos últimos anos, um debate muito pautado pela extrema-direita, estamos basicamente jogando no campo do adversário, ainda que defendendo algumas ideias e com alguma frequência ainda ganhando, não só perdendo. Apesar do cenário como um todo ainda de ser de mais perdas do que ganhos, nos últimos anos houve ganhos muito importantes, quem está pautando ainda é, majoritariamente, um campo de extrema-direita. Nesse ponto tem uma questão que é a de construir propostas, comunicação, fatos e entregas que nos permitam pautar. É muito importante olharmos para isso: sair de um lugar só de defensiva e ir para um lugar de defensiva e de proposição.

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