“Continuamos na mesma sociedade escravocrata de antes com roupagens mais modernas.” Entrevista especial com Jessé de Souza

Sociólogo analisa a ideologia escravocrata no Brasil e discute, a partir de um embate teórico com a herança portuguesa de corrupção, como isso ainda molda o pensamento do brasileiro até hoje

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: Edição: André Cardoso | 23 Agosto 2024

Engana-se quem pensa que a escravidão no Brasil teve seu fim em 1888 com a assinatura da Lei Áurea feita pela princesa Isabel. As raízes do nosso país seguem atreladas à mentalidade escravocrata, seja nas relações de trabalho, seja na condenação do povo negro e mestiço ou nas relações pessoais. É a partir dessa herança que o sociólogo Jessé de Souza busca discutir como esse fato moldou e ainda molda a sociedade brasileira.

Na videoconferência intitulada Desafios da sociedade e da cultura atual à missão evangelizadora da Igreja hoje, promovida pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, o sociólogo comenta que a atitude escravocrata e, consequentemente, racista segue dando as cartas na elite brasileira como forma de legitimar a dominação social e política. “Toda vez que se tentou redimir os pobres nesse país, a elite e a classe média branca saiu histérica, gritando contra a corrupção, mas no fundo não tem nada a ver com isso. É para manter o povo negro no seu lugar, sem direitos, andando de bicicleta por 14 horas para entregar a pizza quentinha na casa do burguês”, pontua.

Segundo ele, é preciso entender que o legado da corrupção, ideia provida por intelectuais como Sérgio Buarque e usada pela elite nacional para reprimir os impactos da escravidão na sociedade, é secundário em relação ao racismo enraizado até hoje em todos os brasileiros. “Essa herança vai ser interpretada como ‘o povo brasileiro é corrupto e, portanto, eleitor de corruptos’. A elite de São Paulo se via como americana e a classe média branca como europeia pela origem. Então o inconfiável, o eleitor de corrupto vai ser o negro e o mestiço que antes eram vítimas de preconceito racial, mas agora são vítimas do preconceito cultural. Ninguém mais fala em raça, é ciência”, afirma.

A atividade integra o 3º Congresso Brasileiro de Teologia Pastoral: A pastoral da Igreja do Brasil no século XXI: balanço, incidências, perspectivas, iniciativa do Grupo de Pesquisa Teologia Pastoral, da FAJE, em parceria com outras instituições de ensino de Teologia.

A seguir, publicamos a conferência de Jessé de Souza no formato de entrevista.

Jessé de Souza

Jessé de Souza é formado em Direito pela Universidade de Brasília (1981), mestre em Sociologia pela mesma instituição (1986), doutor em Sociologia pela Karl Ruprecht Universität Heidelberg, Alemanha (1991), pós-doutor em filosofia e psicanálise na New School for Social Research de Nova York (1994-1995) e livre docente em sociologia pela Universität Flensburg, também na Alemanha (2006). Realizou diversos estágios pós-doutorais e foi professor visitante da Universität Bremen, Alemanha (1999-2000). Como autor e organizador, escreveu 27 livros além de mais de 100 artigos e capítulos de livros em diversas línguas, sobre teoria social, pensamento social brasileiro e estudos teóricos/empíricos sobre desigualdade e classes sociais no Brasil contemporâneo. É professor titular da Universidade Federal do ABC – UFABC.

Confira a entrevista.

IHU – Como se relacionam os conceitos de autocrítica e aprendizado? Houve autocrítica na sociedade brasileira?

Jessé de Souza – Existe algo que é válido tanto para indivíduos como para a sociedade. A nossa origem vai ser definidora a não ser que nós aprendamos a nos autocriticar, seja no âmbito individual, seja no âmbito social. Só há aprendizado enquanto há autocrítica; não existe nenhum outro modo para que isso aconteça.

Nossa sociedade fez muito poucas vezes uma autocrítica. Nós continuamos na mesma sociedade escravocrata de antes com roupagens mais modernas, fingindo uma coisa que não se é: democrática, representativa. É um grande circo armado, um teatro que esconde uma sociedade perversa e doente. Uma sociedade que elege o Bolsonaro é uma sociedade doente. Uma pessoa para votar em Bolsonaro tem sérios problemas ou vulnerabilidades.

Eu dei o título de “A sombra da escravidão” para este tema. Podemos reverter essa situação de um ponto de vista cristão que, para mim, é sempre pela igualdade entre os seres humanos e a defesa da sua dignidade. Foi o cristianismo quem primeiro defendeu o universalismo e é exatamente isso que a gente sofre. Quero discutir as razões históricas, sociais e políticas para que isso tenha acontecido.

IHU – Como a escravidão moldou a sociedade brasileira?

Jessé de Souza – É claro que as pessoas sabem que a escravidão foi importante, mas a escravidão foi reprimida pela elite, pelo pensamento, pelo cinema, pelo teatro, pela indústria cultural. Ela foi reprimida em favor de uma concepção que dizia que éramos filhos de Portugal, onde não havia escravidão, e aí ela passa a ser uma efeméride, uma coisa secundária em relação à herança portuguesa da corrupção, essa mentira que, infelizmente, 207 milhões de pessoas acreditam nisso.

Vamos desconstruir essa mentira aqui e reafirmar uma interpretação latente que jamais se tornou manifesta entre nós, mostrando que até mesmo a legado da corrupção tem a ver com a moralização do racismo. A escravidão no Brasil começa em 1532 com a instauração das primeiras fazendas de cana-de-açúcar com mão de obra escrava. Ela dura até 1888 e abrange o país inteiro. A herança escravocrata é a herança nacional mais importante.

O que significa escravizar o outro? É reforçar a vulnerabilidade desta pessoa para que ela não tenha defesa em relação à sua tirania. Por exemplo, quando as donas de casa ficaram com raiva da Dilma por ela querer dar uma carteira de trabalho para as domésticas, houve um escândalo geral de pessoas falando: “Não vai ter mais nenhuma empregada”. Ou seja, a classe das empregadas domésticas é exatamente a mesma escravidão que havia antes. Essa pessoa precisa continuar, 500 anos depois, sem direito nenhum. Ela precisa ser frágil e vulnerável. É isso que chamo de escravidão. Nossos olhos não foram treinados para isso, inclusive os olhos dos intelectuais. Não existe nenhuma definição uníssona sobre o assunto, estamos no senso comum, usando nomes. O conceito é outra coisa, é científico, ele reconstrói a realidade em pensamento a partir de seus elementos hierarquicamente importantes.

Querer compreender a sociedade inteira é a minha ambição. Se você souber o que é o principal, todo o resto vão ser secundário. Outro ponto é como se constroem as classes sociais e as relações entre elas. Vou defender a continuidade da escravidão e não da relação com Portugal. Isso é secundário em relação à escravidão. É a leitura que todos os grandes intérpretes fizeram da singularidade do Brasil e eu sempre critiquei isso.

A escravidão continua até hoje porque a forma de legitimação da dominação social e política reproduz o mesmo esquema da escravidão, e a construção das classes sociais é montada para reproduzir a mesma situação da escravidão há 500 anos. Além de estimular a vulnerabilidade do oprimido e explorar o trabalho, a escravidão produz o gosto pela humilhação do vulnerável. Isso é definidor da herança escravocrata entre nós: o prazer de humilhar, de dar o esporro na empregada, no entregador etc. isso continua presente.

A escravidão termina, formalmente, em 1888 e logo em 1889 temos a Proclamação da República. É a República do faz de conta, no máximo 2% da população votava. Mesmo assim, com essa quantidade baixa de pessoas votando a eleição era fraudada a bico de pena. Esse é o mundo desta elite, reproduzindo a escravidão na forma da legislação, dizendo que as pessoas trabalhadoras não têm nada a dizer e não podem participar do processo eletivo. Só o rico que manda, que fala. Isso contribuía para um ambiente de racismo aberto como acontece nos Estados Unidos, no sul do país com a Ku Klux Klan. Aqui era um ambiente semelhante, com anúncios no Diário de Pernambuco procurando empregada negra que não estivesse esquecido de cumprir a iniciação sexual com todos os homens da casa. Isso era naturalizado, ninguém se chocava com isso.

IHU – Qual foi a importância do governo de Getúlio Vargas para a luta antirracista?

Jessé de Souza – O racismo atual é insidioso, ruim, precisa ser criticado obviamente, mas foi uma conquista histórica de Getúlio Vargas. Essa República do faz de conta foi retirada do poder em 1930 na única revolução que tivemos, apesar de ter sido feita pelas elites subalternas contra a elite de São Paulo.

Getúlio instaura um programa da indústria brasileira: a construção do setor de bens de produção, siderúrgica, petróleo, cimento. Ou seja, a parte da indústria que vai criar outras indústrias. Além disso, ele modernizou o Estado brasileiro com a criação de agências importantes. Mas ele também fez a única revolução cultural que esse país já teve. Getúlio encarnou um antielitismo, um antirracismo que não havia existido antes. Seu governo foi a primeira inflexão histórica de contraposição a essa elite escravocrata que comandava o Brasil até 1930.

De que modo ele fez isso? Primeiro, atacou o racismo. Usou a ideia de bom mestiço, de Gilberto Freyre, que cabia como uma luva em seu projeto de inclusão social da população. Ele atingiu isso, inicialmente, ao celebrar a nossa herança africana e não escondendo-a. A partir de Getúlio, vamos ter o samba, o futebol como praticado pelos negros, a música, a arte... a identidade nacional vai ser construída a partir dos setores populares e isso permanece até hoje. Se você diz que o negro e o mestiço são um lixo, como você vai usar essa pessoa se o conhecimento social é a base de tudo? O racismo dizia, antes, que o negro é primitivo, animalesco, e o branco era inteligente. Todos acreditavam nisso em 1930, inclusive os antirracistas como, por exemplo, Joaquim Nabuco, um homem que fez uma defesa monumental e atual contra a escravidão, mas que acreditava na inferioridade do negro. Com Getúlio acontece a primeira inflexão disso ao celebrar a herança africana como importante.

Getúlio sanciona uma lei que faz as empresas obrigatoriamente empregar 2/3 de pessoas nascidas no Brasil. No contexto dessa época, os europeus brancos ficavam com todos os bons empregos e, a partir de então, as coisas mudaram. Ele vai montar uma democracia antirracial? Obviamente não. Para extirpar o racismo das pessoas, é preciso 50, 100 anos e bater nisso todos os dias. Porque o racismo é a forma como o leigo percebe o mundo. A leitura mais simples é a racial. Para afastar isso, que está em cada um de nós, é preciso ter controle e vigilância eterna. Isso mostra como o racismo está incorporado em nossas células, na nossa pele, na nossa mente.

Apesar de não ter construído uma democracia racial, Getúlio construiu o racismo cordial brasileiro. A partir dele é possível compreender como é o racismo e a forma como escravidão continua até hoje. Ele proíbe culturalmente o racismo explícito na esfera pública. Os brasileiros vão continuar racistas, mas não podem mais dizer que são, não é mais razoável dizer isso a partir desta afirmação do componente negro africano na nossa sociedade. É dessa forma, mostrando sua importância, que você afirma grupos oprimidos.

Elite brasileira

A elite de São Paulo, que manda e decide em tudo, é uma elite de ladrões. O que a elite brasileira faz é roubar. A elite rural é de ladrões e assassinos desde o ano zero. Eu entrevistei famílias do Norte do Paraná que foram expulsas nos anos 1970 com revólver na cabeça. É uma elite montada por ladrões de terras e assassinos de posseiros e índios. Esse é o nosso agro pop. Nos falta uma elite industrial que nunca se construiu, por mais que Getúlio tenha trabalhado neste sentido. Ela seria importante porque é mais racional: precisa vender e revender seus produtos e precisa de gente para comprar. Foi o que [Henry] Ford fez nos Estados Unidos ao explorar os trabalhadores, mas entregar uma remuneração adequada para o trabalhador comprar o seu carro e movimentar o mercado. Em países com uma forte fração industrial como a Alemanha e o Japão, isso se mostra importante porque ela fica com uma parte melhor do bolo, mas ela constrói o bolo. Nós nunca tivemos essa elite.

Nossa elite não produz um carro, um parafuso. O grande negócio, tanto da elite rural quanto da elite financeira, é assaltar o Estado. Por conta disso, o Estado é tão importante para essa elite. Ela coloniza o orçamento público: ele não vai para saúde e educação, vai para uma dívida pública que ninguém auditou. Getúlio auditou e conseguiu dinheiro para construir a Petrobras. Quem estuda a dívida pública nacional diz que 90% é fraude. É dívida privada transformada debaixo dos panos em dívida pública. Ninguém fala disso porque eles são donos das televisões, dos jornais. Isso nunca vai sair na mídia.

É a elite do saque e é por conta disso que ela quer controlar o Lira, o Banco Central. E isso mostra justamente a continuação da escravidão porque é o saque de curto prazo. “Deixa eu roubar agora, deixa eu botar no bolso agora, deixa eu botar o juro a 10% apesar da inflação estar baixa.” Explora através de juros, tudo que compramos tem juros embutidos e vai para o bolso dessa meia dúzia por trás dos bancos. O país inteiro é assaltado e fica pobre.

IHU – Após os avanços de Getúlio, houve alguma retaliação desta elite? A intelectualidade da época ajudou a criar uma roupagem do racismo?

Jessé de Souza – A elite conseguiu em 1936 fazer com que intelectuais montassem um novo racismo sem usar a palavra raça, de tal modo a moralizar esse saque que a elite faz e entrando em aliança com a classe média branca que, entre nós, não chega 20%. Esses 20% vão dominar a sociedade em nome da elite (advogado, administrador, CEO de banco) por títulos acadêmicos. E essa classe quer o quê? Monopolizar o conhecimento e o capital cultural legítimo – as boas universidades, as línguas estrangeiras – e o povo não pode ir junto. O golpe de 2016 aconteceu não por conta de corrupção da Dilma, mas porque começou a ter negro ao lado dessa gente na universidade.

Isso foi inventado por Sérgio Buarque e será a forma como o país vai se entender. Ele vai construir essa história de uma herança de Portugal, da corrupção. Falar de corrupção na Idade Média é uma bobagem porque não se tinha nem a noção de bem público, muito menos noção moderna de corrupção, que foi inventada como ideia na Revolução Francesa. É uma fraude científica completa. Essa herança vai ser interpretada como “o povo brasileiro é corrupto e, portanto, eleitor de corruptos”. Você cria uma cultura de golpes de Estado. Apesar de Sérgio Buarque ter pensado no povo brasileiro como um todo, a elite de São Paulo se via como americana e a classe média branca como europeia pela origem. Ela nunca se sentiu irmanada por esse povinho negro e mestiço. Então o inconfiável, o eleitor de corrupto vai ser o negro e o mestiço que antes eram vítimas de um preconceito racial, mas agora são vítimas do preconceito cultural. Ninguém mais fala em raça, é ciência.

Essa ideia vai ser bombardeada em todos os jornais, em todas as mídias até hoje, por toda a indústria cultural imbecilizando o povo. É isto que acontece. Nós somos tão inteligentes como qualquer outro, mas você pode imbecilizar o povo. Como? Falar uma única mensagem o tempo inteiro durante cem anos. Essa pessoa não vai ter como refletir. Essa ideia da corrupção não tem fio nem pavio e é a grande questão nacional. É a questão que faz com que todas as vezes, quando um líder popular ascende ao poder de Estado, tem uma gritaria geral da imprensa, parte da elite, para retirar essa pessoa do Estado como aconteceu com Getúlio, Jango, Lula e Dilma.

Só líderes populares foram vítimas de golpe de Estado. Isso não é um acaso e sempre a questão da corrupção é determinante. Nunca foi provado nada contra Getúlio, contra Lula e menos ainda contra Dilma, mas produziu-se uma grande mentira que vem sendo reproduzida a cem anos. Isso é feito para que a elite consiga se apossar do Estado e roubar. Quando Dilma tentou diminuir a taxa de juros e aumentar o salário mínimo, foi por esses motivos que aconteceu o golpe de 2016. A elite se uniu para derrubar a presidenta com a corrupção como pretexto. O que Moro fez foi exatamente o que Carlos Lacerda fez com Getúlio em 1954.

IHU – Essa reafirmação do racismo pelo caminho moral e cultural acaba causando quais males para o povo negro e mestiço?

Jessé de Souza – Nós temos uma história da repetição. Criminaliza o povo quando você diz que ele é inconfiável e corrupto, porque a dimensão moral é a mais importante do ser humano. Essa censura moral foi transformada em um dispositivo de poder para controlar o sufrágio universal. Você tem que criminalizar o voto das pessoas negras, mestiças e pobres. Esta é a grande ideia que a elite inventou para combater a ideia de um país inclusivo, pujante, industrial que Getúlio tentou e que Lula continuou em parte.

Para que entendamos como a sociedade funciona, precisamos saber como ela é legitimada. Todas as sociedades são injustas, algumas são mais do que outras. Aí você tem a legitimação das condições injustas que precisam inferiorizar o oprimido, fazê-lo acreditar que ele é menos. Você diz que ele é inconfiável, e amalgamar o negro e o bandido é o passo prefigurado depois disso. É dessa forma que você faz com o que o voto não valha e a participação popular seja impossível. Foi isso que a elite descobriu com a ajuda dos considerados maiores intelectuais desse país até hoje.

A universidade, o cinema e a indústria cultural ainda percebem esse país deste jeito. Eu queria fazer essa denúncia porque este ponto é importante para quem quer estar emanado na tarefa de ressignificar um povo tão humilhado e sofrido como o nosso. A legitimação vai ser a mesma de antes: racial. O negro é inferior e só obedece. Depois de 1936, é do mesmo jeito que antes, só que agora você não usa mais a palavra raça, mas criminaliza o voto, a política e o Estado. O Estado, única instituição que pode se contrapor aos desmandos do mercado, é capturado na medida em que ele é fragilizado e criminalizado com lócus da corrupção.

Esse mecanismo de falar da corrupção invisibiliza o roubo real. O maior dispositivo de poder é invisibilizar quem está mandando e quem está fazendo. A culpa é do outro. Criminaliza o Estado, deixa-o frágil, e os donos do mercado podem se apossar dele. Esse é o esquema de dominação posto entre nós.

As classes se reproduzem, ou seja, existe um bloco antipopular feito pela elite de proprietários e a classe média branca. Um fica com o poder de Estado e o dinheiro para roubar todo mundo. E a classe média branca fica com os bons empregos, com reconhecimento, com uma vida próxima do europeu e do norte-americano de classe média. Os outros 80% são pobres, remediadamente ou muito pobres, com menos de dois salários mínimos. E essa classe mais baixa, quase completamente negra e mestiça, foi montada para ser vulnerável. São famílias desajustadas pela perseguição, não por culpa delas.

Toda vez que se tentou redimir os pobres neste país, a elite e a classe média branca saiu, histérica, gritando contra a corrupção, exceto que no fundo não tem nada a ver com isso. É para manter o povo negro no seu lugar, sem direitos, andando de bicicleta por 14 horas para entregar a pizza quentinha na casa do burguês.

Não só a família é desestruturada, mas a escola é precária. É para que elas saiam como analfabetas funcionais. Eu fiz um livro, entrevistei muitos desses pobres e eles se acham culpados. É para isso que ela serve: culpar a vítima. No mundo moderno, se você não incorpora conhecimento, você é lixo. Você é músculo, pele, osso. É um animal, é um cavalo e é um escravo. Essas pessoas eram exatamente isto: reduzidas ao seu corpo, à energia muscular. É assim que essa classe de abandonados e humilhados, que representa 40% da nossa população, vive.

***

Ao final da conferência, os participantes puderam fazer perguntas ao palestrante. Reproduzimos a seguir um trecho do debate: 

Rita de Blasiis – Como a naturalização de um ódio dessa magnitude foi possível entre nós?

Jessé de Souza – Antes de tudo, foi pela imprensa privada. Ela faz a cabeça das pessoas, elas não têm como ter uma ideia própria. Como nós refletimos? Ouvindo opiniões discordantes. Você ouve algo, gosta de um ponto, mas discorda de outro. Ouve outra ideia oposta e faz o mesmo processo. Se não temos uma imprensa plural, teremos a ditadura de uma só ideia. Isso só acontece em países autoritários como a Coreia do Norte. Mas esse autoritarismo pode ser produzido pelo mercado. Basta que cinco famílias ricas tenham toda a mídia relevante em um país. Ou seja, ela vai mentir o tempo todo.

Basicamente, o esquema de poder entre nós se configura com a elite roubando e a imprensa mentindo. A imprensa constrói uma realidade virtual para as pessoas. Isso é uma violência simbólica extremamente importante porque você retira a capacidade de reflexão, que é tudo que nós temos como seres humanos. Qualquer coisa que quisermos fazer vamos precisar refletir e, ao retirar o ambiente da reflexão, cria-se um povo passivo, mesquinho. Sem televisão pública, sem outros meios.

Isso também acontece porque a nossa educação é precária. Essas duas forças criam uma realidade paralela nas pessoas.

Denilson Mariano – Quais as principais forças de resistência a essa ideologia escravocrata dominante no Brasil?

Jessé de Souza – Nós tivemos algumas forças de resistência. Getúlio Vargas, Lula e o PT, o MST, a Teologia da Libertação que, mesmo eu não sendo religioso, admiro muito. Nas entrevistas que fiz no Nordeste, todas as pessoas que tinham alguma forma de resistência eram formadas na Teologia da Libertação.

Hoje temos o contrário disso, especialmente com as igrejas evangélicas e com o neopentecostalismo que, no fundo é a reprodução da religião africana usando, superficialmente, o prestígio do cristianismo. Nós temos a negação de todo o impacto social e político montado em uma guerra entre Deus e o Diabo, o descarrego e os espíritos. Essa é a nossa Teologia da Libertação. E isso precisa ser combatido, é um absurdo. Isso desempodera, emburrece, imbeciliza. É um desafio enorme porque essas pessoas estão se constituindo em grupos econômicos, partidos políticos.

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