“Costumamos dizer que as fontes renováveis são preferíveis aos combustíveis fósseis, mas precisamos entender seus impactos ambientais”, destaca o químico e ativista socioambiental
“A tese fundamental que quero compartilhar é que a normalidade acabou; o que temos pela frente é um cenário radicalmente distinto do presente e do passado recente. Estamos vivendo o colapso da nossa civilização, com uma transformação profunda nas ordens política, econômica e cultural, da qual sairão outras ordens distintas, que ainda não sabemos quais são.” Este foi o diagnóstico apresentado por Luis González Reyes, na conferência de abertura do ciclo de estudos Transição Energética e o Colapso Global. Limites e possibilidades, em 04-05-2023, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Na palestra virtual, intitulada “A matriz energética atual. Colapso global e instabilidade como paradigmas”, Reyes reflete sobre a transição energética em um contexto de crises multidimensionais. Segundo ele, “estamos passando de uma sociedade com muita energia bruta, pouca energia para reverter e muita energia líquida disponível para uma sociedade com menos energia bruta, com mais energia a ser empregada para conseguir a quantidade de energia que temos hoje, e menos energia líquida disponível, com caráter intermitente como consequência da própria intermitência das energias renováveis”.
Apesar de o apelo às energias renováveis estar na ordem do dia como uma das vias para enfrentar o novo regime climático, adverte, a criação e implementação de novas fontes energéticas renováveis são amplamente dependentes do petróleo, além de demandarem “uma série de elementos da tabela periódica”, muitos dos quais “encontram-se em limites de disponibilidade no planeta”. “Destinar inúmeros territórios para a implementação de parques solares ou eólicos pode nos levar a situações absurdas. Em nível global, a substituição de todas as centrais de carvão, gás e petróleo por centrais de geração elétrica de energia renovável, dada a quantidade, implicaria o uso de espaços muito maiores. Para manter o atual consumo energético do mundo, em matriz 100% renovável, precisaríamos de 221.594 mil novas plantas elétricas. Em 2018, existiam 46.423 mil plantas. De modo que, para manter a nossa ordem, necessitaríamos de um tipo de inversão, com o uso de territórios, materiais e energia que excedem nossas capacidades. O potencial técnico sustentável de energia líquida final, em cenários otimistas, é da ordem de 26-56% da energia total consumida na atualidade”, exemplifica.
Independentemente de qual será a matriz energética do futuro, sublinha Reyes, a nova ordem política, econômica e cultural “dependerá do que faremos hoje; não dependerá das fontes energéticas que tivermos nem da quantidade de energia que houver disponível, tampouco de como será a crise ambiental. Não. Tudo isso apenas marcará o campo de jogo, mas o que faremos no campo de jogo é uma opção humana. De modo que hoje (…) nossa ação coletiva prefigura o futuro e é absolutamente dependente”.
A seguir, publicamos os principais trechos da conferência de Luis González Reyes, no formato de pergunta e resposta. A programação completa do ciclo de estudos Transição Energética e o Colapso Global. Limites e possibilidades, que se estende até julho, está disponível aqui.
Luis Gonzáles Reyes (Foto: Estética fóssil)
Luis González Reyes é doutor em Ciências Químicas e membro da Cooperativa Garúa desde sua fundação, onde trabalha com questões ambientais, econômicas e pedagógicas. É colaborador regular de várias universidades e centros de formação docente. Também atua na FUHEM, fundação espanhola independente sem fins lucrativos, que promove a justiça social, o aprofundamento da democracia e a sustentabilidade ambiental. Integra o movimento Ecologistas en Acción e é autor e coautor de diversos livros sobre diferentes facetas do ambientalismo social. Entre eles, destacamos “La espiral de la energía” (Libros en Acción, 2014).
IHU – Em que sentido a transição energética marca um novo paradigma neste momento?
Luis González Reyes – A transição energética, o colapso global e a instabilidade são os paradigmas em que nos encontramos porque, neste momento, as energias e a transição energética estão influenciando o modo como vivemos em distintos parâmetros importantes da ordem mundial. O primeiro deles é que as crises que se sucederam em 2007, 2008, em 2020, que são encadeadas com as anteriores; são crises multidimensionais, das quais temos que considerar os múltiplos fatores e um deles, com certeza, é a energia.
A guerra da Ucrânia que, por mais que esteja ocorrendo no território europeu, tem implicações geopolíticas em nível mundial. Para entender este conflito e como ele está sendo vivido, a energia é um parâmetro absolutamente predominante – não o único, claro, mas é muito importante. Em distintos lugares do planeta, como no Sri Lanka, assistimos a um colapso socioeconômico e, para entendê-lo, temos que olhar para os múltiplos parâmetros. Um deles é a energia ou a falta de energia, que desempenha um papel importante nesse contexto.
IHU – O que isso significa?
Luis González Reyes – Isso significa que nos encontramos em um momento histórico no qual estão ocorrendo sucessos muito excepcionais. No mais, observamos grandes crises econômicas em nossos sistemas socioeconômicos, situações que ocorriam somente uma vez no século, mas que estão se sucedendo indefinidamente. Um exemplo são as guerras que nunca pensamos que teríamos, e que estão acontecendo, com implicações em nível global.
Poderíamos pensar que esses sucessos excepcionais são causalidades, mas prefiro pensar que são indicadores de que nosso mundo está mudando e o que temos pela frente não serão novas normalidades, mas um mundo marcado por contínuas excepcionalidades, as quais não sabemos muito bem quais são, mas irão condicionar e transformar, de maneira profunda e substancial, nossas ordens culturais, políticas e sociais.
IHU – Quais são os elementos-chave da crise global contemporânea?
Luis González Reyes – A tese fundamental que quero compartilhar é que a normalidade acabou; o que temos pela frente é um cenário radicalmente distinto do presente e do passado recente. Este momento em que nos encontramos não vai durar para sempre. Estamos vivendo o colapso da nossa civilização, com uma transformação profunda nas ordens política, econômica e cultural, das quais sairão outras ordens distintas, que ainda não sabemos quais são.
Temos que enfrentar a crise de modo sistêmico, não só verticalmente, mas horizontalmente ao mesmo tempo, tentando entender seus múltiplos fatores, para inter-relacioná-los. Farei este exercício, tentando analisar os fatores ambientais, sociais e econômicos que se relacionam entre si através do elo da energia, que é o foco da nossa discussão.
Primeiro, há uma crise ambiental caracterizada pela emergência climática, pela perda de biodiversidade massiva, por limites de acesso a diferentes recursos, em que o papel energético é determinante. As principais fontes energéticas são os combustíveis fósseis: o petróleo, o carvão e o gás. Como sabemos, essas três fontes não são renováveis, ou seja, não existe uma quantidade infinita delas no solo, mas uma quantidade limitada. A não renovabilidade desses elementos e seu caráter finito nos levam a um fator determinante que necessitamos entender e colocar sobre a mesa porque marca um ponto de inflexão muito grande em relação à disponibilidade desses recursos. Há um ponto máximo de possibilidade de extração do petróleo e, a partir desse ponto, sucedem-se três coisas fundamentais.
A primeira é que ano após ano é possível extrair uma quantidade crescente de petróleo, colocá-lo no mercado e utilizá-lo. Entretanto, em função da alta extração, passa-se a extraí-lo em locais onde a qualidade do produto é pior em relação aos petróleos convencionais, como é o caso das rochas duras. Passa-se a ter menos quantidade de petróleo, com uma qualidade pior. Além disso, é mais complicado extraí-lo em locais de difícil acesso, uma vez que já foram extraídos os petróleos que estavam nos locais mais fáceis. Os que sobraram são os que estão nas regiões árticas, onde há maior dificuldade de extração, onde as rochas são mais difíceis de serem rompidas, ou em regiões de águas profundas, como na costa brasileira, que custam mais energia para garantir a extração e, por outro lado, nos dão menos energia em termos de petróleo obtido. Quando se encerrar este pico – por mais que não saibamos exatamente o ano em que isto vai acontecer –, a produção e o consumo energético vão mudar de forma importante. A determinação deste pico depende de múltiplos fatores. Alguns são ambientais, outros, humanos. Quanto mais reservas existirem e serem exploradas, mais tarde chegaremos a esse pico.
As decisões políticas são importantes nesse processo. Por exemplo, na França está proibida a extração de petróleo em rochas duras, com uso de técnicas agressivas, como o fraturamento hidráulico. Essa proibição pode implicar uma mudança no pico de extração, fazendo com que ele seja alterado.
Os elementos econômicos também são importantes. Nas grandes petroleiras, tanto públicas quanto privadas, há uma inversão na exploração de novos campos. Os movimentos sociais, que fazem frente à exploração de petróleo, também são importantes. Fatores ambientais, como a existência ou inexistência de água para poder explorar ao máximo o petróleo, também influenciam este processo. Somam-se a isso, igualmente, os fatores tecnológicos, uma vez que melhorias tecnológicas poderiam modificar este cenário.
Todos esses fatores influenciam no processo de exploração do petróleo, mas os dois mais importantes, neste momento, são o geológico e o econômico. Desde 2005, o petróleo convencional, o mais fácil de extrair, chegou ao limite e, desde essa data, não é mais possível aumentar a extração. É provável que desde 2018 já tenhamos alcançado o ponto de sermos incapazes de aumentar a extração de qualquer tipo de petróleo, tanto os convencionais quanto os não convencionais, aqueles que são de pior qualidade e de difícil extração.
Como sabemos, o petróleo é refinado e de um barril de petróleo é possível retirar distintos produtos, como gasolina, diesel etc. Alguns desses produtos, como o diesel, estão em claro descenso global desde 2016. O diesel não é qualquer coisa; é o principal combustível utilizado em nosso modo de vida globalizado e urbanizado. Necessitamos do diesel para o transporte dos caminhões, para garantir o transporte das mercadorias. Entretanto, de alguma maneira esta situação tem marcado uma mudança na nossa civilização e na organização do nosso modo de vida.
O que nos interessa, enquanto sociedade, não é o volume de petróleo extraído, mas a quantidade de energia que sobra, ou seja, a quantidade que temos à disposição. Isto é, a quantidade de energia que conseguimos obter, menos a quantidade que é gasta para conseguir essa energia. À medida que o pico de máxima extração de petróleo diminui, gasta-se mais energia para extrair a mesma quantidade de combustível. Isso significa que a quantidade de energia que sobra é cada vez menor. O pico do gás ocorreu em 2019, o do carvão, em 2013, e do urânio, em 2016.
No entanto, a crise não é somente ambiental; também existe uma crise social. As sociedades, em nível global, estão mais desiguais do que alguma vez já foram desde o início da história humana. Nunca 1% da população concentrou mais riqueza que os 99% restantes. Isto é, 1% tem mais de 50% da riqueza mundial. Associada à desigualdade da riqueza, há uma desigualdade em relação à distribuição do poder. Isso significa que estamos vivendo uma crise do cuidado, uma crise dos elementos básicos para garantir a reprodução da vida, como alimentação saudável, apoio emocional, cuidados com a saúde.
A partir da crise social também podemos analisar a crise energética. Há territórios empobrecidos, periféricos, onde é realizada a maioria das atividades extrativas. Esses são territórios de sacrifício, em sua maioria no Sul global, nos quais ocorre a extração mineral e agrária, com uso do solo, da água, de agrotóxicos. Na outra parte da economia global, correspondente aos territórios mais enriquecidos, parece haver menos impacto ambiental, mas, na verdade, ele foi deslocado para os países empobrecidos, uma vez que os benefícios econômicos do uso territorial dos países pobres se concentram nos países enriquecidos. Com isso, poderíamos dizer que as desigualdades não são somente desigualdades monetárias, mas também desigualdades a partir de uma perspectiva material e energética. Quando analisamos as desigualdades a partir da visão da economia ecológica, precisamos considerar a variável da energia e descobrimos que, em vez de sermos credores de uma dívida, somos devedores de uma dívida em termos físicos, energéticos e materiais.
Além disso, temos uma crise econômica que, em minha avaliação, está marcando o fim do capitalismo em sua versão globalizada, o que não significa o fim do capitalismo em si. É possível ter outros tipos de capitalismo, mais localizados. O sistema capitalista é bastante sensível em sua forma de funcionamento; é um espaço altamente competitivo no qual ou somos capazes de maximizar nossos benefícios ou outros entes econômicos quitarão nosso espaço.
Quando falamos de globalização, falamos de territórios que não estavam conectados ou estavam debilmente conectados com o capitalismo global, mas que se conectaram a ele. Quando a China entrou na Organização Mundial do Comércio – OMC com intensidade, ou quando o antigo bloco soviético desmoronou e a Rússia entrou nos mercados globais, de pronto houve mais territórios de produção e consumo, mais matéria-prima, o que incrementou os mercados e os processos de criação de valor. Isso pode ser visto nas nossas próprias vidas. Na Espanha, a geração anterior, quando ficava dependente, era cuidada por mulheres. Agora, uma parte significativa das pessoas, quando necessita de cuidados, vai a residências privadas nas quais recebe cuidados. Essas residências privadas, queiram ou não, estão dentro de um mercado competitivo e têm que se meter dentro dessas lógicas de geração de benefícios. O cuidado, que é uma faceta da nossa vida que não estava mercantilizada, foi mercantilizada pelo mercado.
Há coisas que se sucedem fora do sistema econômico, mas são determinantes para o aumento dos benefícios econômicos. Uma delas é que se a chave é a produção e a produção requer trabalho humano, as pessoas precisam estar em condições de trabalhar. Temos que chegar aos postos de trabalho bem alimentados, com boa saúde, bom estado emocional. Ou seja, necessitamos de uma série de cuidados emocionais que são imprescindíveis. Mas quem nos cuida não são somente as pessoas, mas também os ecossistemas geradores de cuidados, os quais permitem que toda a criação de valor do sistema possa funcionar.
Dentro dos sistemas socioeconômicos há uma capitalização do trabalho da natureza, que se converte, de alguma forma, em capital por meio do trabalho humano. Imagine que temos duas jazidas de petróleo, uma com petróleo de alta qualidade, e outra, de pior qualidade. Na de pior qualidade, é preciso investir mais trabalho humano para conseguir a mesma quantidade de benefício porque a jazida está em um local de mais difícil acesso, ou porque é necessário fazer um processo de refinamento mais complicado. Quem faz o trabalho de colocar, de um lado, o petróleo convencional e, de outro, o petróleo não convencional é a natureza. É ela quem juntou grandes quantidades de matérias orgânicas, submetendo-as a altas pressões e temperaturas, durante milhares de anos, nos dando fontes energéticas tremendamente densas como são as de petróleo convencional. Sendo assim, a natureza também é determinante para o nosso sistema.
Este modelo está em crise porque estamos extrapolando os limites humanos. Não é possível aumentar a jornada de trabalho indefinidamente, porque os dias têm 24 horas e os corpos precisam descansar. Podemos reduzir os salários, mas não indefinidamente, pois não adianta produzir tudo muito barato se não há quem consuma o que se está produzindo. Também não é possível aumentar a quantidade de pessoas que trabalham, porque há limites em termos de população humana. Podem-se colocar mais facetas da vida no mercado, mas isso também encontrará limites. Estamos nos deparando com limites extra-humanos, que estão relacionados ao conjunto das crises ecossistêmicas e, concretamente, com as crises energéticas.
A desestabilização climática que estamos vivendo significa que poderá haver menos disponibilidade de biocombustíveis e isso implica uma série de limitações para realizar atividades de trabalho. O aumento da produtividade depende de um impulso cada vez maior das máquinas, mas temos que nos perguntar o que são as máquinas. Elas não são outra coisa além de energia, matéria e conhecimentos condensados. Se nossas melhores energias fósseis estão dando sintomas de esgotamento, o desenvolvimento de máquinas também dará sintomas de esgotamento e, portanto, da produtividade e do incremento da produtividade.
IHU – É possível sustentar o capitalismo global?
Luis González Reyes – Do ponto de vista energético, o que se coloca é que, com o ingresso das energias renováveis, mais ou menos faremos uma troca de cartas e toda a ordem geopolítica e cultural se manterá igual. O futuro claramente será de energias renováveis, e isso é desejável frente aos combustíveis fósseis. Mas será um futuro distinto porque as propriedades das energias renováveis são distintas das propriedades dos combustíveis fósseis.
Os combustíveis fósseis são fontes energéticas tremendamente concentradas. A queima de um litro de petróleo gera muita energia, porque esse tipo de fonte tem uma alta capacidade energética. Ou seja, é possível investir em pouca energia para conseguir muita. Além disso, essas são fontes que estão disponíveis em forma de estoques, ou seja, podemos ter acesso a elas independentemente se é dia ou noite. Elas também são facilmente manuseáveis e transportáveis e estão disponíveis em grandíssimas quantidades. Desde a Revolução Industrial até hoje tivemos quantidades de energia que não são comparáveis a nenhum outro momento da história. Se isso bastasse, essas energias são tremendamente versáteis: pensemos em suas aplicações energéticas, mas também em todas as aplicações materiais decorrentes do petróleo, como a indústria petroquímica por trás dos plásticos.
As fontes energéticas renováveis são basicamente fontes energéticas solares. Elas têm propriedades antagônicas aos combustíveis fósseis. Além disso, não são concentradas; são dispersas, de modo que temos que ter amplas extensões de placas solares para conseguir uma quantidade apreciável de energia que depois concentramos. Esse é um problema que não pode ser considerado menor em um mundo atravessado pela crise energética, mas também pelas crises ambiental e de biodiversidade.
Um segundo elemento a ser considerado é o fato de que as fontes energéticas renováveis não estão disponíveis de modo a termos acesso a elas em estoque, mas, sim, em fluxo irregular. Não sabemos quando o vento vai soprar nem quando haverá sol ou se estará nublado, com nuvens cobrindo os painéis solares. Isso faz com que tenhamos que nos adaptar a um fluxo irregular. Uma consequência desses fatores é a instalação de inúmeros painéis solares e parques eólicos em distintos territórios para que, quando não tiver energia disponível de um lado, tenha de outro. Isso requer um investimento muito grande de dinheiro, tempo e de energia.
Em terceiro lugar, há uma polêmica científica sobre a capacidade energética das fontes renováveis. Eu me associo àqueles que defendem o princípio da precaução, cujos estudos sólidos indicam que a quantidade de energia a ser obtida pelas energias renováveis é notavelmente menor do que a que nos permitem, hoje, os combustíveis fósseis.
Esses três problemas que levantei são estruturais, mas há outros que são específicos de cada tipo de energia e das máquinas que utilizamos para obter as energias renováveis. Um deles é que basicamente só utilizamos a energia renovável para produzir eletricidade, que é 20% do consumo energético mundial. Os 80% restantes de uso energético não estão eletrificados e provavelmente não serão eletrificados nunca porque temos grandes problemas para eletrificar tudo.
Podemos fabricar carros que se movem com eletricidade, mas não podemos fabricar caminhões, barcos, aviões, porque não temos essa tecnologia. Ou optamos por ter capacidade de carga ou optamos por ter autonomia de movimento por muitos quilômetros. As duas coisas não podemos fazer porque as baterias são muito pesadas e esse é um problema que se apresenta em toda essa trama. Além disso, o que chamamos de energias renováveis não são energias renováveis porque as máquinas que utilizamos são construídas com energias e materiais não renováveis que têm uma vida relativamente curta, 20 ou 30 anos. As energias renováveis têm impactos menores que os combustíveis fósseis, mas também geram impactos ambientais a serem considerados neste panorama de crise multissistêmica.
IHU – O que os dados de geração e consumo de energia indicam sobre as diferentes fontes de energia, seus limites e potencialidades?
Luis González Reyes – Os dados das taxas de retorno energético, isto é, a energia líquida restante das fontes energéticas renováveis que podemos gastar, indicam retornos energéticos muito baixos. Somente as energias hidrelétrica e eólica podem ser fontes energéticas com retornos apreciáveis. As demais têm limites muito claros. Destinar inúmeros territórios para a implementação de parques solares ou eólicos pode nos levar a situações absurdas. Em nível global, a substituição de todas as centrais de carvão, gás e petróleo por centrais de geração elétrica de energia renovável, dada a quantidade, implicaria o uso de espaços muito maiores.
Para manter o atual consumo energético do mundo, em matriz 100% renovável, precisaríamos de 221.594 mil novas plantas elétricas. Em 2018, existiam 46.423 mil plantas. De modo que para manter a nossa ordem, necessitaríamos de um tipo de inversão, com o uso de territórios, materiais e energia que excedem nossas capacidades. O potencial técnico sustentável de energia líquida final, em cenários otimistas, é da ordem de 26-56% da energia total consumida na atualidade.
No setor de transporte há problemas específicos porque os caminhões – e também o transporte marítimo e a aviação – dependem do petróleo; um total de 95% deles depende do petróleo. O parque de energias mistas ainda é muito pequeno; não chega nem a 1%. A quantidade de veículos elétricos também é muito pequena porque a transição obriga a uma inversão muito grande de tempo, dinheiro, materiais e energia. Precisamos de uma inversão que nem sequer ainda temos disponível. No caso dos carros elétricos, teríamos que mudar toda a rede de abastecimento porque a autonomia de um carro elétrico é menor do que a de um carro a gasolina. Para carregar tantos carros elétricos quantos os que são abastecidos a gasolina na Espanha, seria necessário um aumento da potência elétrica. A energia elétrica de 24 milhões de carros elétricos implicaria um adicional de 20-25% do atual consumo energético espanhol.
Teríamos que instalar grandes quantidades de linhas elétricas no mundo inteiro se quiséssemos chegar a todos os lugares com carros elétricos. Mas isso não seria possível porque teríamos que aumentar muitíssimo a capacidade elétrica para oferecer, a todos os carros, geração elétrica de energia renovável. Isso implicaria em uma grandíssima instalação. No fim, tudo isso chega a números que excedem as capacidades do planeta.
IHU – Quais as alternativas do ponto de vista da mobilidade urbana?
Luis González Reyes – Do ponto de vista da mobilidade, é determinante buscar alternativas. Uma das alternativas apresentada são os agrocombustíveis (bioetanol, biodiesel e hidrodiesel). Esses são combustíveis com uma taxa de retorno energético muito pequena. O etanol, com origem na cana-de-açúcar, tem rentabilidade energética notavelmente menor do que o petróleo, além de ter uma pegada hídrica significativa: a pegada hídrica é 70-400 vezes maior que a dos combustíveis fósseis. Esse tipo de energia requer grandíssimas extensões de terra para colocá-la em marcha. De alguma maneira, os agrocombustíveis demonstram que milagres energéticos não existem.
Uma alternativa apresentada é o uso do hidrogênio. Mas com o uso do hidrogênio não somente teríamos que eletrificar carros utilitários como também todos os veículos pesados que não podem ser utilizados via eletricidade, por exemplo, barcos, aviões, caminhões e tratores. Poderíamos usar o hidrogênio em quantidades pequenas, mas essa fonte de energia não é suficiente para manter o mundo como ele está hoje.
Outro limite em relação às renováveis é que essas energias não são renováveis. Pelo contrário, são subsidiadas pelo petróleo. A construção das barragens para a energia hidráulica utiliza energia fóssil. Por trás dos grandes moinhos eólicos é utilizada uma série de elementos escassos obtidos via mineração, com uso de maquinário pesado que só pode ser empregado com combustíveis fósseis. Além do mais, quando pensamos nesse tipo de máquinas ou em veículos elétricos, painéis fotovoltaicos, temos que lembrar que eles requerem uma série de elementos da tabela periódica e muitos deles se encontram em limites de disponibilidade no planeta. Isso implica limites de desenvolvimento desse tipo de renováveis.
Costumamos dizer que as fontes renováveis são preferíveis aos combustíveis fósseis, mas precisamos entender também seus impactos ambientais. Estudos preveem que o desenvolvimento da mineração no mundo afeta cerca de 37% da superfície emergida, excluindo a Antártida. Uma parcela equivalente a 8% dessas minas coincide com áreas protegidas, 7%, com áreas-chave para a biodiversidade e 16%, com áreas selvagens. Um total de 82% dessas minas são de materiais necessários para as energias renováveis e a construção de veículos elétricos. Não podemos tentar fazer uma transição energética à custa da biodiversidade porque dependemos dela.
IHU – Quais são os cenários possíveis para o futuro?
Luis González Reyes – Não quero convencer ninguém, mas apresento estes dados para que pensemos a respeito. O fato é que nossa ordem mundial está vindo abaixo como consequência da crise múltipla. O que temos pela frente é algo radicalmente distinto e, nesse sentido, tentamos imaginar o que pode ser. Se não imaginamos, não podemos traçar estratégias adequadas do ponto de vista pessoal e coletivo.
Sobre os cenários para o futuro, mencionarei dois grandes grupos: algo que provavelmente vai ocorrer e algo que está totalmente aberto e dependerá do que faremos ou não em nossas vidas.
Neste momento, estamos passando de uma sociedade com muita energia bruta, pouca energia para reverter e muita energia líquida disponível para uma sociedade com menos energia bruta, com mais energia a ser empregada para conseguir a quantidade de energia que temos, e menos energia líquida disponível, com caráter intermitente como consequência da própria intermitência das energias renováveis. Esse não é um processo que acontecerá de modo igual em todo o planeta; vai ser um processo diferente em termos de velocidade e profundidade. A transição energética vai iniciar antes em alguns lugares e depois em outros, em alguns locais ocorrerá mais rápido do que em outros. Esse processo diferencial dependerá de muitos fatores.
Muito antes de deixarmos de utilizar de forma massiva os combustíveis fósseis, eles serão exportados de forma também massiva, de modo que territórios que têm esses recursos em seu subsolo tenderão a defender uma posição para manter seu status quo interno e internacional. A questão não é somente em relação ao petróleo, mas à quantidade de recursos que pode ter no subsolo e como será possível geri-la. Outros fatores também terão influência nesse processo: se a agricultura que adotarmos será mais ou menos dependente do petróleo, se ela se adaptará mais ou menos às disponibilidades que existem no território, além do próprio impacto das mudanças climáticas. De modo que o processo que vamos viver no futuro será o de menos energia e menos materiais disponíveis. Com a diminuição da energia disponível haverá uma diminuição da complexidade social.
Não somente perderemos complexidade, mas isso nos abrirá possibilidades, oportunidades para que tenhamos sociedades em que as relações hierárquicas de poder mudem e, de alguma maneira, organizemos sociedades mais igualitárias. Não como algo necessário ou como um determinismo, mas como uma oportunidade que se abre.
Pensar em novas fontes energéticas é pensar, de algum modo, em mais autonomia na gestão da energia por parte das populações; isso poderá gerar sociedades mais democráticas. Sociedades menores e mais locais podem ser geridas de maneira mais democrática do que sociedades globais. Esta é outra possibilidade.
O controle da informação é um mecanismo central do poder, que faz com que as grandes empresas tenham inúmeras informações sobre nossas vidas. Isso acaba se convertendo em formas de controle social. Mas a diminuição desse controle, em sociedades menos complexas, abre possibilidades para gerar espaços de deliberação.
Outra possibilidade para o futuro é que nossas vidas urbanas provavelmente se convertam em vidas mais rurais. As cidades necessitam de uma grande quantidade de mercadorias para poder funcionar, as quais nos chegam através dos combustíveis fósseis. Com a diminuição das energias fósseis, é possível que ocorram processos de ruralização urbana, de modo que uma parte dos alimentos a serem consumidos na cidade seja produzida na própria cidade.
É provável que vejamos migrações por conta das questões energéticas e climáticas. Também é possível que haja uma simplificação das ferramentas complexas que usamos hoje para ferramentas mais sensíveis, sustentáveis e duradouras. Outra possibilidade é uma diluição da individualidade, sobretudo nos países do Norte global. Possivelmente, por conta das dificuldades que viveremos no futuro, teremos que recorrer ao coletivo. Teremos uma menor capacidade de atuação do Estado nos territórios. Isso não significa que o Estado irá desaparecer, mas terá menos capacidade de atuação.
O que está em aberto depende do que faremos ou deixaremos de fazer porque o futuro não está escrito. Como serão nossas ordens políticas, econômicas e culturais dependerá do que faremos hoje; não dependerá das fontes energéticas que tivermos nem da quantidade de energia que houver disponível, tampouco de como será a crise ambiental. Não. Tudo isso apenas marcará o campo de jogo, mas o que faremos no campo de jogo é uma opção humana. De modo que hoje, mais do que nunca, nossa ação coletiva prefigura o futuro e é absolutamente dependente.
Na ação coletiva, temos que ter cuidado com os medos, com o que pensamos sobre o colapso da civilização industrial, sobre o capitalismo global e sobre se o que virá será somente uma espécie de luta de todo mundo contra todo mundo – essa é somente uma das opções que temos. Há outras opções e temos a responsabilidade de projetar outras situações, comunicá-las ao restante da população para fazer com que cresçam. Pela frente, temos cenários que poderão ser cinematográficos, como o do filme Mad Max, ou “Totoro”, em que sejamos capazes de viver de maneira harmônica com a natureza e as pessoas. O que provavelmente teremos é uma espécie de cenários labirínticos, que em alguns momentos se aproximam do cenário “Totoro” e, em outros, se aproximem do cenário Mad Max, de modo que esses sejam elementos flutuantes ao longo da história.
Entre as características breves desses cenários, imagino no cenário Mad Max uma espécie de capitalismo agrário. No cenário labiríntico, imagino neofeudalismos com graus de autonomia. No modelo “Totoro”, imagino economias feministas, ecológicas, solidárias, ligadas a economias domésticas. Falar de distintas economias é falar de distintas formas de relação de trabalho, desde relações escravistas, servis ou assalariadas, até relações cooperativistas, entre as famílias. Como a economia não é somente produção, mas também reprodução, necessitaríamos de uma separação entre produção e reprodução hierarquizada por gênero, com relações híbridas, com distintos gêneros.
Do ponto de vista político, poderemos ter situações de estados ditatoriais, com parte dos territórios controlados por instituições paraestatais, até instituições democráticas que controlem o território. Também será preciso pensar distintas hierarquias sociais e distintas formas de relações internacionais, considerando as possíveis guerras por recursos até relações de mais autarquia e cooperação.