“Quando as pessoas se distanciam por causa da cor da pele, quando as pessoas se opõem como inimigas, essa sociedade não é apta à democracia e vai falir nas suas coletividades”, afirma o filósofo
“Não há democracia sem o uso aberto da razão, isto é, sem uma abertura que, pelo menos, seja marcada pela troca de argumentos, de tomar e dar razões para as posições”, disse o filósofo Julian Nida-Rümelin, no encerramento do XXV Colóquio Internacional de Filosofia Unisinos e o XXI Simpósio Internacional IHU. O futuro da democracia e o novo regime climático: ameaças, (auto)críticas e potencialidades, em 29-11-2022, realizado de forma híbrida em outubro e novembro. A troca de argumentos, menciona, “sempre está ameaçada pela comercialização das relações midiáticas” e, mais recentemente, com o amplo uso das redes sociais, “através da modificação das formas de discurso, da anonimização e do uso de chatbots”.
Na conferência, publicada a seguir no formato de entrevista, Julian Nida-Rümelin destaca a necessidade de uma “uma cultura do humanismo” para viabilizar a democracia, analisada através das transformações digitais em curso. “O humanismo digital afirma que através da transformação também digital muita coisa muda, mas a orientação básica do humanismo deve se preservar nesta transformação – e isso requer várias coisas. (...) A tendência é encararmos os atores digitais como se fossem ‘homo Deus’, ou seja, como pessoas, renunciamos às nossas qualidades porque agora temos agentes de software que nos dão consultorias – e algum dia até poderão nos controlar, a partir de uma ética ou não –, têm intenções, propósitos, metas etc. Tudo isso praticamente é a realização de um sonho infantil, ou seja, estejamos criando bonecos, como na antiguidade, como o mito de Pigmaleão, ou como a história do homem de areia. Isto é um sonho dos homens, temos bonecos e os controlamos”, adverte.
As demais conferências ministradas no XXV Colóquio Internacional de Filosofia Unisinos e o XXI Simpósio Internacional IHU. O futuro da democracia e o novo regime climático: ameaças, (auto)críticas e potencialidades estão disponíveis aqui.
Julian Nida-Rümelin
Foto: Reprodução | Alpha
Julian Nida-Rümelin é professor emérito de filosofia e teoria política na Universidade de Munique, membro da Academia Europeia de Ciências e Artes, diretor do Instituto Bávaro de Transformação Digital, vice-presidente do Conselho de Ética Alemão e presidente da Fundação Parmênides.
IHU – Que relação estabelece entre humanismo e democracia?
Julian Nida-Rümelin – Para cada um desses conceitos, há muito o que dizer. Vou apresentar algumas ideias preliminares para não termos ideias distintas.
Existe um núcleo de pensamento humanista sobre a autoria humana, segundo o qual o homem é o autor da sua própria vida e essa concepção está vinculada a ideias sobre as implicações políticas, éticas e educacionais. Isto é, os seres humanos são os autores da sua própria vida, são responsáveis pelo que fazem, podem se justificar e, portanto, não existe nenhuma ordem de dominância pela natureza. Os seres humanos, em seu status, ou são livres ou não livres. Essa é a ideia da humanidade. Thomas Hobbes, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant concordaram nesta questão.
Nesse sentido, existe outra linha de pensamento que, após a Segunda Guerra Mundial, foi vinculada como reação após 12 anos de fascismo, que é o discurso sobre os direitos humanos. Assim surgiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948. Sobre isso existem muitas lendas e não vou falar de todas elas, mas a defesa mais forte contra o argumento dos direitos humanos foi feita pela Grã-Bretanha, que era um poder colonial e tinha medo de que o colonialismo fosse questionado com essa coluna dos direitos humanos – e foi o que aconteceu. O segundo ator contrário à Declaração Universal dos Direitos Humanos estava no Pentágono. Sua preocupação era com o fato de que, com a limitação dos direitos humanos, os EUA não poderiam mais fazer guerras livremente. A primeira proposta favorável [à Declaração] foi dos estados da América do Sul, seis meses antes da publicação, em dezembro. De meu ponto de vista, a contribuição mais fascinante foi a do delegado indiano que disse estar feliz com o fato de que, a partir da Declaração, os países ocidentais entenderam a dignidade de todos os seres. Isto quer dizer que não podemos pensar que a tradição dos direitos humanos é vinculada à cultura ocidental. Isso não é correto, apesar das influências da cultura do Ocidente.
Essa linha, que depois de décadas se tornou um quadro normativo da política mundial, considerando novos pactos, acordos sobre os direitos humanos e todas as demais convenções, por exemplo, para refugiados, criou uma espécie de quadro normativo para a política internacional e é isso que deixa a questão mais fascinante do ponto de vista da filosofia política. Isso se reflete nas democracias internas e nos Estados que não são democracias, mas que se veem obrigados com os direitos humanos. Praticamente todos os países não democráticos violam, quase sistematicamente, os direitos humanos, mas, mesmo assim, se obrigaram diante dos direitos humanos.
Ou seja, minha tese é que a democracia pode ser entendida como a forma de Estado, mas também de sociedade, que tem o objetivo de realizar os direitos humanos. Essa forma da sociedade depende de que, na prática cotidiana, existam respeito e reconhecimento independentemente da origem, religião e idioma dos cidadãos. Quer dizer que a liberdade e a igualdade não podem estar somente em instituições, como o direito de voto, mas também na cultura civil. Por isso sempre falo da cultura cívica da democracia porque, sem ela, a democracia não vai sobreviver. Quando essa cultura do reconhecimento mútuo, de diferenças de opiniões que não precisam necessariamente ser inimizade, é violada, como acontece nos EUA, mas também na Europa, na Hungria, na Polônia e em parte na Grã-Bretanha – me parece que o Brasil também corre esse risco –, há riscos para a democracia.
Carl Schmitt elaborou a teoria de que a política se baseia em uma ideia de amigo e inimigo. Isso coloca em risco a democracia e sua cultura cívica. Mas sobre a teoria da democracia, gostaria de comentar algo mais para precisar. Podemos entender a democracia como uma forma específica de autodeterminação coletiva que parte do princípio do status de igualdade moral. Para que essa autodeterminação coletiva seja possível, os indivíduos precisam ter direitos. Não posso concordar que a maioria das pessoas determinem qual vai ser minha profissão, quem vou amar e como vou viver. Ou seja, sem direitos individuais não há democracia. Isso não é contradição, mas autodeterminação coletiva que me dá condições com as quais posso concordar.
A democracia se baseia num consenso superior, então reconhecemos os diferentes, mas também nos conhecemos e reconhecemos as instituições e nos baseamos nessa legitimidade sobre as condições de direitos individuais garantidos. Mas isso não pode ser o fim da democracia porque, sem uma determinada proteção, ela não poderá existir. Se as pessoas se tornam apenas receptoras de serviços de caridade, se dependem da boa vontade daqueles que se ocupam com elas, elas não são mais autoras de suas vidas e perdem esse status. Ou seja, na democracia deve haver um certo grau de providência de estado de direito, não dependendo de ações de caridade, mas de direitos individuais que assistam as pessoas desempregadas, os idosos. Dito de outra maneira, é preciso fazer com que as pessoas tenham direitos e possam reclamá-los e requisitá-los. Do contrário, isso também vai ferir a dignidade dos cidadãos.
Também existe uma base civil cultural. Irei formular isso pragmaticamente em referência à história americana. Vivemos em uma sociedade onde as pessoas levantam se, ao seu lado, senta-se uma pessoa de outra cor de pele. Quando as pessoas se distanciam por causa da cor da pele, quando as pessoas se opõem como inimigas, essa sociedade não é apta à democracia e vai falir nas suas coletividades. Sem uma cultura civil, uma cultura do humanismo, não há democracia.
Também não há democracia sem o uso aberto da razão, isto é, sem uma abertura que, pelo menos, seja marcada pela troca de argumentos, de tomar e dar razões para as posições. Via de regra, nos grandes estados, isso é transmitido pela imprensa, ou seja, não acontece somente na comunicação entre duas pessoas, mas sobretudo através das mídias. E isso sempre está ameaçado pela comercialização das relações midiáticas, mas também através da modificação das formas de discurso, da anonimização e do uso de chatbots.
IHU – Como as noções de democracia e humanismo estão sendo modificadas a partir da transformação digital em curso? O que é o humanismo digital ao qual se refere?
Julian Nida-Rümelin – No Open Access, vocês podem consultar o livro “Digital Humanism for a Humane Transformation of Democracy, Economy and Culture in the Digital Age”, que publiquei com Nathalie Weidenfeld, em 2018, pela editora SpringerLink.
O humanismo digital afirma que através da transformação também digital muita coisa muda, mas a orientação básica do humanismo deve se preservar nesta transformação, e isso requer várias coisas. De um lado, requer que não podemos permitir uma digitalização que nos endureça. Chamo isso de ideologização, de animismo, me baseando na análise de Freud, em seu livro “Totem e tabu”. A tendência é encararmos os atores digitais como se fossem “homo Deus”, ou seja, como pessoas, renunciamos às nossas qualidades porque agora temos agentes de software que nos dão consultorias – e algum dia até poderão nos controlar, a partir de uma ética ou não –, têm intenções, propósitos, metas etc. Tudo isso praticamente é a realização de um sonho infantil, ou seja, estejamos criando bonecos, como na antiguidade, como o mito de Pigmaleão, ou como a história do homem de areia. É um sonho dos homens, temos bonecos e os controlamos.
O mito de Pigmaleão
Também há um animismo digital em frente ampla que não parte necessariamente dos engenheiros que criam os softwares. Trata-se de um animismo ligado às relações públicas de jornalecos, ou seja, do Facebook, tal como está aparecendo com o metaverso, agentes que vivem no mundo virtual, onde supostamente temos direitos e deveres e nos encontramos. No fim, tudo isso vai levar a uma tendência anti-humanista, que pode se reverter e fazer com que as pessoas não reconheçam suas responsabilidades. Existem até sugestões para mudar o sistema legal para que isso aconteça, isto é, o animismo é um grande risco, é uma ideologia; não é uma tecnologia. É uma ideologia que acompanha a tecnologia.
Além disso, os mecanismos de modelo de software e hardware têm uma autointerpretação dos homens segundo a qual o homem não é nada mais do que uma certa variante de um software, que passa a ser um software úmido com conceitos e visões transumanistas malucas, como a de alcançar a vida eterna se pudermos nos perpetuar em transformações de software. Em outras palavras, querem transformar o ser humano em um sistema de software que vai sobreviver ao corpo biológico.
O humanismo digital determina-se a não prejudicar a humanidade, mas diz que nós é que somos os responsáveis por aplicar essa opção tecnológica, que requer que nos guiemos por objetivos humanos na transição tecnológica. Isso não significa que temos um ou dois modelos que dominam, ou uma dinâmica puramente tecnológica com os grandes monopólios ou grandes empresas, que estão aí se apresentando. Também temos um modelo chinês de controlar a transformação digital dos cidadãos. Acredito que esse não pode ser o futuro porque, na transformação digital, devemos pensar como vamos enfrentar a mudança climática. Ou seja, como podemos tornar as mudanças aproveitáveis através da transformação digital e como podemos fortalecer o ser humano com pesquisas nessa interface. Os engenheiros de software precisam usar conceitos éticos e deliberar eticamente nos processos. Isso é parte das atividades do Instituto de Transformação Digital da Baviera, na Alemanha.
A ideia de democracia sempre existiu. Desde a antiguidade, existe a ideia de que a democracia ideal seria realizável se cada pessoa, a qualquer momento, pudesse fazer propostas e lançá-las a uma votação em que todos participam e têm sua própria opinião a manifestar. Outro argumento apresentado na antiguidade diz que seria ótimo se fosse assim, mas esse modelo de democracia não é realizável. A democracia de Atenas, organizada em distritos nas cidades, dava muito espaço para o princípio da ocasionalidade, com cidadãos plenos, masculinos, que, por mecanismos do acaso, eram escolhidos para preencher determinados cargos. Rousseau também sonhava com uma república onde o burguês se tornaria cidadão e, baseado no bem e na comunidade geral, aprovaria leis. Então, podemos dizer que, pela primeira vez na história da democracia, temos possibilidades tecnológicas para realizar essa visão ao apresentar propostas que as pessoas podem aprovar ou não.
Alguns teoremas mostram que condições elementares e postulados que são inevitáveis e imprescindíveis para a democracia, simultaneamente, não são realizáveis por qualquer processo. Não pode haver ditaduras cujas preferências determinam a decisão coletiva. Ou seja, o princípio da unanimidade, que todos sejam unânimes, uma vez determinada a coisa a ser realizada.
Entretanto, as pessoas são livres nas suas preferências e soberanias. Cada um pode ter preferências políticas. Mas também é claro, intuitivamente, que quando surgem diversas alternativas, não há uma ordem de precedência na sequência das alternativas que já foram decididas. A consequência dessa problemática é que quando há diversas alternativas, e muitos participantes para tomarem a decisão acerca delas, o mais provável é que o resultado da agregação seja cíclico. Ou seja, se você acha A melhor do que B e B melhor do que C, mas também A não é melhor do que C, mas C é melhor do que A, o resultado da votação vai ser aleatório à sequência das sugestões. Todos os processos de votação são passíveis de manipulação e a resposta dos teoremas é que a democracia precisa de um âmbito institucional, precisa ter medidas para limitar as alternativas, baseadas nos partidos, ou reduzindo o número das bancadas no parlamento, ou ainda encurtando o número de partidos.
A democracia real, institucionalmente ancorada, com divisão de poderes, medida nesse ideal, é amplamente problemática porque diz que existem pessoas que nos representam, mas surge a questão se de fato elas nos representam. Trata-se de um governo no qual os cidadãos não podem interferir nem dar sugestões. Com isso, a democracia estabelecida acaba perdendo e acontece o processo de deslegitimação da democracia. Por esse motivo, as ferramentas digitais são importantes para facilitar a administração do executivo, as competências dos cidadãos, as preferências. Elas nos permitem reagir, refletir, ouvir argumentos contra ou a favor.
Geralmente, os governos querem ter pouco contato com a população. Eu mesmo já fui ministro e secretário da cultura e sei que a tendência das administrações é querer fazer o seu trabalho sem muita interferência, mas isso, hoje, não basta. A democracia precisa ser revitalizada e os cidadãos precisam poder interferir nos bairros, nos municípios e precisam ser incluídos nas administrações públicas. Essa é uma grande tendência na administração porque, atualmente, temos diversas leis que garantem que os processos, dentro dos governos, precisam ser transparentes, eles são obrigados a se abrirem mais por causa dessas leis.
Gostaria de mencionar dois pontos finais. O primeiro é o seguinte: as formas de comunicação digitais são ambivalentes. Elas não são somente negativas para a democracia, mas, em muitos casos, positivas. A população tem acesso à informação de forma muito mais fácil e não é nem necessário ter bibliotecas e muitos livros em casa, tampouco é necessário visitar uma biblioteca para se informar. Existe uma democratização do conhecimento e isso é uma grande vantagem da transformação digital.
Também há projetos como a Wikipédia, que é um exemplo de sucesso, onde o conhecimento do mundo é juntado. Nem tudo é perfeito, mas me impressiona como funciona bem e até cientistas usam a Wikipédia. É preciso haver um pouco de cuidado, mas a maioria das informações é confiável. Também existem grupos de Facebook que discutem, em altíssimo nível, determinados tópicos – grupos de física, urbanistas etc. Tudo isso é muito positivo.
Ao mesmo tempo, temos, com a comunicação digital, uma tendência de perda da cultura cívica dentro da comunicação. Isso tem a ver com o fato de que as pessoas não se identificam com o seu nome; elas têm uma identidade digital que permite ter uma atitude mais agressiva. Existem também alguns testes psicológicos que mostram que a comunicação face a face é muito mais humana do que a comunicação por telefone ou plataforma. Existe também uma economia de atenção: aquelas pessoas que têm posições muito drásticas ou excêntricas têm atenção. Algumas pesquisas também demonstram que afirmações erradas e falsas têm muito mais atenção do que as informações corretas e verdadeiras. Existe, então, uma perda de humanidade que anda pari passu com o interesse comercial das plataformas, que fazem tudo para que as pessoas permaneçam muito tempo nas plataformas.
Tudo isso me leva a pensar que, pelo menos, precisaríamos de uma infraestrutura alternativa para a comunicação digital. A ideia básica é que as pessoas não podem ser obrigadas a ter acesso somente à infraestrutura privada das grandes empresas. Isso está vinculado também à perda da autonomia de dados. A política precisa tomar uma iniciativa, precisamos de alternativas, como uma estrutura digital sem fins lucrativos, e temos que pensar também se o modelo de negócio dessas grandes empresas particulares não é limitado. Essas grandes empresas utilizam nossos dados para estratégias de marketing e isso deveria ser proibido. Na convenção europeia, existem debates interessantes sobre essas questões. Participei de alguns, mas nenhum resultado foi bastante convincente até o momento.
O segundo ponto é que a democracia ou é inclusiva ou não é inclusiva. A democracia não pode excluir. A democracia não combina com a marginalização de grandes partes da população. Democracias são inclusivas e pressupõem que não somente aquelas pessoas que sabem lidar com as ferramentas digitais possam participar do processo democrático. Nesse sentido, tais ferramentas precisam ser organizadas de forma que seja possível ter uma vida analógica sem estar fora da democracia e do exercício da cidadania.