O esgotamento do establishment que governou o capitalismo nos últimos anos abre novas janelas de oportunidades políticas, diz o pesquisador
O novo livro de Chantal Mouffe, Por um populismo de esquerda, “poder ser lido como um chamado à ação política”, e embora analise a conjuntura e as razões que levaram à ascensão da ultradireita na Europa e nos EUA, tem elementos que podem nos ajudar a compreender a cena política nacional e as motivações do eleitorado brasileiro que elegeu Bolsonaro. O primeiro deles, dirigido aos partidos que querem se apresentar como alternativa política nas próximas eleições, consiste em compreender quais foram as insatisfações legítimas que fizeram a maior parte da população votar no atual presidente da República. Feito o diagnóstico, o desafio é “articular tais demandas por meio do discurso democrático e inclusivo, e que seja capaz de se construir em oposição às oligarquias de fato”, diz Felipe Calabrez à IHU On-Line.
Para fazer frente à ultradireita, o populismo de esquerda advogado pela cientista política belga seria, de acordo com o pesquisador, “caracterizado pela estratégia política capaz de organizar um discurso que produza sentido para esses sujeitos e seja capaz de canalizar suas insatisfações. Para onde e ‘contra quem’ é o que diferenciaria o populismo de esquerda do populismo de direita. O primeiro deve articular aquelas demandas (a princípio, democráticas) para um projeto inclusivo, progressista, marcado pela tolerância etc.”, afirma.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Calabrez analisa a obra de Mouffe à luz da conjuntura brasileira e explica de que forma ela pode contribuir para a construção de um populismo de esquerda no país.
Felipe Calabrez (Foto: Arquivo pessoal)
Felipe Calabrez é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina - UEL, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná - UFPR e doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas - FGV. É professor do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU. Escreve quinzenalmente para o portal Outras Palavras.
IHU On-Line - Por que compreende a ascensão da direita, tanto nos EUA quanto no Brasil, como um fenômeno social e não como um fenômeno político?
Felipe Calabrez - Muitos têm buscado compreender a ascensão de líderes políticos de extrema direita, que possuem certas características e discursos que não os configuram propriamente como pertencentes à direita tradicional. Cito em específico as análises de Chantal Mouffe, Nancy Fraser e também Wendy Brown. Algumas dessas análises identificam o que chamam de crise de hegemonia, ocasionada por um processo no qual os consensos básicos em torno da dominação e da legitimidade do exercício do governo pela classe política tradicional são quebrados. Nesses momentos, o acúmulo de insatisfações difusas facilita o surgimento de figuras de retórica agressiva, capazes de canalizar tais insatisfações contra os “poderosos”, ou “os políticos”, ou qualquer outro inimigo interno ou externo. Essa retórica, que, diferentemente da direita “tradicional”, se apresenta como antissistema, contribui com o enfraquecimento da autoridade dos partidos tradicionais.
Apesar das diferenças nas trajetórias aqui e nos EUA, tivemos isto em comum: tanto Trump quanto Bolsonaro se elegeram atacando políticos e partidos tradicionais. O recente discurso de Trump por ocasião da oficialização de sua candidatura à reeleição pelo Partido Republicano reiterou essa visão ao bradar contra o que chamou de “estrutura de Washington”, a versão americana do nosso “menos Brasília”. Mas esses fenômenos políticos, defendo em consonância com as análises que falam em “crise de hegemonia”, só podem ser lidos como resultado de um processo ocorrido, antes de tudo, fora da política institucional, no tecido social e suas contradições. Eles seriam, dito de modo muito resumido, a expressão política daquele conjunto de insatisfações sociais.
IHU On-Line - Ao comentar o novo livro de Chantal Mouffe, Por um populismo de esquerda, o senhor disse que o título é um “chamado à ação política e soa especialmente provocativo no atual contexto brasileiro”. Pode explicar essa ideia? Que tipo de ação política o livro propõe e por que o considera provocativo para o contexto brasileiro?
Felipe Calabrez - O livro de Chantal Mouffe pode ser lido como um chamado à ação política – e na verdade a autora já explicita desde o início tratar-se de um livro político –, pois seu objetivo seria, em suas palavras, “refletir na conjuntura”, isto é, refletir sobre os processos políticos a partir de um posicionamento, de uma maneira não neutra, e buscando compreender os discursos e as subjetividades políticas para pensarmos estratégias de enfrentamento à atual tendência a que ela chama de populismo de direita, que é regressiva em todos os aspectos.
O tipo de ação política que o livro propõe não passa pela sugestão de algum programa político específico. Sua proposta é na verdade o desdobramento de um conjunto de elementos teórico-críticos dos quais eu destacaria aqui a visão adversarial de política e o antiessencialismo. O primeiro diz respeito à noção de que o antagonismo é próprio do político e que cabe à política democrática lidar com isso. O antiessencialismo parte da ideia de que os sujeitos não possuem uma identidade política fixa e estrutural (por exemplo, a ideia de que o trabalhador assalariado, não proprietário dos meios de produção, terá, por conta de sua posição na estrutura, uma autoidentificação com a “classe trabalhadora” e votará em partidos de esquerda). Ao contrário disso, para a abordagem antiessencialista, o agente social é constituído por um conjunto de posições discursivas não fixas, sua identidade é sempre contingente e precária. Caberia então a uma estratégia progressista ou de esquerda compreender isso e saber trabalhar discursivamente uma estratégia política inclusiva e emancipadora e com ideais pluralistas e democráticos.
O livro me parece especialmente provocativo no contexto brasileiro por pelo menos duas razões. Primeiramente o termo “populismo”, que costuma carregar conotação pejorativa, no Brasil ganhou uso corrente, sendo usado diariamente por especialistas, economistas e jornalistas de variedades, para se referir a toda e qualquer política que se proponha (genuína ou demagogicamente, não importa) a melhorar as condições econômicas dos mais pobres (aqui cabe aumento de salário mínimo, ampliação de gastos sociais ou toda e qualquer proposta que exija orçamento para os mais pobres, o que é feito sob o prisma de um fiscalismo rudimentar e cada vez mais desafiado pela realidade).
Em segundo lugar é provocativo no nosso atual contexto que, dadas as diferenças com os contextos estadunidense e europeu, também poderia ser entendido como “momento populista”, cujo ápice seria a eleição de 2018. A pergunta que a esquerda ainda não soube responder é: Como um sujeito agressivo e despreparado conseguiu convencer parte expressiva do eleitorado de que era um outsider contrário à “velha política” e às elites econômicas, sendo morador de condomínio fechado e parlamentar por anos seguidos? Como conseguiu convencer que representava “o povo” contra as “elites poderosas” enquanto encampava o projeto destas últimas?
A verdade é que ele soube canalizar um conjunto difuso de insatisfações com “tudo o que está aí” (uma mistura de insatisfações com o sistema político, com os partidos tradicionais, com as elites econômicas e intelectuais). Nosso desafio político seria, como sugere Mouffe olhando para Europa e Estados Unidos, compreender como esse processo foi possível e como chegamos até aqui, em lugar de simplesmente culpar seus eleitores por aderirem a discursos raivosos que miram em um conjunto de inimigos fictícios (artistas que se beneficiariam de uma lei de fomento, estudantes que fariam balbúrdia com dinheiro público, esquerdistas, políticos em geral, para não falar do velho fantasma do “comunismo”).
O ponto de Mouffe é o de que precisamos compreender que a adesão a tais discursos pode ter sido inicialmente motivada por insatisfações legítimas que apenas ali encontraram expressão política. Reparem que esse discurso roubou inclusive parte da linguagem originária da esquerda, como a questão dos privilégios e de opressões estruturais, invertendo seu sinal. O desafio, portanto, seria articular tais demandas por meio do discurso democrático e inclusivo, e que seja capaz de se construir em oposição às oligarquias de fato. Dito de modo simples, é preciso identificar o verdadeiro adversário.
IHU On-Line - Mouffe declarou recentemente que para impedir o desenvolvimento do populismo de direita é preciso desenvolver um populismo de esquerda. Concorda? O que caracterizaria um populismo de esquerda e em que aspectos ele se diferenciaria ou se aproximaria dos últimos governos de esquerda da América Latina e do populismo de direita?
Felipe Calabrez - Esse posicionamento de Mouffe é uma decorrência coerente de suas posições teóricas e analíticas e de seu diagnóstico histórico e político da Europa e EUA. Se é verdade que Tony Blair e sua terceira via no Reino Unido significaram uma capitulação da crítica ao capitalismo e da visão adversarial de política em favor de um “consenso no centro” (Blair dizia que não há política de esquerda ou de direita, apenas política certa ou errada), e se é verdade que com o tempo isso gerou nos eleitores a visão de que “os políticos e partidos tradicionais são todos iguais”, já que suas condições econômicas não foram substancialmente melhoradas por nenhuma das alternativas, ou melhor dizendo, diferentes partidos não representam alternativas de fato diferentes, fica mais fácil entender o atual caldo de insatisfação.
A linguagem tecnocrática que predominou desde os anos 1990, mesmo entre os partidos social-democratas na Europa, não tem mais apelo entre os eleitores. Vejam o que foi o governo Hollande, na França, do Partido Socialista. O que Mouffe está dizendo é que isso tudo produziu uma insatisfação que se tornou uma energia contestatória difusa, momento em que frases como “a política correta” não tem mais apelo entre os eleitores. É hora de confrontar, e nisso a direita tem levado a melhor. E para entender e enfrentar isso é preciso uma visão sofisticada e precisa do que são os sujeitos, a que são movidos na política, como dão sentido aos discursos que são feitos e que remetem às suas situações concretas no mundo social. É preciso levar em conta, por exemplo, os afetos que operam nesse processo. Não estamos falando do eleitor racional de Anthony Downs, nem do eleitor da classe operária clássica.
O populismo então seria caracterizado pela estratégia política capaz de organizar um discurso que produza sentido para esses sujeitos e seja capaz de canalizar suas insatisfações. Para onde e “contra quem” é o que diferenciaria o populismo de esquerda do populismo de direita. O primeiro deve articular aquelas demandas (a princípio, democráticas) para um projeto inclusivo, progressista, marcado pela tolerância etc. O que o populismo de direita tem feito nos EUA, por exemplo, é articular as insatisfações de parte da classe trabalhadora americana em decadência num vocabulário xenófobo.
Nesse sentido, eu tendo a concordar com Mouffe que precisamos de um populismo de esquerda (frise-se, desde que bem entendido seu conceito). E nesse sentido sua análise permite-nos pensar em alguns líderes latino-americanos que na primeira década dos anos 2000 lideraram governos progressistas. O fato de um indígena como Evo Morales liderar um país predominantemente indígena, ou de Rafael Correa, no Equador, ou sim, Chávez, na Venezuela, liderarem governos abertamente adversários de forças políticas e econômicas tradicionais e mobilizarem base popular de apoio com seus discursos, os aproxima da noção de Mouffe. Agora o que se tornaram tais governos, seus problemas e contradições internas, é assunto mais complexo e no Brasil tem se tornado um tabu, espécie de non-starter no debate.
Sem dúvida a prática política de tais governantes demonstrou não se coadunar muito bem com os procedimentos da democracia liberal e suas instituições e mecanismos de freios e contrapesos. Penso que nesse aspecto trata-se de um dilema que marcou o século XX. As instituições liberais podem servir de barreira a transformações mais radicais nas estruturas de poder e dominação (como reclamavam os socialistas), mas sua existência é fundamental para garantia das liberdades, e sua destruição pode trazer o pior. Além disso, prefiro entender os processos menos sob a ótica do moralismo político e mais pela ótica do realismo político. Alguém imagina ser possível governar a Venezuela tranquilamente com instituições liberais? Como já ouvi dizer, pior que o governo da Venezuela é a oposição na Venezuela. Talvez isso ajude a compreender a tendência ao fechamento do regime. Tem outras tantas questões aí, inclusive geopolíticas, que são frequentemente ignoradas pelos analistas. Enfim, cada país tem suas características próprias. Mas algo que esses processos possuem em comum é a centralidade que o líder carismático adquire.
No caso de Mouffe, seu esforço é em conjugar a preservação de instituições liberais com um reforço da noção de soberania popular rumo à radicalização da democracia. Vale dizer também que ela não condena a ideia de que um líder carismático conduza o processo.
IHU On-Line - Um dos aspectos centrais do populismo de esquerda, segundo Mouffe, é questionar o modelo neoliberal. O que seria um modelo alternativo?
Felipe Calabrez - Mouffe na verdade pouco desenvolve o que entende por modelo neoliberal, citando rapidamente aspectos como privatização, financeirização e desmonte dos sistemas de bem-estar social europeus. Mas no fundo podemos entender que a oposição estaria entre a lógica mercantil e a lógica da democracia e da cidadania. Nesse sentido um modelo alternativo seria aquele que questione os mecanismos que permitiram os atuais níveis de concentração de renda e que permitem que uma oligarquia financeira estabeleça os limites entre o possível e o impossível na política, sempre preservando seus ganhos. Estamos falando aqui das respostas que os governos deram à crise de 2008 e que fizeram proliferar um conjunto de movimentos contestatórios nos EUA e na Europa.
Estamos falando da lógica tecnocrática que colocou o berço da democracia antiga de joelhos diante de credores internacionais mesmo tendo à frente nas negociações um Ministro das Finanças combativo como Yanis Varoufakis. Um modelo alternativo seria a superação dessa lógica e a possibilidade de que projetos realmente alternativos de sociedade possam ser debatidos e disputados politicamente, um modelo em que a política democrática e a soberania popular possam confrontar a pura lógica da acumulação privada em favor de formas coletivas de produção e organização, em favor de formas mais ecológicas e em favor de quaisquer demandas que emergirem das disputas políticas. Na visão de Mouffe, um modelo alternativo seria a própria radicalização da democracia.
IHU On-Line - Política e socialmente, o que significa apostar num populismo de esquerda?
Felipe Calabrez - Acompanhando o raciocínio de Mouffe, seria apostar na possibilidade de radicalização da democracia, na possibilidade de articulação de demandas em torno de princípios democráticos e de cidadania. Seria apostar na possibilidade de construção de uma vontade coletiva através de uma “cadeia de equivalências” capaz de contrapor um “nós”, o “povo”, a um “eles”. Traçar essa fronteira política é fundamental.
IHU On-Line - Em artigo recente, o senhor assinala que o diagnóstico central do livro de Chantal Mouffe é que “a crise da formação hegemônica neoliberal produziu o momento populista que marca a atual conjuntura” e que está em aberto, neste momento, “a possibilidade de construção de uma ordem mais democrática”. Pode explicar o que é este momento populista e quais são as possibilidades que vê nesse sentido?
Felipe Calabrez - O momento populista de que fala Mouffe representa o esgotamento do establishment que governou o capitalismo nos últimos anos. Trata-se na verdade de uma crise da formação hegemônica neoliberal. As contradições do modelo que tanto os partidos da centro-esquerda quanto da centro-direita tentaram gerir, com ares mais ou menos progressistas (aqui indico a análise de Nancy Fraser sobre o que chamou de “neoliberalismo progressista”), têm gerado prolongada insatisfação em populações que não vislumbravam mais alternativas nos partidos tradicionais e seus discursos amenos.
Por essa razão é que no pós-2008 surgiram diversos movimentos contestatórios, à esquerda e à direita. Isso se traduziu na emergência de discursos mais radicalizados à esquerda, tanto dentro do Partido Trabalhista Inglês, com Jeremy Corbyn, quanto no Partido Democrata dos EUA, com Bernie Sanders. O primeiro sofreu derrota histórica e o segundo teve sua candidatura freada pela lógica decisória e burocrática de seu próprio partido. Mas ao menos pode-se dizer que eles chacoalharam os termos do debate.
As possibilidades podem ser pensadas a partir desta constatação: o consenso anterior está sendo contestado. É quando as disputas se acirram. É quando o novo pode nascer.
IHU On-Line - Como a crise da democracia, a explosão das desigualdades e a descoesão social podem gerar transformações? Que possibilidades de transformação vislumbra no Brasil, por exemplo?
Felipe Calabrez - Veja, falar em “crise da formação hegemônica” ou mesmo crise dos partidos políticos tradicionais não é necessariamente a mesma coisa que “crise da democracia”. Sobre isso existem diagnósticos diferentes. Para manter a linha que vínhamos seguindo, eu diria que historicamente é em momentos de certa conturbação da ordem e dos consensos estabelecidos que as coisas acontecem, é quando abrem-se janelas de oportunidades.
IHU On-Line - Por que, na sua avaliação, seguindo o diagnóstico político de Mouffe, os partidos social-democratas “são incapazes de compreender o momento populista e que as demandas articuladas pelos partidos populistas de direita são democráticas”?
Felipe Calabrez - O diagnóstico de Mouffe (e aqui estou simplificando-o) é o de que os partidos social-democratas europeus sucumbiram a uma visão “pós-política” incapaz de oferecer alternativas reais ao modelo hegemônico, e isso por uma série de razões. Além disso teriam ficado presos a uma visão esquemática e incapaz de compreender os processos políticos dinâmicos e uma série de demandas e subjetividades políticas e oferecer a elas uma expressão política viável. Além de tudo, sobretudo no caso dos EUA, como analisado por Fraser, os elementos progressistas vieram à cena política presos a um “identitarismo” que além de não questionar as bases “econômicas” do modelo ainda ganharam um verniz elitista que menospreza os cidadãos menos “cosmopolitas” e ilustrados. A reação da “classe trabalhadora tradicional”, interiorana, pouco ilustrada, branca e ressentida, veio com Trump.
IHU On-Line - Quais são as principais demandas da sociedade brasileira hoje, não compreendidas pela esquerda e pelos sociais-democratas?
Felipe Calabrez - Veja, antes de responder a essa questão (e aproveito aqui para responder sobre que possibilidades de transformação vislumbro para o Brasil, como perguntado acima) é preciso fazer uma ressalva: a análise de Chantal Mouffe é centrada em EUA e Europa. De alguma maneira estamos supondo que o diagnóstico dela se aplica ao Brasil de hoje. Eu penso que nos ajuda bastante, mas é preciso aparar algumas arestas.
O Brasil vinha de um processo de relativa estabilidade política organizada em torno do polo PT-PSDB. Sabemos que as experiências do PT no governo federal foram marcadas por um projeto de inclusão pelo consumo e por um conjunto de políticas públicas de corte progressista e inclusivo. Sabemos também que o PT, enquanto partido no governo, reproduziu a lógica que parece inerente às relações entre poder público e dinheiro, que envolve favorecimentos, irrigação de contratos, dinheiro não declarado financiando campanhas, enfim, uma combinação perversa entre patrimonialismo e lógica mercantil, aquilo a que chamamos de corrupção. Por isso esse processo é repleto de contradições.
Acho interessante a interpretação da antropóloga Rosana Pinheiro-Machado. Ela entende que a relativa melhora econômica de certa camada da população (via consumo) e algum grau de inclusão social podem gerar a sensação de "querer mais", e isso ajuda a explicar a adesão em massa aos protestos difusos que eclodiram em 2013.
Se olharmos para as Jornadas de 2013 em sua heterogeneidade, encontraremos demandas democráticas pela ampliação de bens públicos. Mas também intolerância e um antipartidarismo de traços fascistas. Tinha tudo ali. E no geral o caráter daqueles protestos também era antissistema. Eu penso que parte de nossa tragédia é o seguinte: essa bomba de insatisfações difusas explodiu bem no colo da única experiência progressista que tivemos no Brasil recente. Parece um paradoxo. Mas é compreensível. Essa geração jovem que, parte dela, ascendeu economicamente, conhece o PT governo, o PT establishment, o PT sistema. A imagem de Fernando Haddad ao lado de Geraldo Alckmin em 2013, logo no início dos protestos, diante das câmeras, explicando, com base em cálculos de planilhas, que não seria possível revogar o aumento das tarifas, é simbólica. “É a mesma coisa”, muitos poderíamos pensar. Tínhamos ali então um sentimento antissistema, antipartidos, tanto da parte daqueles que, à esquerda, reivindicavam melhorias e bens públicos (lembremos que o Movimento Passe Livre - MPL não se vinculava a partidos), quanto da parte daqueles que canalizaram sua frustração e insatisfação contra "a política", a "corrupção" e, num pulo, contra "a esquerda". A esquerda que, frise-se, era governo.
E por essa via canalizou-se a revolta não dos que ganharam “economicamente”, mas dos que sentem que perderam. Uma certa classe média, que viu reduzir seu padrão de vida, incomodou-se com o aumento do custo do trabalho doméstico e de pouca qualificação, refletido no preço dos serviços, e ainda por cima se sentiu censurada por não poder mais fazer piada sobre pobre, preto e veado. Essa reação chamou os avanços culturais de “mimimi”, demonstrando sua completa incapacidade de compreensão da realidade social, e deu força política a uma agenda de desmonte de políticas públicas que materializaram aqueles avanços. Por um conjunto de razões esse ódio ganhou expressão política na forma de antipetismo.
Desde 2013 a polarização ideológica só se acirrou. E eu digo que nossa tragédia foi a bomba de insatisfações explodir no colo do PT não para eximir o PT de seus erros, mas pelos efeitos que isso produziu em termos de hegemonia e projetos. A queda de popularidade dos políticos foi drástica e generalizada naquele momento. O resto da história é conhecida. Dilma se reelegeu numa eleição acirradíssima, a oposição não aceitou a derrota eleitoral, o então presidente da Câmara declarou guerra ao governo em rede nacional e seu vice passou-lhe a perna. Orquestrou-se a derrubada da presidente eleita por meio de uma aliança pragmática entre as forças políticas mais fisiológicas e reacionárias do Congresso e a lógica financeira mais vil que o capitalismo periférico é capaz de produzir. E esta última embarcou em 2018 com Bolsonaro e a promessa de seu "fiador econômico" de que o Estado venderia ativos e reduziria investimentos públicos. A promessa de retomada do crescimento é cínica e eles sabem. A lógica rentista e curto-prazista das finanças não precisa de crescimento econômico sustentado. Pelo menos não no curto prazo. Anunciaram a "Ponte para o Futuro", mas viemos ladeira abaixo.
E nesse processo todo quem melhor captou certas demandas da sociedade foi a direita reacionária. Ela soube explorar politicamente o conservadorismo de parte expressiva da sociedade brasileira, desengavetou uma forte "agenda de costumes", fez o "trabalho de base" mais eficiente de que se tem notícia: as Igrejas Evangélicas. Trabalho que não começou ontem.
IHU On-Line - No artigo, o senhor também menciona a urgência de construir uma resposta política de esquerda a essas demandas. Que elementos fundamentais deveriam constituir essa resposta?
Felipe Calabrez - Não tenho uma resposta pronta para isso. Penso que, para começar, precisamos entender melhor essas demandas. Para isso precisamos democratizar muita coisa. Não basta a esquerda entender as "demandas do povo". É preciso democratizar os processos eleitorais em nível local, reduzindo o poder do dinheiro e do compadrio nas eleições, para que o "povo" também ocupe postos de poder.
Mas é preciso entender que parcela significativa das periferias, homens e mulheres mais atingidos pela lógica perversa da mercantilização das coisas, são evangélicos e, portanto, organizam sua visão de mundo em torno de certos valores. É preciso entender a lógica do individualismo, a chamada subjetividade neoliberal. É preciso entender também que temos uma sociedade bastante conservadora, que temos fortes traços autoritários. Não há antipetismo que explique sozinho como a mensagem de Bolsonaro não causou ojeriza em muita gente.
O casamento entre conservadorismo de valores e neoliberalismo nos EUA foi analisado por Wendy Brown num livro magnífico. No Brasil temos algumas análises, como a de Rosana Pinheiro-Machado, que mencionei acima. Procurem no Youtube um canal chamado "Favelado Investidor". Tudo isso nos ajuda a entender. O fato é que sem construir hegemonia, sem "descomunizar o senso comum", disputar visões, regimes de verdade, não há saída. "Bandido bom é bandido morto", ao contrário do que muitos preferem pensar, não é um chavão usado pela elite. Pessoas das periferias pensam isso. Elas são, afinal, afetadas pela violência.
Penso no Rio de Janeiro e em como é possível as pessoas conviverem com a violência do tráfico e a violência policial, do Estado, e elegerem políticos que falam abertamente em atirar na cabeça. Mas o Rio de Janeiro também produziu Marielle Franco, e Marielle deixou um legado e uma energia de luta fortíssima. Enfim, eu não tenho a reposta correta, mas tento pensar publicamente.
IHU On-Line - Como analisa a recente declaração do ex-presidente Lula, de que é plenamente possível que o PT possa não ter um candidato para disputar a presidência em 2022? O que isso significaria para a esquerda?
Felipe Calabrez - Confesso que não acompanhei essa declaração. De todo modo, como venho dizendo, é preciso disputar hegemonia. Sem isso, ficamos presos a falsas polarizações. Como vimos, temos um cenário eleitoral extremamente volátil. Repito as perguntas que fiz no artigo-resenha sobre Chantal Mouffe: Onde está o lulismo enquanto fenômeno eleitoral? Teria sido possível ele se metamorfosear tão rapidamente em seu "oposto", o Bolsonarismo? O que explica que muitos eleitores tivessem Lula como primeira opção e Bolsonaro como segunda?
O PT ainda é o único grande partido de esquerda do país, com base, capilaridade e força institucional. Nesse sentido é importante que ele dispute eleições. Por outro lado, sua estratégia, sobretudo em 2018, não me pareceu a mais razoável. Talvez fosse o caso de o partido aceitar ser vice de chapa, dependendo da conjuntura específica e da estratégia que ela demandar. Veja na Argentina o que Cristina Kirchner conseguiu fazer, sendo vice de Alberto Fernández e voltando ao poder depois de todo tipo de perseguição da oposição e de parte da imprensa. O fato importante é que por lá conseguiu-se resgatar um projeto alternativo ao neoliberalismo radicalizado, depois que este produziu seus habituais estragos.
Por aqui, para falar sobre as perspectivas para o Brasil, ainda tem muito estrago para fazer. É o que convencionou-se chamar de "reformas", que prometem, cinicamente, trazer de volta o crescimento. A ironia é que eles mesmos sabem que elas não trarão, e, por isso mesmo, há um enorme conflito no governo, pois notaram que a agenda de Paulo Guedes gera miséria e não emprego. O problema é que não é possível se reeleger agravando a pobreza e piorando a vida das pessoas. Bolsonaro percebeu isso e tem confrontado em certos momentos seu posto Ipiranga no que diz respeito à prorrogação e ao valor do auxílio emergencial e à retomada de investimentos públicos. Notem que já o estão chamando de populista por conta disso.
Neste momento, o casamento entre o autoritarismo reacionário e o neoliberalismo selvagem está abalado. A contradição é que uma política desejável agora, do ponto de vista econômico e social, pode nos gerar uma tragédia política, que é a continuação da direita reacionária no poder.
As chances eleitorais da esquerda em 2022 dependem de como ela entender esse processo e de como será capaz de formular uma mensagem política que forneça um repertório democrático e de tolerância que sirva como trilha para as insatisfações populares.