Nesta semana, uma das vozes mais altas que se insurgia contra a injustiça social se calou. Aos 83 anos, faleceu, na última segunda-feira, 17-06, dom Moacyr Grechi, reconhecido pelas lutas em defesa de pequenos proprietários rurais, comunidades ribeirinhas, indígenas e trabalhadores sem-terra. Sempre com grande apreço e cuidado pela palavra de Deus, sonhava estudar bíblia em Roma, mas acabou sendo enviado para o norte do Brasil, região de floresta Amazônica, em que a disputa pela terra se configura como uma verdadeira guerra. Além disso, a realidade de um povo sofrido e expropriado acabou conquistando o coração do religioso que se tornara bispo e sua luta passa a ser entre esses pequeninos. “Lembro perfeitamente sua narrativa: ‘diante disso, compreendi que, ou deveria renunciar à missão, ou assumir o compromisso de caminhar com este povo’. E completava: ‘fui convertido pelos pobres’”, recorda Ivo Poletto, filósofo e cientista social. “O catarinense dom Moacyr se tornou um acreano legítimo, um amazônida autêntico. Segundo ele mesmo falava, foi lá no Acre que o povo o ensinou a ser cristão”, completa Antônio Canuto, dirigente da Comissão Pastoral da Terra - CPT.
Para fazer a memória desse que é tido como uma grande liderança dentro e fora da Igreja, a IHU On-Line buscou alguns depoimentos de pessoas que foram próximas a ele e vivenciaram muitas de suas experiências. Além de Poletto e Canuto, Jelson Oliveira, professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR, Paulo Barausse, padre jesuíta, e os teólogos Leonardo Boff e Clodovis Boff, colega de congregação de dom Moacyr.
Jelson destaca que “a Igreja que ele praticou nascia de uma volta ao profetismo que, em última instância, inspirava-se diretamente em Jesus”. E que ainda recorda que o bispo nunca deixou de lado sua paixão pela Palavra. “Sua Bíblia estava suja de terra, marcada de poeira, besuntada pelas águas amazônicas”, destaca. “Ele era um homem de muita fé, completamente imerso na bíblia, na palavra de Deus”, acrescenta Clodovis. Para ele, a segunda marca de dom Moacyr era a “seriedade com que levava esse trabalho de pastor, de denúncias, de desrespeito dos Direitos Humanos, de destruidores da floresta na Amazônia”. Já Leonardo recorda que o bispo aninou muitas lideranças, formando figuras como Marina Silva e Chico Mendes. “Era profundamente fiel a Roma. Mas ao mesmo tempo era extremamente sensível às particularidades da Região Amazônica”, observa.
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Jelson Roberto de Oliveira é professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR, possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná, especialização em Sociologia Política e mestrado em História da Filosofia Moderna e Contemporânea pela mesma universidade e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos.
Ivo Poletto é filósofo e cientista social. Trabalha atualmente como assessor educacional no Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, que articula movimentos, entidades e pastorais sociais em torno da defesa dos direitos sociais da população afetada pelas mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global. Entre 1975 e 1992, foi o 1º secretário executivo da Comissão Pastoral da Terra; de 1993 a 2002, foi assessor da Cáritas Brasileira; em 2003 e 2004, foi membro da Equipe de Mobilização Social do Programa Fome Zero, do governo federal – sobre esse período, escreveu o livro Brasil: oportunidades perdidas – Meus dois anos no Governo Lula (Editora Garamond, 2005).
Paulo Barausse é padre jesuíta. De 2000 a 2009 foi vigário da Paróquia Santa Luzia, localizada em Porto Velho, Rondônia e coordenador da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Porto Velho. Desde janeiro de 2017 é coordenador do Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental - Sares Manaus. Colabora no Comitê – Repam Regional CNBB – Norte 1 (Amazonas - Roraima).
Antônio Canuto atualmente integra a coordenação da executiva Nacional da Comissão Pastoral da Terra - CPT.
Leonardo Boff é doutor em Teologia pela Universidade de Munique. Foi professor de teologia sistemática e ecumênica com os Franciscanos em Petrópolis e, depois, professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É assessor de movimentos populares, reconhecido pelo seu trabalho com a Teologia da Libertação e nas áreas de filosofia, ética, espiritualidade e ecologia. Publicou diversos livros acerca desses temas, dos quais destacamos Nossa ressurreição na morte (Petrópolis: Vozes, 2012), Jesus Cristo libertador (Petrópolis: Vozes, 2011), Cristianismo: o mínimo do mínimo (Petrópolis: Vozes, 2011), Imitação de Cristo de Tomás de Kempis e Seguimento de Jesus (Livro V) (Petrópolis: Vozes, 2016), Ecologia - Grito da terra, grito dos pobres. Dignidade e direitos da mãe terra (Petrópolis: Vozes, 2015) e Reflexões de um velho teólogo e pensador (Petrópolis: Vozes, 2018).
Clodovis Boff é teólogo, frade da Ordem dos Servos de Maria - OSM. Licenciado em Filosofia, é doutor em Teologia pela Universidade de Lovaina, na Bélgica. Foi professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC-RJ, no Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, na Faculdade de Teologia N. S. da Assunção de São Paulo (SP), no “Studium Theologicum” de Curitiba e na Pontifícia Faculdade “Marianum” de Roma. Atualmente é professor na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, campus de Curitiba. Entre as obras publicadas, destacamos Teologia e prática: teologia do político e suas mediações (Vozes, 1978); Como trabalhar com o povo: metodologia do trabalho popular (Vozes, 1984); Como fazer Teologia da Libertação (com L. Boff ,Vozes, 1986); Teoria do Método Teológico (Vozes, 1998); Introdução à mariologia (Vozes, 2004); Mariologia social: o significado da Virgem para a sociedade (Paulus, 2006); A Regra de Santo Agostinho: apresentação e comentários (Vozes, 2009); Dogmas marianos: síntese catequético-pastoral (Ave-Maria, 2010); Escatologia: breve tratado teológico-pastoral (Ave-Maria, 2012).
IHU On-Line – Qual a importância de dom Moacyr para os movimentos sociais?
Jelson Oliveira – Dom Moacyr não foi um bispo qualquer. Ele era da rara cepa de um dom Tomás Balduíno, de um dom Pedro Casaldáliga e de um dom Paulo Evaristo. Seu nome consta entre os maiores defensores das causas sociais e ambientais, em especial da Amazônia. Ele estava entre os 67 representantes das 27 dioceses e prelazias que participaram, entre 19 e 22 de junho de 1975 (há exatos 44 anos) do Encontro de Bispos e Prelados da Amazônia, que deu origem à Comissão Pastoral da Terra, por onde dom Moacyr circulou durante toda a sua vida, exercendo, com coragem e lucidez, a sua missão.
Joelson Oliveira (Foto: Unoesc)
Foi por ali que eu o encontrei diversas vezes. Sua posição profética causou-lhe inúmeros problemas e perseguições. Como o primeiro presidente nacional da CPT, fora convocado para a CPI da Terra de 1977, da qual participaram outros vários bispos. Sua voz era profética, inspirada, inspiradora. Nunca falou em nome dos trabalhadores e trabalhadoras. Tinha consciência de que eles/elas deveriam falar por si mesmos e que a Igreja deveria ser a motivação e a inspiração, o impulso e o ânimo. O protagonismo deveria ser do povo. Foi assim que ele sempre se envolveu com os movimentos sociais, com os sindicatos, as organizações indígenas e com todas as iniciativas dos trabalhadores/as.
Como poucos, sabia que o protagonismo não era tarefa individual, mas dependia da capacidade de organização do povo em busca de seus direitos. Acho que foi isso que o colocou não à frente, mas no meio dos sem-terra, dos seringueiros, dos posseiros e das comunidades tradicionais amazônicas. Foi aí que ele conviveu com Chico Mendes e com Marina Silva, por exemplo. A floresta e o povo da floresta perderam um defensor.
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Ivo Poletto – Conheci dom Moacyr em 1974, no processo de preparação do Encontro Pastoral da Amazônia Legal, que foi realizado em Goiânia em junho de 1975. Ele era o bispo responsável da Linha Missionária da CNBB, e por isso assumiu a responsabilidade pelo Encontro e pelos seus encaminhamentos, de modo especial o de buscar a aprovação da Presidência da CNBB à proposta da criação da Comissão de Terras – que logo foi denominada Comissão Pastoral da Terra. Foram quatro meses de diálogo tenso, especialmente porque os participantes do Encontro propuseram a necessidade de que fosse uma Comissão ligada pastoralmente à CNBB, mas autônoma em relação à sua organização e administração, algo difícil de entender para a estrutura da Igreja Católica. Mas dom Moacyr, convicto do acerto da proposta inovadora, especialmente para que a CPT tivesse possibilidade de atuar com sindicatos e com igrejas cristãs sem depender de decisões institucionais em geral lentas, foi quem conseguiu a bênção do então presidente, dom Aloísio Lorscheider, para que se desse início à missão dessa primeira “pastoral social”.
Ivo Poletto (Foto: CNBB)
Mas, dom Moacyr não se tornou referência vital para os movimentos sociais a partir de sua atuação na criação da CPT e dos muitos anos em que foi seu presidente. Ele já animava um processo participativo e de criação de comunidades eclesiais de base anos antes da existência da CPT. E seu trabalho já estimulava e defendia a organização autônoma dos trabalhadores rurais, de seus sindicatos, tanto para a defesa dos direitos dos posseiros, como para a luta pela terra. Sou testemunha de como a sua prática na Igreja do Acre e Purus iluminou, junto com as práticas de outros colegas bispos, como dom Pedro Casaldáliga, dom Tomás Balduíno, dom Antônio Fragoso e outros, os passos da CPT. Afinal, com impedimentos que levaram os três candidatos a assumir a dinamização desta nascente pastoral, terminei convidado e aceitei, depois de garantir que continuaria membro da Igreja de Goiás, a responsabilidade de dar início sozinho ao seu trabalho de âmbito nacional, correndo todos os riscos que a ditadura significava para quem se colocasse ao lado dos camponeses.
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Paulo Barausse – Dom Moacyr sempre deu uma importância aos movimentos sociais. Em seus longos anos de trabalho no Acre, quase 30 anos, deu uma contribuição enorme na formação dos sindicalistas, agentes de pastorais sociais comprometidos com a transformação social. Foi um grande incentivador das CEBs. Sabemos do contexto difícil que ele enfrentou. O Estado do Acre era conhecido nacionalmente pela violação e abusos cometidos contra os direitos fundamentais. Havia desrespeito para com os mais pobres, populações ribeirinhas, indígenas, afrodescendentes e seringueiros. O maior problema que ele encontrou foi o crime organizado, e o caso do coronel Hildebrando Pascoal, que foi eleito deputado federal. Com a ajuda de Luiz Francisco de Souza, então Procurador Federal da República, conseguiram quebrar a imunidade parlamentar de Hidelbrando e colocá-lo na cadeia.
Paulo Barausse (Foto: Reprodução | Facebook)
Lembro de sua felicidade na abertura do 12° Intereclesial que se realizou em Porto Velho, de 21 a 25 de julho de 2009, à luz do tema: ‘CEBs, Ecologia e Missão’, e do lema ‘Do ventre da terra, o grito que vem da Amazônia’. Fez questão de partilhar sua alegria de ter participado de todos os Intereclesiais.
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Antônio Canuto – O catarinense dom Moacyr se tornou um acreano legítimo, um amazônida autêntico. Segundo ele mesmo falava, foi lá no Acre que o povo o ensinou a ser cristão. Não um cristão daqueles que fica olhando para o céu, esperando milagres, mas um cristão comprometido com o Evangelho, com seus valores de aceitação do outro, da solidariedade, a luta por uma sociedade mais justa.
Antônio Canuto (Foto: CPT)
Dom Moacyr acreditava no povo. Não eram salvadores de fora que iriam resolver os problemas que o povo enfrentava, mas a sua consciência, sua organização. Por isso ele apostou nas Comunidades Eclesiais de Base, que junto com as celebrações discutiam a realidade que o povo vivia, a realidade que a comunidade vivia. E do trabalho feito nas comunidades foram se organizando em todos os lados os sindicatos com suas lideranças. Foi neste cantinho que se forjaram figuras como as de Chico Mendes e Marina Silva.
E não ficou só no apoio aos sindicatos, mas deu a maior força para a organização dos seringueiros que foram descobrindo na prática o valor da preservação da natureza. Ele deu todo o apoio às lutas dos indígenas. E apoiou a criação do PT no estado.
IHU On-Line – Como compreender a perspectiva de Igreja a partir de d. Moacyr?
Jelson Oliveira – O legado de dom Moacyr é extremamente inspirador. A Igreja que ele praticou nascia de uma volta ao profetismo que, em última instância, inspirava-se diretamente em Jesus, marcada por uma atenção redobrada com a realidade, à qual se somava um apoio incondicional à causa da justiça e da fraternidade. Seu modo de compreender a Igreja e o seu papel no mundo está muito de acordo com a mensagem do Papa Francisco. Uma Igreja simples, pobre, amiga dos pobres não porque tem para com eles uma compaixão passiva, mas porque acredita na sua força e se apropria de uma interpretação do Evangelho que o torna uma forma de apoio e de incentivo à luta social. Sua Bíblia estava suja de terra, marcada de poeira, besuntada pelas águas amazônicas.
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Ivo Poletto – Em diversas oportunidades, dom Moacyr contou em detalhes o que ele saudava como sua conversão. De um religioso que se preparou para assumir a formação nos seminários de sua congregação, ao ser nomeado bispo do Acre e Purus e lá assumir a nova missão, deparou-se com a violência que atingia os direitos e a vida especialmente das famílias de posseiros. Numa oportunidade, foi ao encontro de uma destas comunidades junto com representante do que se dizia ter direito de propriedade da terra que era de uso há décadas dos posseiros. Ao exigir primeiro dialogar só com os posseiros, ouviu deles as denúncias de violências e o apelo de que ele, sendo bispo, ficasse do seu lado. Lembro perfeitamente sua narrativa: diante disso, compreendi que, ou deveria renunciar à missão, ou assumir o compromisso de caminhar com este povo. E completava: fui convertido pelos pobres.
A partir desta experiência de conversão, dom Moacyr foi, durante toda a sua vida, e de modo especial em sua participação ativa na CPT, um fomentador de movimentos sociais através de práticas de denúncia e de anúncio, de modo especial tendo como referência os avanços de consciência e de conquistas do povo de suas comunidades de base. E deu grande contribuição ao alertar sobre a necessidade de que as pessoas crescessem também em seu interior, em sua espiritualidade, para enfrentar as injustiças e celebrar as vitórias, possíveis por causa das suas organizações e da presença amorosa e libertadora do Deus de Jesus Cristo.
Dom Moacyr tornou-se um dos bispos que mais promoveu a Teologia da Libertação, de modo especial nos processos de formação em sua Igreja Particular. Por isso, deu uma contribuição essencial ao que se denominou “igreja que nasce do povo”. Grande biblista, deu sua contribuição a esta reflexão e busca de um novo modo de ser Igreja destacando a necessidade de não perder a centralidade da relação com Jesus Cristo, presente na história, nos pobres e na Igreja. À CPT sempre lembrou seu caráter pastoral, de serviço eclesial aos povos do campo, e por isso, a necessidade da busca de uma profunda espiritualidade, que ganhou profundidade com as contribuições do monge beneditino Marcelo Barros, contratado como assessor do Secretariado Nacional ainda nos anos 1970.
Em 1980, contribuiu significativamente para a aprovação do documento Igreja e Problemas da Terra na Assembleia Geral da CNBB. Trata-se de um documento significativo, de modo especial por diferenciar o que denominou “terra de negócio” e “terra de trabalho”, fundamentando a denúncia da defesa de toda e qualquer propriedade, indicando o trabalho a serviço da vida, com produção de alimentos, como critério de sua função social e legitimidade.
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Paulo Barausse – Sua perspectiva de Igreja era de baixo para cima, uma Igreja Povo de Deus. Como já comentei, ele valorizava ao máximo a riqueza da experiência dos grupos de base. Porque, numa sociedade onde durante muitos séculos reinou a injustiça, de forma que entrou dentro das pessoas, elas nem se dão conta. Lembro de algumas frases que ouvi dele: “A gente precisa fazer grandes mudanças, vou dar um exemplo: ‘durante muitos séculos nosso país e outros países do continente foram colonizados pelos europeus e aí muitas populações indígenas foram trucidadas, assassinadas e destruídas, os afrodescendentes que hoje vivem no meio de nós e cujos ancestrais vieram da África e foram escravizados injustamente, atualmente necessitamos recriar esta situação. Devemos lutar para esta justiça que recria não somente colocar em cima os que estão embaixo, mas para criar novas relações”.
Estas foram suas palavras na abertura do 12° Intereclesial: “Gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares não importantes, conquistam coisas extraordinárias”. Essa frase proferida por ele dá-nos a certeza de que somente a partir dos pequenos, com os pequenos, na base da Igreja e da sociedade, poderemos criar uma vida melhor, mais justa e mais fraterna.
Valorizando os leigos(as), durante o longo período que trabalhou na Diocese do Rio Branco, com a falta de presbíteros, deu início a iniciativas inovadoras: Testemunha Qualificada do Matrimônio, Ministro Extraordinário do Batismo. As comunidades precisam ser incentivadas na linha da missão. É preciso formar discípulos(as) missionários(as). Acredito que certas propostas e iniciativas, que o Sínodo para Amazônia vem propondo, dom Moacyr já tinha claro em sua prática pastoral. Lembro de suas palavras: “Apesar de o ritmo da eucaristia na Amazônia ser mais devagar, porque dá para manter de duas a três celebrações por ano, as comunidades de base precisam ser preparadas para valorizar o sacramento da eucaristia: o corpo e o sangue de Cristo, que deu a vida para que nós tenhamos vida, para criar a Igreja”.
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Antônio Canuto – Os anos 70 e 80 foram anos muito especiais para a Igreja do Brasil. Em 1965, havia acabado o Concílio Vaticano II, com toda a força de renovação que trouxe. Em 1968, em Medellín, na Colômbia, os bispos da América Latina e do Caribe traduziram para a realidade latino-americana as propostas renovadoras do Concílio. Dom Moacyr era mais um daqueles bispos que assumiram com vigor as novas propostas, que colocaram como centro da evangelização os pobres, como exigia o Evangelho. Ao colocar os pobres como o centro, não simplesmente recebedores das mensagens da igreja, mas como protagonistas da própria ação da Igreja, se confessa que são os pobres os que nos evangelizam. Por isso faz todo sentido quando ele disse que foi o povo do Acre me ensinou a ser cristão.
IHU On-Line – Como a realidade brasileira foi anunciada e denunciada por d. Moacyr?
Jelson Oliveira – Ele sempre teve uma clareza imensa sobre a realidade brasileira. Tal lucidez era fruto de uma intuição aguçada, mas sobretudo, de estudo e atenção, somados ao compromisso direto, à presença e à atuação na base. Ele estava lá onde os problemas aconteciam. E é por isso que ele falava com tanta propriedade. Esse era o seu modo de anunciar e de denunciar: sua cabeça pensava com os pés no chão. Ele viu o problema dos conflitos pela terra no norte do Brasil nos anos 1970, entendeu como ninguém a importância da Igreja e da organização social nessa região, compreendeu a importância da Amazônia para todo o Brasil, lutou contra todas as ditaduras, falou dos indígenas e dos ribeirinhos, dos povos distantes e desconhecidos do interior do país, defendeu a floresta muito antes que ela se tornasse assunto internacional. Uma tal visão da realidade o levou a denunciar fortemente o latifúndio, a violência dos jagunços, o avanço do agronegócio, os grandes projetos que colocavam em xeque a vida dos povos da floresta, a destruição e a extinção acelerada da vida, o trabalho escravo, a fome e a miséria dos povos com os quais convivia.
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Ivo Poletto – Dom Moacyr, fiel à sua missão de promover a presença libertadora de Cristo na vida das pessoas, nunca pactuou com as injustiças e com a violência contra os direitos dos pobres, chegando a expor a sua própria vida em defesa dos injustiçados. Não teve dúvidas de fazer denúncias através de suas pregações, de documentos, de depoimentos no Congresso Nacional, em pronunciamentos internacionais. Para ele, as políticas que favoreciam a grilagem, as grandes propriedades, deixando de lado o direito dos posseiros, dos povos indígenas, dos seringueiros, bem como o direito dos sem-terra de aspirarem uma área para produzir alimentos para sua família e a sociedade, foram denunciadas como um crime contra a vida. A construção de uma sociedade verdadeiramente humana deve ter como fundamento os direitos das pessoas e, de modo especial, dos empobrecidos. Só com justiça haverá paz.
Como parte de sua justa indignação, ele não poupou críticas à ditadura, nem esforços na defesa dos perseguidos por dedicarem a sua vida à busca de uma sociedade em que todas as pessoas pudessem viver com dignidade. Lembro que muitas vezes, ao perceber sinais de que estavam controlando o diálogo telefônico, quase gritava: “sei que estão nos controlando; pois saibam que isso não nos leva a ter medo, já que buscamos a verdade, defendemos a verdade e lutamos em favor da vida lutando contra as injustiças”.
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Paulo Barausse – Era claro e objetivo na sua fala: nós, Igreja, temos de falar com humildade e questionar o que há de ruim na sociedade. Muitas coisas que não são boas também acontecem entre nós. Hoje, o pobre é novamente excluído. A Igreja deve sair de si, saber-se colocar de novo nos caminhos da humanidade, lá onde o povo está, lá onde o povo sofre, lá onde o povo busca a sua felicidade, ali solidária também deveria estar a Igreja.
Dom Moacyr era profeta, sempre nos ajudava a ver a origem da pobreza: a cobiça e a injustiça. Para ele, não é possível libertar os pobres sem comprometer-se com a reconciliação entre ricos e pobres, para uni-los no combate contra a injustiça social. Foi isto que a Igreja Católica fez desde a Conferência de Medellín, Puebla e também no encontro de Aparecida, estes grandes encontros que os bispos da América Latina chamaram de opção preferencial pelos pobres é uma forma de a gente colocar em prática este apelo de Deus.
Lembro de minha atuação na Comissão Justiça e Paz – Arquidiocese de Porto Velho, vivemos momentos difíceis, pois de 2002 a 2009 tinham sido executados mais de 110 presos. Em 2002, depois de uma trágica chacina onde foram executados 27 presos, elaboramos uma denúncia junto à Comissão de Direitos Humanos da OEA. Pela primeira vez o Estado Brasileiro foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sempre mantive dom Moacyr informado das denúncias, e nunca deixou de assinar os documentos necessários com o timbre da Arquidiocese.
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Antônio Canuto – Naqueles anos da ditadura, a ação ao lado do povo era sempre suspeita. Os militares viam em todo canto a ameaça comunista. E os passos de quem defendia o direito do povo da terra, o direito dos indígenas, eram seguidos de perto. Ele mesmo contou que uma reunião da CPT e do Cimi que se realizava na casa dele tentou ser gravada. Uma irmã descobriu um gravador pequeno que o Exército usava na janela da sala. E a vida de dom Moacyr foi posta a prêmio. O que se suspeitava foi confirmado pelo dono da Rede Globo no Acre, que, já muito doente, chamou o bispo para lhe confidenciar que numa ocasião um militar visitou a emissora e lhe havia dito que se estava preparando uma emboscada para matar o bispo.
IHU On-Line – Qual a lembrança mais forte que você tem dele?
Jelson Oliveira – Dom Moacyr foi jurado do Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio, organizado pela CPT-PR, junto com outras organizações, no ano de 2001, para denunciar a onda de violência contra o povo do campo praticado pelo governo de Lerner. Junto com várias personalidades do mundo jurídico, acadêmico e artístico, dom Moacyr representou corajosamente a Igreja nesse evento, que havia sido amplamente atacado pelo governo. Ele não se intimidou em nenhum momento. Sua voz sábia proferiu um dos votos mais emocionantes, pedindo a condenação do então governador.
Uma voz que eu ouvi novamente, cheia de espírito, na abertura do Encontro Intereclesial das CEBs, em Rondônia, em 2009, quando ele lembrou o marcante ditado africano que serviu como emblema (inesquecível) daquele encontro: “gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares não importantes, conseguem mudanças extraordinárias”. Mas o meu coração também guardou outra lembrança, bem mais simples: depois da abertura do Tribunal de 2001, no Teatro da Reitoria, na UFPR de Curitiba, estávamos no fundo do palco limpando a lama que havia sido espalhada durante a cerimônia de abertura e, de repente, o bispo meteu-se porta adentro, oferecendo-se: “posso ajudar em algo?” Esse era dom Moacyr. Sabia estar no palco e nas coxias. Essa atitude fará muita falta.
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Ivo Poletto – A maior lembrança que guardo com carinho, por ter sido prática que me ajudou a crescer como pessoa e como agente social e religioso, foi a radical confiança de dom Moacyr em relação ao trabalho que realizei no Secretariado da CPT. Ele vivia e atuava no Acre, quase inacessível, mesmo por telefonia. Frente a isso, ele nunca teve dúvida de deixar folhas assinadas para que, quando necessário, pudesse publicar denúncias em defesa de quem estava sendo ameaçado em seus direitos. É claro que esta confiança significava uma responsabilidade partilhada.
Na experiência de trabalho na CPT, nunca senti que dom Moacyr desejasse centralizar o poder. Pelo contrário, assumiu maravilhosamente a sua responsabilidade de Presidente contando sempre com a cooperação das pessoas contratadas para realizar o que se impunha no dia a dia naqueles tempos sombrios da ditadura militar a serviço dos privilégios das elites internas e externas. Agradeci a ele em vida, e conto que agora ele continue me apoiando no que ainda estou tentando realizar como parte de minha missão, agora no Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental.
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Paulo Barausse – Guardo uma lembrança muito forte. Era o ano de 1997, estava iniciando a Teologia em Belo Horizonte. Eram os anos de chumbo que ele vivia no Acre. Se encontrava em Brasília depondo contra o então deputado federal Coronel Hidelbrando e foi entrevistado no Jornal Nacional. Lembro de sua frase: “vim depor, sou testemunha, se eu não viesse não poderia continuar exercendo meu ministério, pois seria incompatível”.
Também lembro que fui acolhido pelo dom Moacyr em fevereiro de 2000. Era diácono recém-ordenado. A missão a mim confiada foi coordenar o Centro de Defesa dos Direitos, que na época era vinculado ao Movimento Nacional dos Direitos Humanos. A pedido de dom Moacyr foi que demos uma nova reconfiguração, passando a ser Comissão Justiça e Paz - Arquidiocese de Manaus. Nos finais de semana trabalhava como vigário na Paróquia Santa Luzia. A Paróquia estava localizada num bairro de periferia de Porto velho. Permaneci em Porto Velho até dia 29 de julho de 2009. Alguns dias depois do encerramento do 12º Intereclesial das CEBs.
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Antônio Canuto – As denúncias que a toda hora a CPT fazia das violências contra as famílias dos posseiros, lavradores e sem-terra eram assumidas por ele. Como presidente da CPT, em 1977, foi convocado pela Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a terra. Sendo ele ainda presidente da CPT, a Assembleia Geral da CNBB, em 1980, fez um pronunciamento contundente sobre a Igreja e os Problemas da Terra.
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Leonardo Boff – Dom Moacyr Grechi é um dos bispos mais exemplares que conheci em minha vida. Durante anos, a partir dos anos 70, passava janeiro/fevereiro e julho na diocese de Rio Branco junto ao bispo dom Moacyr. Lá trabalhava meio ano meu irmão, frei Clodovis, da mesma Ordem dos Servitas de dom Moacyr. O outro meio ano ficava como professor na PUC-Rio. A base de toda a diocese era constituída por uma vasta rede de comunidades de base, no interior da floresta e nas pequenas cidades e vilas do Estado. Como bispo, tinha tanta influência quanto o governador. O povo do interior vinha a ele pedir internação no hospital, dirigido pelas Irmãs Servas de Maria, da mesma Ordem, ou resolver qualquer problema. Dom Moacyr se embrenhava por semanas na mata, visitando os seringueiros, os ribeirinhos, os indígenas e comunidades de base.
Leonardo Boff (Foto: Arquivo pessoal)
Ele formou um grupo de lideranças, das quais as mais destacadas foram Chico Mendes, Marina Silva, os irmãos Viana, o Tião, senador e governador, e Jorge, por duas vezes governador e depois senador, e outros. Com eles mantinha contatos de formação, unindo política com ética, defesa da floresta e dos direitos dos ribeirinhos e garimpeiros. Mesmo vivendo num lugar dos mais longínquos, cultivava a teologia, lia muito a exegese e todos os livros importantes de Mariologia, pois Maria é a patrona da Ordem dos Servos de Maria.
Coisa curiosa e notável: preparava cada sermão que fazia, abrindo os vários livros de exegese sobre os textos bíblicos e os estudava com atenção. Nunca vi uma pessoa tão rigorosa no estudo. Era profundamente fiel a Roma. Mas ao mesmo tempo era extremamente sensível às particularidades da região amazônica. Animou as lideranças das comunidades de base, mulheres e homens para serem criativas e inventivas em suas celebrações. Até elaborou um roteiro de celebração da Ceia do Senhor (não era missa, que é um conceito litúrgico e canônico), em que o mais idoso e respeitável da comunidade, junto com outros e outras, presidia uma celebração onde se repartia o pão e o suco de cupuaçu.
Era um grande defensor da causa indígena e ocupou nesse sentido funções junto à CNBB. Sofreu vários acidentes de carro – suspeito que alguns eram atentados. Sofria muito, a ponto de quase não poder dormir deitado. Nunca o vi se queixar. Como arcebispo de Rondônia, continuou criando lideranças políticas e comunitárias. Organizou belamente um dos grandes Encontros das Comunidades de Base de todo o Brasil com mais de três mil pessoas. Foi aí que o encontrei em sua casa simples e em seu escritório junto a muitos livros. Discutimos os rumos da Teologia da Libertação, da agenda nacional e da importância de a Igreja formar lideranças no campo da fé e no campo da política.
Sem tomar partido, sabia articular a fé com o compromisso social. Corajoso, denunciava os crimes do latifúndio e as torturas no Brasil. Como era profundamente espiritual, colocava tudo na perspectiva da fé e da entrega confiante em Deus. Dom Moacyr parecia um dos bispos dos primórdios do cristianismo que enfrentavam a opressão do império romano com coragem. Possuía uma irradiação pessoal que contaminava as pessoas. Os pobres e os pequenos lhe tinham grande veneração, pois lhes dispensava especial atenção. Ele ficará na história eclesiástica do Brasil como um bispo do Brasil profundo, da Amazônia de Chico Mendes e dos indígenas, ribeirinhos e seringueiros que sempre defendeu. Era meu irmão.
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Clodovis Boff – Ele era um homem de muita fé, completamente imerso na bíblia, na palavra de Deus. Seus sermões em torno do Evangelho de domingo eram muito escutados e apreciados. Quando era jovem, queria até se formar em bíblia em Roma, mas o geral pediu que viesse para cá para prestar seu trabalho para depois, então, se formar em bíblia. Mas, logo em seguida começou com os compromissos de provincial e de bispo já novo e o projeto de estudo não se realizou. Mas ele continuou sempre muito ligado à bíblia, sempre fazia suas “Ave-Marias” em cima da palavra de Deus, chegando até a ser apelidado de “rabi” pelos colegas dele em Roma.
Clodovis Boff (Foto: Grupo Marista)
A segunda lembrança que tenho dele é da seriedade com que levava esse trabalho de pastor, de denúncias, de desrespeito dos Direitos Humanos, de destruidores da floresta na Amazônia. Ainda foi presidente da CPT durante muitos anos, também trabalhou no Cimi. Era um homem que se expunha do ponto de vista das denúncias sociais, o que lhe revelavam não só coragem, mas também objetividade, sempre bem informado, com dados e em cima desses dados concretos que fazia a sua denúncia. Inclusive, era muito respeitado no movimento social e político na Amazônia, pois quando falava era sempre com objetividade e seriedade do ponto de vista da verdade social. São estes dois dados: a sua personalidade e amor à palavra de Deus, e a grande coragem de denúncia profética do ponto de vista social. É isso que o caracterizou e no que o pessoal mais lembra dele.
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Marina Silva, ex-senadora, foi uma das lideranças que esteve próxima a dom Moacyr. Ela não esconde a gratidão pelos cuidados que o religioso teve com ela, chegando a salvá-la de uma grave doença. A pedido da IHU On-Line, gravou esse vídeo em homenagem a ele.
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Nascido em 19 de janeiro de 1936 em Turvo, Santa Catarina, dom Moacyr foi ordenado presbítero da Ordem dos Servos de Maria - OSM em 29 de junho de 1961. Em 1972, foi nomeado prelado do Acre e Purus. Foi ordenado em 1973 e, em 1986, quando foi criada a Diocese de Rio Branco, foi nomeado como seu primeiro bispo. Em 29 de julho de 1998, foi nomeado Arcebispo de Porto Velho, cargo que ocupou até sua renúncia em 30 de novembro de 2011. Sempre muito atento a causas sociais, foi um dos criadores da Comissão Pastoral da Terra - CPT, entidade da qual atuou como presidente por oito anos, e do Conselho Indigenista Missionário - Cimi. Seu foco sempre foi a defesa dos pequenos agricultores, dos indígenas, dos seringueiros e de muitos outros em situação de exclusão social. Ainda é lembrado como grande incentivador das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs.
Dom Moacyr também foi membro da Comissão Episcopal de Pastoral da CNBB, de 1975 a 1978; presidente do Regional Norte 1 da CNBB por dois períodos; membro da Comissão Episcopal para a Doutrina da Fé, de 1995 a 2003 e delegado do Brasil na V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, em 2007. Entre tantas marcas de sua militância, destaca-se a denúncia contra Hildebrando Pascoal, conhecido popularmente como o Deputado da Motosserra. Eleito deputado federal em 1998, no ano seguinte Hildebrando teve o mandato cassado e foi expulso de seu partido, o então PFL, sendo condenado criminalmente por liderar um grupo de extermínio no Acre e integrar esquema de crime organizado para tráfico de drogas e roubo de cargas (que atuaria também no Maranhão). Já foi condenado por tráfico, tentativa de homicídio e corrupção eleitoral.