Por: Patricia Fachin | 08 Junho 2017
O anúncio da decisão dos Estados Unidos de saírem do Acordo de Paris “não causou surpresa”, mas um “grande baque” às negociações que têm sido realizadas entre os países membros da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, “porque o consenso aprovado no Acordo de Paris, que foi negociado por mais de uma década, é muito difícil de ser concretizado e repetido”, diz Maureen Santos na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Na avaliação dela, o argumento de Trump de que as metas impostas aos EUA são maiores que as impostas a outros países não é convincente. “O Acordo de Paris não é desigual para os EUA exatamente porque é universal e, ao mesmo tempo, quem ditou o que vai cortar, em que e quando (Contribuições Nacionalmente Determinadas - NDCs, na linguagem técnica) foram os próprios Estados Unidos quando entregaram suas metas voluntárias, que, diga-se de passagem, estão bem abaixo do que seria algo superambicioso”, afirma. Além disso, pontua, a pressão dos EUA para que o acordo firmado em 2015 seja revisado para incluir o país “soa uma loucura”, porque iria “piorar o que já é frágil”.
Segundo Maureen, ainda é cedo para avaliar como os demais países irão se movimentar na COP 23, mas o fato é que a próxima Conferência do Clima, que ocorrerá na Alemanha, “será realizada com um elefante na sala, já que os Estados Unidos continuam membros da Convenção e poderão continuar participando das reuniões sobre a implementação do Acordo de Paris até que o processo de saída seja formalizado, e isso deverá durar até quatro anos”.
Maureen Santos | Foto: Boel.org
Maureen Santos é coordenadora do Programa de Justiça Ambiental da Fundação Heinrich Böll Brasil e professora do quadro complementar da graduação em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e pesquisadora da Plataforma Socioambiental do Brics Policy Center. Possui mestrado em Ciência Política pelo IFCS/UFRJ e graduação em Relações Internacionais pela Universidade Estácio de Sá.
Na última década, dedicou seu trabalho à Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional - Fase, realizando formação de base, educação popular e construção de redes e articulações sobre comércio internacional, integração regional, meio ambiente e mudanças climáticas. Monitora as negociações da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas - UNFCCC, em especial o tema de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação - REDD e Adaptação. Compôs uma das equipes de pesquisadores do High Level Panel of Food Security da FAO, que produziu relatório sobre mudanças climáticas e segurança alimentar.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como avalia a posição do governo dos EUA em sair do Acordo de Paris e o argumento do presidente Trump de que as imposições postas aos EUA são maiores do que a outros países, como a China, por exemplo? Ele sugere ainda refazer as negociações de modo que elas sejam “justas” aos americanos. Como vê essa postura? Em que medida ela está correta ou não?
Maureen Santos - Frente às mudanças políticas e econômicas nos EUA desde a entrada de Trump e como ele vem cumprindo suas promessas de campanha em vários setores, não causou surpresa sua decisão de se retirar do Acordo, muito menos a forma espalhafatosa e pouco sofisticada em que foi feita. Os argumentos realmente foram muito vazios, mas falarei disso depois. Talvez tenha me causado mais estranheza o incrível “consenso” global e clamor sobre o tema de grande parte da população do país e global, da sociedade civil internacional, da mídia, das economias mais fortes do mundo e até mesmo das empresas transnacionais de diversos setores, inclusive as petroleiras e mineradoras. A impressão que tenho é que o entendimento sobre o acordo é o mais variado possível já que não vejo no mundo desigual em que vivemos a possibilidade — sem debater a fundo o modelo de desenvolvimento, suas tragédias e quem as provoca — de que todos e todas possam estar de mãos dadas no mesmo barco pensando na manutenção do equilíbrio climático do planeta. Muitos aí por trás desse discurso do ‘save the climate’ precisam reconhecer sua dívida histórica e pagar por isso, outros precisam simplesmente parar de existir porque não é possível seguir nesse mundo com as mesmas práticas de séculos atrás ou novas formas de colonialismo, agora com caras mais esverdeadas ou descarbonizadas. Sabemos que a realidade é muito mais complexa e repleta de contradições.
Nesse sentido, isso me leva a algumas outras interpretações. Do ponto de vista do multilateralismo em si, é sim um grande baque, porque o consenso aprovado no Acordo de Paris, que foi negociado por mais de uma década, é muito difícil de ser concretizado e repetido. Vemos no mundo, em diversos regimes, como o multilateralismo vem sendo impactado pela dificuldade em colocar todos os países em pé de igualdade, em teoria pelo menos, para tomar medidas que precisam ser feitas de forma coletiva. O Acordo de Paris inaugurou uma nova forma de multilateralismo ao trazer um modelo de bottom-up no qual cada país diz o que irá fazer em relação ao tema-problema, nesse caso o corte de emissões de gases de efeito estufa - GEE e a crise climática. Os modelos que o sistema internacional conhecia diziam respeito a medidas top-down, nas quais as decisões eram implementadas de cima para baixo. O Protocolo de Quioto, que criou uma meta global de redução de emissões para os países do chamado Anexo I, relativos aos desenvolvidos, segue neste formato. Já Paris traz essa maior flexibilidade.
Pego então esse gancho para falar sobre os argumentos utilizados por Trump como justificativa. O Acordo de Paris não é desigual para os EUA exatamente porque é universal e, ao mesmo tempo, quem ditou o que vai cortar, em que e quando (Contribuições Nacionalmente Determinadas - NDCs, na linguagem técnica) foram os próprios Estados Unidos quando entregaram suas metas voluntárias, que, diga-se de passagem, estão bem abaixo do que seria algo superambicioso. A ideia inclusive de serem voluntárias partiu deles durante o processo de negociação. Além disso, a única coisa juridicamente vinculante no acordo é a revisão dessas NDCs, primeiramente, em 2025. Então afirmar que o acordo é prejudicial ou desigual para os Estados Unidos não faz sentido, já que nem as NDCs são obrigatórias, mas somente sua revisão.
A decisão de sair do acordo e pressionar para que ele mude para receber os EUA de volta me soa uma loucura, no sentido de piorar o que já é frágil. Obviamente, as medidas tomadas por Trump em março passado, de rever a Lei de Energia Limpa e o plano de ação climática, já apontavam que não seria possível seguir com as mesmas metas comprometidas na convenção climática, e a saída do novo acordo global sacramenta essas ações.
Do ponto de vista do acordo em si, o Acordo de Paris é um catálogo “sem fotos”, composto por múltiplos temas e que, no momento, as negociações buscam criar regras comuns para depois preenchê-lo e ver como seguem no futuro. É um acordo sem prazo de validade, diferente de Quioto, que termina em 2020. As Partes precisam, e por isso toda a pressão para aumento das ambições, trabalhar para que este catálogo seja preenchido o mais rápido possível e as NDCs possam ser mais ambiciosas em relação ao corte de emissões pretendido, já que se formos analisar o que foi entregue em 2015, não cumprem com o objetivo dos 2°C, descrito no Artigo 2 do acordo, muito longe de se chegar ao esforço dos 1.5°C. Daí a importância das revisões das metas voluntárias. Sem os EUA isso se complica, já que figura na lista não só dos maiores emissores históricos como também dos atuais. Além disso, como um dos grandes responsáveis pelo problema, precisa-se que os EUA contribuam para o financiamento das ações climáticas, algo que ainda não estava sendo feito.
IHU On-Line - Outro ponto do argumento de Trump é que o acordo climático no que compete aos EUA implica muito mais uma distribuição de renda por parte dos EUA ao resto do mundo. Como você vê essa questão?
Maureen Santos - Isso para mim não é uma justificativa, já que a parte do financiamento global por parte dos países desenvolvidos para as ações climáticas dos países em desenvolvimento, se já não foi cumprida no Protocolo de Quioto, no Acordo de Paris isso sequer aparece como medida vinculante. O que se tem é que no item 115 da decisão COP 21, os países desenvolvidos que são partes do acordo devem “melhorar a prestação de apoio adequado e urgente de financiamento, tecnologia e desenvolvimento de capacidades (...) a aumentar seu nível de apoio financeiro, com um roteiro concreto para alcançar o objetivo de fornecer conjuntamente US$ 100 bilhões por ano até 2020 para mitigação e adaptação (...)”. Esse volume de recursos já é falado desde a COP 15, de Copenhague, e até hoje não existe uma resposta concreta sobre de onde e como os países desenvolvidos chegarão a isso. O “mapa do caminho” publicado pelos países desenvolvidos em 2016 avança pouco nesse sentido. É o grande calcanhar de Aquiles da negociação. Nesse sentido, resta saber como vai ficar o acordo bilateral China-EUA sobre o tema assinado nas vésperas da COP 21.
IHU On-Line - Como foi a reunião preparatória para a COP 23, em Bonn, em maio passado e quais foram os principais temas debatidos no encontro?
Maureen Santos - As negociações preparatórias para a COP 23 reuniram o Grupo de Trabalho do Acordo de Paris - APA, criado em 2015 para desenvolver as regras para implementação do acordo (modalidades, procedimentos e guias) e as 46 sessões dos dois órgãos subsidiários da Convenção de clima (UNFCCC), o SBI (Órgão Subsidiário de Implementação) e o SBSTA (Órgão Subsidiário de Assessoramento Técnico e Científico). Por ter sido a primeira sessão de negociações após a rodada de Marrakesh (COP 22), alguns temas e visões diferenciadas entre países em desenvolvimento e países desenvolvidos relacionadas à interpretação do Acordo de Paris, assinado em 2015 e que substituirá o Protocolo de Quioto, em 2020, voltaram a ser o ponto de partida para seguir na busca de um entendimento comum para a implementação do mesmo.
De modo geral, as negociações caminharam dentro de seus objetivos, sem nenhuma novidade do ponto de vista de mudanças no calendário ou grande avanço em relação a algum tema específico. Existia uma expectativa dos Estados Unidos declararem se sairiam ou não do Acordo de Paris, mas isso não foi feito durante as duas semanas de negociação. A delegação estadunidense, que foi representada somente por sete negociadores demonstrando a pouca relevância que o atual governo Trump dedica ao tema, participou das sessões e plenárias, mas de forma muito reservada, com exceções em relação a um tema ou outro.
Destacam-se, na primeira semana, as negociações do chamado livro de regras de Paris (Paris rulebook), uma proposta de manual para entendimento comum dos países membros sobre como utilizar o novo acordo da convenção climática em prol das ações e políticas nacionais de clima futuras. A discussão sobre o livro de regras buscou também evitar a duplicação dos temas presentes no Acordo de Paris e interligá-los. Importante lembrar que, no calendário da Convenção, o prazo para a conclusão das regras é 2018, então 2017 é um ano importante para buscar um texto que possa ser finalizado.
Outro tema importante é o Artigo 6 do acordo, relacionado à criação de um novo mecanismo de mercado na Convenção. No início da primeira semana de negociações foi realizado um workshop de dois dias sobre o Artigo 6, em especial sobre os itens 6.2 (resultados de mitigação transferidos internacionalmente e utilização disso para cumprimento das metas voluntárias), 6.4 (mecanismo de desenvolvimento sustentável, que é o novo mercado de carbono da convenção de clima) e 6.8 (abordagens de não-mercado). Frente a essas negociações, existe uma urgente necessidade de que a academia e organizações da sociedade civil possam se debruçar mais sobre esse tema e promover uma avaliação do que foi o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) do Protocolo de Quioto e seus resultados. No Brasil, por exemplo, várias críticas já foram apresentadas em relação aos projetos e seus impactos nos territórios e nas populações que vivem neles, além de falhas no monitoramento e na avaliação referentes, em especial, ao impacto que isso tem formalmente para a redução de emissões globais.
Em relação ao tema de transparência — talvez o que teve debates mais quentes durante Bonn —, a negociação girou em torno de como reportar as ações climáticas e os inventários nacionais de gases de efeito estufa de forma que a Convenção possa seguir o progresso das ações e políticas climáticas dos países membros. É um tema onde a diferenciação entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento (e suas respectivas capacidades) fica mais aparente e, por isso, as tensões são mais presentes.
Uma novidade nesse processo foi o evento “Multi-stakeholder dialogue on the operacionalization of local communities and indigenous peoples platform”, convocada pelo secretariado da UNFCCC. A proposta é avançar na construção de uma Plataforma representativa das comunidades locais e dos povos indígenas dentro da Convenção. Somente cinco país enviaram submissões a respeito, o que demonstrou o pouco interesse dos países na iniciativa, mas que foi avaliada como positiva como parte da sociedade civil e das populações tradicionais que ali estavam como um primeiro momento onde isso foi realizado. O relatório da COP 22, nos parágrafos 165-169, aponta que as Partes decidem adotar uma abordagem mais participativa desses representantes e desenvolver uma plataforma que garanta sua efetiva operacionalização. Esse tema continuará sendo desenvolvido na COP 23.
IHU On-Line - Qual é a expectativa para a COP 23, que será realizada em Bonn entre 6 e 17 de novembro?
Maureen Santos - Com esse anúncio de Trump, temos que ver como os países vão se movimentar. A princípio a maioria das declarações dos países membros da UNFCCC foi contundente, inclusive do Brasil, no sentido de ressaltar a importância do Acordo de Paris como instrumento global de combate às mudanças climáticas e de lastimar a nova postura norte-americana em relação ao tema. É nesse clima que a COP 23 será realizada e com um elefante na sala, já que os Estados Unidos continuam membros da Convenção e poderão continuar participando das reuniões sobre a implementação do Acordo de Paris até que o processo de saída seja formalizado, e isso deverá durar até quatro anos.
A princípio não acho que outros países irão desembarcar do acordo e seguir a tendência dos EUA, até porque existem muitos interesses em jogo e pressões internas e externas para isso, incluindo aí possibilidades de parceria, investimentos e elegibilidade para recebimento de recursos e transferência de tecnologia. China e União Europeia realizaram semana passada uma Cúpula na qual reforçam seus compromissos e aprofundam sua cooperação no tema, como uma resposta clara aos EUA de que espaço vazio se ocupa. Resta saber se irão investir e demonstrar, em especial a China, que estão dispostos a colocar a mão na massa e tomar a dianteira das ações e se estas não serão mais do mesmo.
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EUA causam um baque nas negociações climáticas e serão um ‘elefante’ na COP 23. Entrevista especial com Maureen Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU