Por: Patricia Fachin | 14 Setembro 2016
A análise da conjuntura brasileira, acompanhada de um entendimento da história do país, dos elementos constitutivos do Estado brasileiro e das escolhas políticas feitas nos últimos 80 anos, fornecem os subsídios para o sociólogo Luiz Werneck Vianna apresentar alguns diagnósticos sobre o atual momento brasileiro. O primeiro deles, frisa, é o de que a crise não passou após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. O segundo é de que essa crise tem “raízes muito poderosas na história brasileira” tanto à direita, com a sustentação do patrimonialismo e das oligarquias, quanto à esquerda, “pelo seu colossal abismo diante da cena contemporânea”, diz à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone.
Essa constatação leva a uma terceira, a de que a história do Brasil está permeada por uma “estadolatria” que nasceu como oposição ao “capitalismo imperialista dos EUA”, o qual nos “levou a isto que se vê por aí: a perda de distinção entre o público e o privado, como aparece nas políticas exercitadas pelos fundos de pensão. Isso trouxe uma riqueza para quem? Criou uma sociedade mais igual ou desigual?”, questiona. E acrescenta: “O capitalismo de Estado no Brasil nunca esteve interessado no tema da igualdade de oportunidades, mas na expansão da lucratividade, das forças produtivas materiais”, e a consequência é que “hoje somos, sem o menor orgulho, uma das sociedades mais desiguais do mundo”. E adverte: “O nacional-estatismo já deu o que tinha que dar”.
O quarto diagnóstico é de que, apesar dos protestos que pedem a saída do presidente Michel Temer, não se propõe uma “alternativa moderna” para o país. “Se sai o Temer, põe quem no lugar dele? A volta de Dilma e do nacional-desenvolvimentismo recessivo e anacrônico que nos trouxe ao longo do exercício do seu mandato nos leva aonde? (...) Qual é a alternativa moderna que está se pondo para a sociedade brasileira? Não se tem nada à vista”. “O movimento saudável”, argumenta, “seria procurar, nesses dois anos, caminhos, alternativas a partir de conflitos, e lá por 2018 apresentarmos à sociedade projetos consistentes, mas isso não é o que se pratica”. Ao contrário, lamenta, “os corações estão desconectados da cabeça; estão batendo ao ritmo do passado e não querem bater ao ritmo da hora presente e da hora futura”.
Para ele, se há uma alternativa para sair da crise e modernizar o país, “nós não a tentamos”. E a esquerda, que “classicamente”, “desde Marx”, busca a “autonomia, a criação de novas instituições estatais a partir de baixo” e tem a “utopia” da “remoção do Estado”, “num passe de mágica” se tornou “estatizada” e “isso foi uma abdicação”, de tal modo que hoje o “país tem medo de andar para frente, de romper com as suas tradições mais fundas, e a tradição mais funda que temos aqui é a de Estado”, critica. Romper com o Estado, explica, não significa apostar apenas no livre mercado, mas defender a ideia de que o Estado “não pode ocupar esse papel determinante e monopólico”.
Sobre uma possível Reforma Trabalhista que será iniciada no governo Temer, Werneck disse que as notícias sobre o tema ainda estão na “região dos boatos”, mas foi categórico ao afirmar que neste momento de crise o trabalhador tem que garantir a “sua empregabilidade”, e para isso “trabalhadores e empresários precisam encontrar formas de negociação”.
Ele pontuou ainda que “é consensual a necessidade de um ajuste fiscal”, e entre as questões a serem respondidas neste momento, estão: “Vale ou não vale ampliar o mercado de trabalho? Vale ou não vale ampliar a logística e a malha de ferrovias ou hidrovias? Dispomos de recursos para isso ou não? É o Estado que deve satisfazer a essas necessidades? Mas o Estado está falido. (...) Como vamos conseguir recursos para enfrentar a tarefa mais nobre que este país requer, que é a da educação?” E responde: “A saída nós temos que ir tateando na parede, procurando onde ela está. Não vai ser agarrados às velhas opiniões que vamos encontrá-las. (...) Diria que apostar na livre associação é um belo remédio. É claro que sozinho isso não leva a nada; é preciso uma orientação política, a qual, dirigida para o Estado, é sua democratização”.
Werneck Vianna, em 2013, no IHU | Foto: Acervo IHU
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Recentemente o senhor publicou um artigo afirmando que o “denso nevoeiro” começa “a desanuviar”. Como está vendo este momento político do país, pós-impeachment? Ainda há nevoeiro?
Werneck Vianna – É errado dizer que a crise passou. Ela é muito profunda e suas causas têm raízes muito poderosas na história brasileira, à direita e à esquerda. À direita com o patrimonialismo que persiste, com a preservação de estruturas oligárquicas que ainda detêm algumas rédeas políticas no país. À esquerda, pelo seu colossal abismo diante da cena contemporânea. A esquerda brasileira não nasceu com o feitio, o perfil, com as concepções de mundo que hoje ela porta; ela nasceu do mundo sindical.
A fundação do Partido Comunista é de 1922. Ele foi instituído como um partido operário voltado para as questões do mundo do trabalho e com uma agenda muito determinada no sentido de produzir uma legislação social que ampara o trabalhador e de institucionalização da vida sindical até então à margem da lei, em nome do princípio da Carta Constitucional de 1891, a primeira Carta republicana, que dizia que nada podia obstar a liberdade no mercado de trabalho; a ação sindical obstaria e, nesse sentido, aos sindicatos deveria ser recusada a vida institucional e legal.
Como se sabe, a Revolução de 1930 é resultado de uma combinação muito heterogênea de forças políticas e sociais. Esses são tempos em que o país se modernizou profundamente quando ali se iniciou o grande movimento migratório no sentido Norte-Sul, que alterou significativamente o mundo da política e o mundo social, ele próprio. Nessa circunstância de retorno à centralização política e administrativa que, a partir da Revolução de 30, se sedimenta cada vez mais entre nós, uma série de instituições foram criadas e as velhas inquietações e demandas do movimento sindical dos anos 20 foram incorporadas via uma progressiva legislação sindical e trabalhista que faz da esquerda - que era uma esquerda operária - uma região da política que passou a atuar sob a vigilância e, em alguns casos e mais à frente, tutelada pelo Estado.
Essa esquerda, que era autonomista quanto ao Estado, saiu de cena e ameaçou voltar com a redemocratização de 1945 e a partir da Constituição de 1946. O autonomismo foi uma marca dos movimentos sindicais e operários no começo dos anos 1950, à época do Manifesto de Agosto do Partido Comunista, que era orientado para uma política de classe contra classe. A partir de 1953, no entanto, se inicia uma virada do mundo sindical e operário no sentido de se encontrar com a estrutura corporativa sindical, e com isso os sindicatos e os movimentos operários aderem às estruturas deixadas pelo Estado Novo de Vargas, de 1937.
Mas não estávamos nem éramos uma ilha perdida no mundo. Lá fora o ambiente dos anos do pós-guerra logo se definiu por uma polarização entre a União Soviética de um lado e o mundo capitalista de outro, no período da chamada Guerra Fria. Então, como a Guerra Fria era vista como uma disputa entre a União Soviética e os EUA – potência hegemônica do mundo capitalista -, essa circunstância internacional favoreceu a que o tema do Estado e a emancipação do Estado, a denúncia do imperialismo americano em particular, fosse cada vez mais definida.
Na esteira dessa política, o processo de modernização burguesa que o país vivia desde os anos 30, capitaneado pelo Estado – não se pode entender Volta Redonda, nem a montagem da infraestrutura industrial, ou a industrialização que veio depois, sem a ação interventora e indutora do Estado -, era visto como naturalmente oposto ao capitalismo, ao imperialismo, particularmente o americano. Nesse sentido, a velha tradição brasileira com a qual o Brasil nasceu, a da prevalência do Estado sobre a sociedade, foi ao seu ápice: criou-se aqui uma “estadolatria”, inclusive, com um sindicalismo potente e ligado às empresas estatais e não às empresas de mercado. O sindicalismo da Petrobras de Volta Redonda, das estatais em geral, dos estaleiros, era um sindicalismo dominado pelos comunistas e, quando não dominado, sob forte influência deles e frequentemente em aliança com os setores do PTB.
Com isso, o sindicato e o sindicalismo em geral passaram a orbitar no interior do Estado. Ao lado disso, a modernização do parque industrial gerou uma nova categoria e uma nova fundação do movimento sindical e operário, particularmente no ABC, de onde provirá o Lula e posteriormente o PT, que são claramente contra – dito e proclamado – a consolidação das leis do trabalho, que seria o AI-5 do trabalhador. Isso foi dito pelo ex-presidente Lula numa manifestação pública e está registrado em vários lugares. Para o PT, o movimento sindical deveria seguir uma linha de autonomia em relação ao Estado e às suas instituições, e o lugar do movimento sindical seria o da disputa direta no mercado, na sociedade, entre capital e trabalho. Vale dizer, é como se tivéssemos voltado aos anos 20, época da fundação do Partido Comunista Brasileiro.
Esse movimento de retorno à autonomia dos trabalhadores, que é dos anos 70, e de exercício do sindicalismo petista na região do ABC, teve um enorme fastígio, através do qual esse movimento conseguiu superar os limites do mundo operário e sindical e se tornar cada vez mais influente na vida social. Com que agenda conseguiram isso? Uma agenda de autonomia, de confronto de classe contra classe no mundo do trabalho, de conquista de direitos extraídos a partir de greves e não de outorgas advindas do Estado. Isso levou a que uma grande franja da intelectualidade viesse a se solidarizar e apoiar o PT.
Cito alguns dos grandes intelectuais que fizeram esse movimento em função dessa nova agenda: Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, entre tantos outros, dando uma legitimidade imensa a esse movimento social que logo se constituiria em partido político. Essa agenda fez também com que setores progressistas da igreja católica viessem a legitimar a emergência desse novo ator da sociedade brasileira, isto é, de um partido com extração do movimento sindical dos trabalhadores em geral.
O movimento sindical e operário também não está solto no mundo. Na medida em que esse partido novo ingressa no mundo da política e começa a competir em eleições, principalmente na sucessão presidencial, ele se vê diante da seguinte alternativa: ou seguir fiel a si mesmo, à sua origem, que é fundamentalmente ligada à sociedade civil e não ao Estado, tentando adquirir ao longo do tempo mais musculatura política, sem privilegiar o objetivo da imediata conquista pela via eleitoral, ou fazer o jogo e se integrar ao jogo da política tradicional. Como se sabe, aos poucos quase sem sentir, esse partido tão alvissareiro, com essa origem tão particular, qual seja, sociedade civil e mundo do trabalho, vai assimilando e introjetando práticas objetivas que eram próprias da tradição burguesa brasileira. Dessa forma, por uma verdadeira mutação, esse partido vai se tornando, por força das novas circunstâncias, um partido de Estado e, com isso, recuperando e dando nova vida à cultura de Estado predominantemente entre nós.
As lutas contra a privatização em que o PT se envolveu ao longo do governo FHC estavam claramente fincadas no objetivo de defender a presença do Estado na vida econômica e na modernização do país. Cria-se em então – para ficar na metáfora com que você me provoca – um nevoeiro imenso em que os interesses e as classes sociais se tornam indistintos. O que importava era a preservação do Estado, e mais do que a sua preservação, a sua expansão, como se o avanço do capitalismo de Estado fosse uma câmara, uma antessala para uma transição futura ao socialismo.
Quais são os interesses dos trabalhadores nesse jogo? São interesses próprios, autônomos ou os interesses dessa política que precisava se manter e se sustentar? Com essa movimentação, iniciou um movimento que, longe de ser uma força de descontinuidade com a tradição, se tornou uma força legitimadora da tradição. Basta ver, por exemplo, como o PT passou a valorizar a Era Vargas, como passou a valorizar, inclusive, a Era Geisel, do Regime Militar. Em nome de quê? De demandas de autonomia da sociedade, em defesa dos trabalhadores, ou em defesa do reforço do Estado e de uma industrialização comandada pelo Estado?
A meu ver essa perda de distintividade fez com que o que havia de potente na sociedade emergente perdesse virilidade, vigor, aliás, como teria ocorrido com o sindicalismo dos anos 50, que teria abdicado da sua autonomia em função do projeto nacional-desenvolvimentista. É uma volta. Este país tem medo de andar para frente, de romper com as suas tradições mais fundas, e a tradição mais funda que temos aqui é a de Estado.
IHU On-Line - Essa “estadolatria” foi negativa para o país?
Werneck Vianna – Sem dúvida.
IHU On-Line – Hoje a esquerda defende a intervenção do Estado como condição necessária para regular a economia e a área social, por exemplo. O que seria uma alternativa sem a presença do Estado?
Werneck Vianna – A alternativa, nós não a tentamos. O que a esquerda classicamente viveu, desde Marx e de uma tradição que vem com Gramsci e outros, é a busca por autonomia, a criação de novas instituições estatais a partir de baixo. A utopia do movimento socialista, da esquerda em geral, foi sempre a da remoção do Estado, do fim do Estado e isso, num passe de mágica, foi convertido por circunstâncias nossas, a nossa tradição, a maneira como nós nascemos – nós nascemos a partir do Estado – e pelas circunstâncias internacionais, e fomos criando uma esquerda estatalizada, com uma relação mórbida com os grandes interesses da sociedade. Isso foi uma abdicação.
IHU On-Line – Essa possível mudança na postura da esquerda pode estar relacionada com uma estratégia de não querer se identificar com o modelo neoliberal que defende um Estado mínimo, especialmente na área econômica? Foi por essa razão que a esquerda reforçou a importância do Estado ou o que aconteceu para que houvesse uma mudança de rota, abdicando da autonomia e reforçando o papel do Estado?
Werneck Vianna – A sua questão é muito pertinente. Houve esse temor, sim, mas ao mundo do trabalho não cabe se deixar levar por esses esquemas que são estranhos a ele. O que é próprio ao mundo do trabalho é a criação da sua identidade, da sua autonomia, do seu projeto.
IHU On-Line – Está circulando a notícia de que o governo Temer pretende dar encaminhamento a uma reforma trabalhista, a qual poderá regular jornadas de trabalho de até 12 horas semanais e permitir contratações por hora trabalhada.
Werneck Vianna – Por hora, não vejo como me manifestar sobre isso, porque leio essas notícias ainda na região dos boatos.
IHU On-Line – Mas a minha pergunta é como garantir os direitos trabalhistas, autonomia do trabalhador, e não retroceder? O Estado é fundamental nesse processo? A esquerda defende que sem um Estado forte não se garante isso. O que seria uma alternativa?
Werneck Vianna – Estamos num momento muito complicado da história do mundo, porque o trabalhador tem que defender também, sobretudo neste momento de crise do capitalismo e de grandes mutações sociais, a sua empregabilidade. Então, nesse sentido, esse mundo tem que ser um mundo negociado. Trabalhadores e empresários precisam encontrar formas de negociação. Como manter um mercado de trabalho ativo, capaz de atrair cada vez mais gente para o seu interior? O mundo todo tem que se repensar e está se repensando, mas aqui nós nos recusamos a pensar esses novos processos; a nossa posição é fundamentalmente defensiva. São possíveis políticas ofensivas a partir da auto-organização da vida social, é possível os trabalhadores terem um papel mais ativo dentro das empresas, é possível, sobretudo, que haja uma intervenção cada vez mais forte da sociedade civil nas políticas públicas, mas para isso é preciso que ela seja educada sobre o que se passa no mundo, que se tornou de uma enorme complexidade.
Muitas das categorias que governaram o nosso mundo até, digamos, 1970, já não têm mais vigência, perderam sentido, e o fato de nós termos uma esquerda que desanimou de pensar e inovar, criou embaraços monumentais. Não se está mais no mundo de 1950 aqui no Brasil, mas o comportamento é como se ainda estivéssemos e isso não traz solução para a crise intelectual, econômica, social e política em que nos encontramos.
Diz-se que está ganhando um foro, pelo menos nas redes sociais e manifestações de rua, a manifestação “fora Temer”. Está bem, mas se sai o Temer, põe quem no lugar dele? A volta de Dilma e do nacional-desenvolvimentismo recessivo e anacrônico que nos trouxe ao longo do exercício do seu mandato nos leva aonde? Ao aprofundamento da crise política, econômica e social. Fora Temer e põe o que no lugar? Qual é a alternativa moderna que está se pondo para a sociedade brasileira? Não se tem nada à vista. Então, para responder a sua primeira pergunta, diria que o nevoeiro persiste não apenas pelas camadas pesadas de chumbo que nos vêm do passado, mas porque não somos senhores da nossa circunstância; obedecemos aos velhos comandos que nos trouxeram a essa situação.
IHU On-Line – O seu diagnóstico é o de que a crise continua. Mas, apesar disso, ela tem novos elementos com a saída de Dilma? Trata-se de uma nova fase da crise?
Werneck Vianna – Foi uma tentativa de sair da crise, mas se você me perguntar se essa tentativa vai ser frutífera, eu diria: Só Deus sabe, porque as resistências que vêm dessa cultura do passado a qualquer mudança pesam como chumbo na vida dos contemporâneos e removê-las não é trabalho fácil, porque não temos lideranças para isso. As lideranças de esquerda que temos são comprometidas com o passado, com a tradição.
IHU On-Line – O que o senhor está dizendo é que não temos que resistir às mudanças que estão sendo propostas?
Werneck Vianna – Não sei quais são as mudanças. Esse elenco de mudanças ainda não foi apresentado, a não ser pontualmente.
IHU On-Line – Entre mudanças propostas, o governo Temer está sugerindo a PEC 241, que determinará um novo regime fiscal. Essa é uma proposta adequada para esse novo tempo ou não?
Werneck Vianna – Eu não domino os detalhes dessa problemática, mas que é consensual a necessidade de um ajuste fiscal, isso é. A própria Dilma, no início do seu segundo mandato, concordou com isso ao convidar o ex-ministro Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda. Aí há imperativos e as circunstâncias não são favoráveis para que se tomem direções sem consultar os seus riscos: vale ou não vale ampliar o mercado de trabalho? Vale ou não vale ampliar a logística e a malha de ferrovias ou hidrovias – que não temos? Dispomos de recursos para isso ou não? É o Estado que deve satisfazer a essas necessidades? Mas o Estado está falido. Então, há entre nós, fruto da nossa formação, uma aversão natural ao mercado, ao lucro, porque nós somos ibéricos, viemos da catolicidade da Contrarreforma. Como vamos conseguir recursos para enfrentar a tarefa mais nobre que este país requer, que é a da educação?
IHU On-Line – Então, recuperar a agenda da modernização e olhar para frente neste momento significa o que para o senhor? O Brasil tem que se modernizar abrindo mais possibilidades para o mercado ou mantendo a intervenção estatal ou buscando outra via? O que seria?
Franklin Roosevelt e Getúlio Vargas, em Natal/RN | Foto: Acervo Fundação Rampa
Werneck Vianna – Com a intervenção do Estado, com ação reguladora do Estado. Agora, o Estado sozinho pode o quê? Ele fez algumas coisas importantes, sobretudo na era Vargas, mas Volta Redonda foi feita com capital americano. Eu estive - não sei se foi um sonho - no quarto em que Getúlio Vargas se matou e sou capaz de jurar que vi numa parede uma fotografia dele ao lado do Roosevelt, desfilando em carro aberto na Avenida Rio Branco (Natal-RN).
Nós não somos a Coreia do Norte, um capitalismo autárquico. O nosso capitalismo nasceu dessa associação com o capitalismo internacional. Eu estaria dizendo que o Estado deve recuar disso? Longe de mim e da minha história. Estou dizendo que ele não pode ocupar esse papel determinante, monopólico. Esse Estado insulado levou a isto que se vê por aí: a perda de distinção entre o público e o privado, como aparece nas políticas exercitadas pelos fundos de pensão. Isso trouxe uma riqueza para quem? Criou uma sociedade mais igual ou desigual?
O capitalismo de Estado no Brasil nunca esteve interessado no tema da igualdade de oportunidades, mas na expansão da lucratividade, das forças produtivas materiais; são políticas muito residuais. Então, hoje somos, sem o menor orgulho, uma das sociedades mais desiguais do mundo. Há todo um espaço novo para se pensar, mas nós temos bolas de ferro nos pés que nos mantêm no mesmo lugar.
IHU On-Line – Que intelectuais ou teorias nos ajudariam a pensar um rumo diferente para o Brasil e a modernização daqui para frente?
Werneck Vianna – Ah, é tão difícil responder isso. Vou tentar sair um pouco dessa questão para, mais à frente, tentar respondê-la. Veja as cerimônias de abertura e encerramento das Olimpíadas e Paralimpíadas. Veja que riqueza, que capacidade de invenção. O Brasil é uma grande novidade no mundo, a sua cultura, as suas tradições, a maneira como as raças e religiões entre nós convivem é exemplar. Nós temos um tesouro civil nessas Olimpíadas, que foram concebidas por intelectuais que foram à nossa história e trouxeram o que há de vivo, de interessante nela. Mas nós deixamos de pensar há muito tempo, porque na verdade, o inventário dessas cerimônias são concepções de intelectuais dos anos 35, 40: ali estão Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Ary Barroso, e novamente apareceu o funk, a ópera de rua, que é uma criação nossa. Isso precisa ser trazido de volta à reflexão.
Que país somos, o que queremos ser e como vamos pavimentar o caminho para esse futuro? Se você me perguntar como vamos fazer isso, vou te responder com sinceridade que não sei, porque é preciso de um movimento coletivo, de uma animação, de uma crença de que é possível mudar e não ficarmos atrelados a experiências do passado.
O nacional-estatismo já deu o que tinha que dar. O regime militar levou isso às últimas consequências. E quais são os resultados? Lesões ambientais sem tamanho, aprofundamento da desigualdade, e deve-se reconhecer o desenvolvimento de algumas forças produtivas, sem dúvida, mas faz o balanço disso: mais se perdeu do que se ganhou.
É claro que alguns elementos são nossos e originários, porque são marcas de pele e, nesse sentido, o Estado sempre será importante entre nós, mas é mais do que necessário democratizar esse Estado, porque como se viu ao longo desses anos que vivemos, o Estado não foi democratizado; ele foi capturado por interesses particularistas.
IHU On-Line – Mas não vislumbra o que seria a possibilidade de saída?
Werneck Vianna – Tudo o que há é reverência ao passado, temor do futuro e imobilização mental em quadros anquilosados. A nossa universidade parou de pensar há muito tempo. A saída nós temos que ir tateando na parede, procurando onde ela está. Não vai ser agarrados às velhas opiniões que vamos encontrá-las.
IHU On-Line – Em termos de reestruturação política dos grandes partidos, como PT, PMDB, PSDB, o que deve acontecer?
Werneck Vianna – Penso que esses partidos já estão bastante complicados. Os partidos dominantes, PT e PSDB, não respiram nada novo. E na esquerda, o que se vê entre os jovens? Uma volta aos tempos míticos da revolução, da insurreição das ruas; é triste.
IHU On-Line – Alguns têm dito que entre os jovens está aumentando uma visão mais neoliberal. Concorda?
Werneck Vianna – Não concordo, não. Isso existe, mas não vem nascendo com força. Isso também seria uma volta ao passado pela direita. À direita e à esquerda, volta-se ao passado. O país está retido e esses 13 anos de PT – que me perdoem os petistas – foram anos em que o pensamento não teve como avançar, porque ele ficou prisioneiro das possibilidades de um homem providencial, o Lula, encontrar uma saída para tudo. Nesse sentido, o PT abdicou de pensar, o pensamento foi elaborado por cima e o país foi anestesiado por uma política, essa sim, de cunho neoliberal, do consumismo, de satisfazer as necessidades das pessoas pelo consumo - o carro novo, o utensílio novo - e não pelos direitos.
Diria que apostar na livre associação é um belo remédio. É claro que sozinho isso não leva a nada; é preciso uma orientação política, a qual, dirigida para o Estado, é sua democratização. Há quem fale em empreendedorismo, como o professor Mangabeira Unger. Está bem, que se estimule o empreendedorismo, essa é uma política correta, mas é preciso ter uma orientação política para isso.
Que sociedade queremos? Uma sociedade projetada para uma imediata transição ao socialismo? Só uma pessoa inteiramente desqualificada poderia admitir essa hipótese. Então, temos que conviver com o capitalismo e impor limites a ele, domesticá-lo e abrir alternativas para que essa nova sociedade que está aí chegue à economia, o que de maneira rudimentar vem acontecendo. É difícil conceber uma alternativa para isso que aí está. Agora, pior de tudo é desistir de procurá-la.
O país abandonou a experiência da livre associação que, em alguns momentos, germinou entre nós, mas não mais se procurou associar, porque havia, por cima, uma entidade litúrgica político-religiosa que resolveria todas as nossas questões.
IHU On-Line – Mas alguns ainda apostam no retorno do ex-presidente Lula em 2018.
Werneck Vianna – Mas se vier, vem diferente, porque essa possibilidade não lhe é mais dada. Não tem mais como exercer o encantamento sobre as massas à base de políticas compensatórias, à base do consumo. Essa política consumerista é neoliberal.
IHU On-Line – Mas vê a possibilidade de a esquerda se reposicionar politicamente depois de 13 anos de governo petista?
Werneck Vianna – Acho muito difícil. Ela vai precisar de tempo e de liberdade de desenvolvimento intelectual, porque a nossa esquerda está prisioneira de si mesma, da sua história, com cultos antigos, Che Guevara, Marighela. A nossa esquerda é muito atrasada.
IHU On-Line – E aquela esquerda que levanta a discussão sobre as questões ambientais e faz uma crítica à financeirização do capitalismo?
Werneck Vianna – Eu apostaria mais nessa direção. Mas é preciso também que tenha políticos mais maduros, mais cultivados. A Marina, com todo o respeito que ela merece, tem uma agenda de traços modernos, mas por outro lado, muito recessivos, inclusive na questão comportamental. Mas sem dúvida ela é uma presença novidadeira nesse quadro de mesmice que caracteriza o nosso pensamento.
IHU On-Line - Como está a sociedade brasileira pós-impeachment? Saímos desse processo como uma sociedade mais frágil, mais imatura ou mais amadurecida politicamente, mais forte, mais apática ou mais política, mais antidemocrática ou democrática? Que mudanças esse processo político trouxe ou ainda trará para a sociedade brasileira?
Werneck Vianna – Nós ainda não saímos dessa fase. O impeachment teve uma solução legal, mas nós não demos as costas ao passado. Estamos tentando edificá-lo. O movimento “fora Temer” quer dizer isto: não há impeachment; é preciso retomar imediatamente a experiência anterior. O movimento saudável seria procurar, nesses dois anos, caminhos, alternativas a partir de conflitos, e lá por 2018 apresentarmos à sociedade projetos consistentes, mas isso não é o que se pratica. Vive-se cada momento como se fosse o último; radicaliza-se tudo em nome de coisas já perdidas. A experiência presidencial Dilma Rousseff é perdida e não há quem ponha aquele projeto de volta; nem ela. Aliás, ela já tinha declinado desse projeto. Foi ela quem nomeou Joaquim Levy.
IHU On-Line – Mas muitos dizem que Temer vai dar seguimento a esse projeto.
Werneck Vianna – Não, Temer está aí tateando, procurando alguma saída para ele.
IHU On-Line – Já é possível saber qual é o projeto desse governo?
Werneck Vianna – Por ora, é um governo imaturo. É preciso que esse governo se torne governo. Esse governo está ameaçado pelas forças do passado e não está animado por nenhuma força emergente que aponte para o futuro. Não por culpa pessoal do Temer, mas porque as circunstâncias são essas.
IHU On-Line - O senhor tem dito que o Brasil está precisando do “espírito de concórdia”. O país ficou dividido entre os que defenderam o discurso do golpe e os que foram contrários. A concórdia será possível daqui para frente?
Werneck Vianna – Vejo essa possibilidade com muito pessimismo, porque a concórdia é uma virtude do coração, como diz a Palavra. E os corações estão desconectados da cabeça; estão batendo ao ritmo do passado e não querem bater ao ritmo da hora presente e da hora futura. Então, que defendam os privilégios, os monopólios, os particularismos, as corporações, esse corporativismo que nos mata. Que defendam isso. E fazer o que com este país de 200 milhões de habitantes, com as massas afundadas em situações de escassas oportunidades de vida, sem emprego, sem serviços públicos à altura? Difícil.
Sempre aparece uma saída quando se procura por ela. Para isso não se pode dizer que se quer aquela saída, aquela que me reponha aos anos de 1950, porque esses anos não voltam mais e se tornaram anacrônicos; o mundo mudou. É só olhar para a política americana do Obama e ver o que era. E eu diria mais: o mundo vem mudando para melhor, com todas as dificuldades existentes.
A política de refugiados da Ângela Merkel não pode perder. Ela pode até vir a perder, mas não podemos deixar de socorrê-la com nosso apoio, porque a vida se faz a cada instante. Não tem a descoberta de um caminho que avance; cada momento é um passo e tem que procurar dar o passo certo neste momento em que vivemos. Vamos ver o que vai acontecer com as eleições municipais, porque elas são um indicador. Talvez elas nos surpreendam e mostrem uma sociedade que está buscando novas possibilidades. Vamos aguardar.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Werneck Vianna – Gostaria que você tivesse piedade de mim, que aligeirasse as partes mais malditas da minha fala para que não levantasse uma onda de cólera contra a minha pessoa. (Risos).
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O nevoeiro persiste e as bolas de ferro nos pés nos mantêm no mesmo lugar. Entrevista especial com Luiz Werneck Vianna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU