Amoris laetitia e a crise política brasileira repercutem na 54ª Assembleia da CNBB. Entrevista especial com Sérgio Coutinho

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14 Abril 2016

O historiador comenta a Exortação Apostólica Amoris laetitia e a "estranha 'neutralidade'' dos bispos no atual momento político do país, ao acompanhar as discussões da 54ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, que está sendo realizada em Aparecida, SP.

Foto: pegponderingagain.files.wordpress.com

A Exortação Apostólica Amoris laetitia, como todas as “grandes Assembleias conciliares e sinodais, destinadas a marcar em profundidade a vida da Igreja”, deve ser analisada a partir de três elementos: “o evento em si, os documentos nele aprovados e a sua recepção”, diz Sérgio Coutinho à IHU On-Line, ao comentar o documento do Papa Francisco.

Na avaliação dele, o “núcleo duro, inovador e desafiador” do documento publicado pelo Papa Francisco na última sexta-feira (08-04-2016) é o capítulo VIII, intitulado “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”, que, se for bem recebido, significará “a maior revolução experimentada pela Igreja nos últimos 1.500 anos”.

Esse capítulo, informa, foi tema de discussão na 54ª Assembleia da CNBB, que está ocorrendo desde 06-04-2016 e se estende até sexta-feira, 15-04-2016. No encontro, diz Coutinho, enfatizou-se a “lei da gradualidade” e reforçou-se “a solicitação de Francisco para as atitudes dos pastores que não se predispõem a acolher a complexidade que caracterizam as situações ‘irregulares’ e que desafiam a solicitude pastoral da Igreja”. Tendo em vista esse ponto, “em sintonia com a Exortação”, a Assembleia debateu o “Moto ProprioMitis Iudex Dominus Iesus’ sobre a elaboração de um Vade-Mecum para direcionar os procedimentos de solicitação de nulidade matrimonial”.

Sobre o pontificado de Francisco até o momento, Coutinho menciona seu incômodo com a “demora na Reforma da Cúria”, o “limite” dos “gestos e palavras” do Papa “em relação à participação das mulheres na Igreja” e a falta de “gestos mais proféticos” no que concerne aos casos de pedofilia na Igreja. “Não basta parabenizar a vitória do filme Spotlight como se o problema estivesse encaminhado. Precisaria aqui de mais gestos proféticos”, diz.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Coutinho também comenta a 54ª Assembleia da CNBB, que está debatendo, entre outros temas, a revitalização do Centro de Estatística Religiosa e Investigação Social – CERIS e a Comissão Episcopal para a Amazônia, e a posição de “neutralidade” assumida pela CNBB no atual momento político.

“Justamente quando muitas organizações da sociedade civil se colocam a favor da Democracia, pelo respeito às regras, criticando a forma como a imprensa e setores do Judiciário vêm conduzindo o tema em direção à queda do atual governo, e inclusive com muitas manifestações de bispos em suas dioceses, padres e religiosos nesta mesma linha, a CNBB, em conjunto, se posiciona por uma estranha ‘neutralidade’”. E conclui: “É decepcionante e um desrespeito à memória de muitos bispos e de agentes de pastoral que lutaram pelos direitos civis e políticos neste país, a posição da CNBB com esta Nota”, referindo-se à nota que está sendo elaborada na 54ª Assembleia Geral da CNBB, através da qual, ao que tudo indica até o momento, a instituição não se posicionará sobre o impeachment da presidente Dilma nem sobre a atual conjuntura política.

Hoje, 14-04-2016, será divulgada a Declaração sobre o momento nacional, segundo informa a página eletrônica da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, 14-04-2016.

Sérgio Ricardo Coutinho é professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura de Brasília e da disciplina “Serviço Social, Religião e Movimentos Sociais”, no curso de Serviço Social do Centro Universitário IESB de Brasília.

Confira a entrevista.

Foto: www.ccm.org.br

IHU On-Line - Que avaliação geral faz de Amoris laetitia como documento conclusivo do Sínodo sobre a família? Ela atendeu suas expectativas?

Sérgio Coutinho - Penso que precisamos trazer para aqui o ensinamento do Cardeal Yves Congar e dos historiadores Giuseppe Alberigo e Pe. José Oscar Beozzo: em todo acontecimento eclesial, especialmente aqueles, como as grandes Assembleias conciliares e sinodais, destinados a marcar em profundidade a vida da Igreja, três elementos devem ser tomados em consideração sempre:

a) o evento em si;

b) o(s) documento(s) nele aprovado(s); e, finalmente,

c) a sua recepção.

Este princípio heurístico-hermenêutico ajuda-nos a construir uma compreensão mais adequada do que apenas ficar concentrado, exclusivamente, na interpretação da Exortação. Mesmo se ficássemos debruçados sobre o texto, a “teoria do círculo hermenêutico”, amplamente popularizada por Frei Carlos Mesters, também deveria ser um princípio para a leitura séria e serena da Exortação: texto, contexto e pré-texto.

Diferentemente do que vinha sendo a práxis dos Sínodos anteriores, marcadamente “de cima para baixo” onde os membros da Cúria já tinham definido o “sentido” das discussões (como bem me relatou um dos brasileiros que participou do 13º Sínodo sobre a “Nova Evangelização”: “Não gostei! Muito pouco participativo!”), o 14º Sínodo, sobre a Família, seguiu o caminho eclesiológico desejado pelo papa Francisco em consonância com a formulação de São João Crisóstomo: “Igreja e Sínodo são sinônimos”.

É evidente que se deve levar muita em conta todos os textos produzidos (e não são poucos) nas duas etapas deste Sínodo (Documento Preparatório, Instrumentum Laboris, Relatio ante disceptationem, Relatio post disceptationem, Relatio Synodal, Lineamenta e Relatio Finalis) finalizando com a Exortação Amoris laetitia.

Mas, para mim, o método de sinodalidade empregado foi muitíssimo importante e espera-se que continue no futuro: a ampla consulta aos membros do povo de Deus e duas assembleias (extraordinária e ordinária) com a presença constante de Francisco (cum Petro et sub Petro).

Resultados

O resultado foi um levantamento amplo, por meio de um questionário enviado a todas as dioceses do mundo, dos muitos desafios sociais, culturais e econômicos enfrentados pelas famílias, bem como as difíceis questões pastorais.

Além do que, o evento “sinodal” foi um momento privilegiado de “agir comunicativo” (Habermas) e para que Francisco conhecesse claramente “quem é quem” e com quem poderia contar no seu projeto de “reforma” da Igreja. Por isso, pediu que cada padre sinodal falasse com clareza, abertamente, e com parrésia e humildade: “Uma condição geral de base é a seguinte: falar claro. Que ninguém diga: ‘Isto não se pode dizer; pensará de mim assim ou assim...’. É necessário dizer tudo o que se sente com parrésia.

Depois do último Consistório (Fevereiro de 2014), no qual se falou sobre a família, um Cardeal escreveu-me dizendo: ‘é uma lástima que alguns Purpurados não tiveram a coragem de dizer certas coisas por respeito ao Papa, talvez julgando que o Papa pensasse de outra maneira’. Isto não está bem, isto não é sinodalidade, porque é necessário dizer tudo aquilo que, no Senhor, sentimos que devemos dizer: sem hesitações, sem medo”.

O resultado deste exercício de “caminhar juntos” (povo, bispos e papa) foi o de dar as condições necessárias para implantar as “reformas” nos costumes. Com a aprovação do Relatório Final com os 2/3 dos votos necessários, ninguém poderá acusá-lo de autoritário e muito menos de herético.

E vejo o Cap. VIII da Exortação como seu núcleo duro, inovador e desafiador. Se houver uma boa recepção por parte do povo de Deus, pelo menos deste capítulo, teremos, como disse o Cardeal Walter Kasper, “a maior revolução experimentada pela Igreja nos últimos 1500 anos”.

“O método de sinodalidade empregado foi muitíssimo importante e espera-se que continue no futuro

 

IHU On-Line - Quais são os três pontos importantes da Amoris laetitia?

Sérgio Coutinho - Segui o conselho de Francisco para a leitura da Exortação: “não aconselho uma leitura geral apressada. Poderá ser de maior proveito, tanto para as famílias como para os agentes de pastoral familiar, aprofundar pacientemente uma parte de cada vez ou procurar nela aquilo de que precisam em cada circunstância concreta. É provável, por exemplo, que os esposos se identifiquem mais com o quarto e quinto capítulo, que os agentes pastorais tenham especial interesse pelo capítulo sexto, e que todos se sintam muito interpelados pelo oitavo” (AL, 7).

De fato, também me senti interpelado pelo Cap. VIII e, como você me pede, levanto três pontos.

1) Mudança de paradigma: gradualidade e discernimento.

Para desenvolver este capítulo, Francisco, além de recorrer aos ensinamentos do papa João Paulo II, desenvolve sua teologia moral com muita liberdade e sempre numa perspectiva indutiva.

Apoiando-se em São Tomás de Aquino, o Papa afirma que “as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem transcurar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares”. Desta forma, numa perspectiva tomásica, entre o conhecimento geral da norma e o conhecimento particular do discernimento prático, prefere ficar com “o conhecimento da realidade particular porque está mais próximo do agir”. (AL 304, nota 348)

Além disso, faz amplo uso dos três parágrafos que tiveram maior número de “non placet” do Relatorio Finalis do Sínodo: os números 84, 85 e 86. Na Exortação, Francisco cita quase que por completo os números 84 e 86, e considera o 85 como “muito apropriado” (AL 299 e 300).

Aqui desenvolve o que Kasper apresentou em fevereiro de 2014: a chamada “lei da gradualidade”. Mas esclarece que não se trata de uma “gradualidade da lei”, mas uma gradualidade no “exercício prudencial dos atos livres” daqueles sujeitos que “não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar plenamente as exigências objetivas da lei”. Desta forma, cada ser humano vai avançando gradualmente para a progressiva integração nos dons de Deus e para as exigências do seu amor para todas as dimensões da vida.

Assim, por exemplo, como “os divorciados que vivem numa nova união, podem encontrar-se em situações muito diferentes, que não devem ser catalogadas ou encerradas em afirmações demasiado rígidas, sem deixar espaço para um adequado discernimento pessoal e pastoral”. Daí, segundo ele, não ser possível dizer que todos os que estão numa situação chamada “irregular” vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante.

2) A Eucaristia para casais em segunda união: “um pequeno passo”.

Penso que Francisco já tinha uma opinião formada sobre isso, mas precisava que algum teólogo (coisa que ele sempre afirma não ser), sério e respeitável, o convencesse disso.

Não foi à toa que convidou o Cardeal Walter Kasper (“um teólogo de mão cheia”, como ele mesmo afirma) para fazer o célebre e polêmico discurso de fevereiro de 2014, durante o Consistório de nomeação de novos cardeais. Propôs nos casos de divorciados recasados que têm obrigações com filhos nascidos de uma segunda união, lhes fosse aberto o acesso à mesa da comunhão eucarística, considerando a situação a partir da perspectiva de quem sofre e pede ajuda.

O nº 305 da Exortação, e sua nota 351, vão nessa linha e abrem plenamente as “Portas da Misericórdia” para estes casais acessarem o sacramento da Eucaristia. Vale à pena reproduzi-lo aqui:

“Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos da Igreja ‘para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas’. [...] Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja. (Aqui entra a nota 351: “Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, ‘aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor’ [Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 44: AAS 105 (2013), 1038]. E de igual modo assinalo que a Eucaristia ‘não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos’ [Ibid., 47: o. c., 1039]”). (os grifos são meus)

Encerra este número com um alerta para todos: “Lembremo-nos de que ‘um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades’. A pastoral concreta dos ministros e das comunidades não pode deixar de incorporar esta realidade”.

Neste ponto, vamos precisar acompanhar a capacidade de recepção pelos Pastores (bispos e padres) e, especialmente, pelas comunidades eclesiais de dar este “pequeno passo”.

3) Por uma pastoral misericordiosa

O terceiro ponto é o próprio centro de toda a espiritualidade de Francisco: a misericórdia.

Mesmo reconhecendo que muitos na Igreja “preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma”, Francisco acredita que Jesus Cristo “quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade”.

Por isso, vê como Providência Divina que “estas reflexões sejam desenvolvidas no contexto de um Ano Jubilar dedicado à misericórdia, porque, também perante as mais diversas situações que afetam a família, ‘a Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho’”. (AL 308 e 309)

 

“O nº 305 da Exortação, e sua nota 351, vão nessa linha e abrem plenamente as 'Portas da Misericórdia' para estes casais acessarem o sacramento da Eucaristia

IHU On-Line - Quais são os limites de Amoris laetitia?

Sérgio Coutinho - Acho que o próprio papa Francisco se protegeu de qualquer exigência vinda tanto de fora como de dentro da Igreja para não dar “passos maiores além das pernas”. Numa situação histórico-eclesial muito semelhante à de João XXIII, quando tínhamos um papa misericordioso e uma Cúria legalista, Francisco optou por um texto que “construísse pontes e não muros”.

Por isso, não se pode exigir demasiado do texto, o mesmo foi até onde se podia ir em alguns assuntos, mas em outros ainda deveremos aguardar mais um tempo. Francisco chamou a atenção para os limites do documento nos nº 2 e 3: “(...) a complexidade dos temas tratados mostrou-nos a necessidade de continuar a aprofundar, com liberdade, algumas questões doutrinais, morais, espirituais e pastorais. (...) Os debates, que têm lugar nos meios de comunicação ou em publicações e mesmo entre ministros da Igreja, estendem-se desde o desejo desenfreado de mudar tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação até à atitude que pretende resolver tudo através da aplicação de normas gerais ou deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas. (...) Recordando que o tempo é superior ao espaço, quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. (...) Além disso, em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais”.

IHU On-Line - Qual tende a ser o impacto da Amoris laetitia na Igreja e no pontificado de Francisco? A Exortação Apostólica do Papa muda algo em relação à sua imagem, já que ele tem sido visto como um papa que quer uma Igreja mais "aberta" e pastoral?

Sérgio Coutinho - Seguindo aquela linha hermenêutica que propus anteriormente, agora é o momento de estudo do documento produzido como fruto de um caminho sinodal, incorporando-o no processo mais importante que é o da recepção. Neste ponto, vai caber sim às comunidades eclesiais espalhadas pelo mundo em verificar a “catolicidade” do texto, ou seja, se ele faz parte do “sensus fidei”.

Considerando o amplo apoio que o papa Francisco vem recebendo, especialmente dos setores mais “secularizados” na Igreja, ou seja, os que acreditam que a Igreja deva se aprofundar mais e se solidarizar mais com os problemas do mundo, numa Igreja “enlameada”, penso que terá uma excelente acolhida tal como tiveram a Exortação Evangelii gaudium e a Encíclica Laudato si'.

IHU On-Line - Como Amoris laetitia tem sido recebida entre os bispos brasileiros? Quais têm sido os comentários sobre a Exortação na 54ª Assembleia da CNBB?

Sérgio Coutinho - Diria que a recepção já foi imediata. Logo no último dia 11/04, a Exortação foi apresentada em suas linhas gerais para os bispos. Coube a Dom Waldemar Passini (Bispo-coadjutor de Luziânia), Dom Marcos Piatek (Bispo Prelado de Coari) e Dom Leomar Brustolin (Bispo-auxiliar de Porto Alegre), apresentarem um breve resumo do texto, mas se detendo nos Cap. VI e VIII.

Dom Leomar tratou do capítulo oitavo. Chamou a atenção dos bispos para quatro palavras-chaves desse capítulo: proximidade, discernimento, misericórdia e integração. Enfatizou a “lei da gradualidade” e reforçou a solicitação de Francisco para as atitudes dos pastores que não se predispõem a acolher a complexidade que caracterizam as situações “irregulares” e que desafiam a solicitude pastoral da Igreja.

Além disso, em sintonia com a Exortação, já estava previsto um debate sobre o Moto ProprioMitis Iudex Dominus Iesus” sobre a elaboração de um Vade-Mecum para direcionar os procedimentos de solicitação de nulidade matrimonial.

A Comissão, formada por Dom Moacir Silva (Arcebispo de Ribeirão Preto), Dom Francisco Carlos Bach (Bispo de São José dos Pinhais), Dom Sérgio de Deus Borges (Bispo-auxiliar de São Paulo), Dom José Aparecido Gonçalves de Almeida (Bispo-auxiliar de Brasília) e Dom Valdir Mamede (também auxiliar de Brasília), iniciou a exposição fazendo menção ao número 244 de Amoris Laetitia que afirma ser de “grande responsabilidade para os Ordinários diocesanos (...) julgar algumas causas e a garantir, de todos os modos possíveis, um acesso mais fácil dos fiéis à justiça. Isto implica a preparação de pessoal suficiente, composto por clérigos e leigos, que se dedique de modo prioritário a este serviço eclesial”.

Nessa exposição foram apresentados alguns elementos que devem orientar a ação dos Bispos a fim de se colocar em prática os indicativos do Motu Proprio. Grande parte das questões levantadas pelos bispos dizia respeito à necessidade ou não de se constituir um Tribunal em cada diocese para resolver os casos de nulidade matrimonial.

Precisamos acompanhar todos estes processos juntamente com a recepção da Exortação, pois ambos estão bem entrelaçados.

IHU On-Line - Quais têm sido os pontos centrais de discussão da 54ª Assembleia da CNBB, que traz como tema principal os "Cristãos leigos e leigas na Igreja e na sociedade - Sal da terra e luz do mundo"?

Sérgio Coutinho - Este tema já vem sendo amplamente debatido não só pelos bispos, mas também por muitas organizações laicais. O texto saiu no formato de “Documento de Estudo” 107 em 2014, depois se tornou 107A, e agora se espera que venha a se tornar um “documento azul”.

O texto se organiza em três capítulos, correspondendo ao método ver, julgar e agir: “O cristão leigo, sujeito na Igreja e no mundo de hoje: esperanças e angústias”; “Sujeito eclesial: discípulos missionários e cidadãos do mundo”; “A ação transformadora na Igreja e no mundo”.

O texto foi mais uma vez debatido em trabalhos de grupo, com o envio de várias emendas para a Comissão de Redação. Esta acolheu estes comentários, como também as sugestões que vieram da própria assembleia.

Como o documento traz uma forte ênfase na compreensão do papel do laicato, na Igreja e na sociedade, como “sujeito”, pode ser que este termo seja a “pedra angular” de toda a discussão, para o bem ou para o mal. Vejamos se o termo permanecerá no documento final.

“Agora é o momento de estudo do documento produzido como fruto de um caminho sinodal, incorporando-o no processo mais importante que é o da recepção

IHU On-Line - Que outras questões estão sendo tema de debate na 54ª Assembleia da CNBB?

Sérgio Coutinho - Chamaria a atenção para dois temas. O primeiro sobre a revitalização do Centro de Estatística Religiosa e Investigação Social - CERIS.

Criado em 1962, o CERIS prestou relevantes serviços à Igreja no Brasil, tanto no campo da pesquisa e análise do fenômeno religioso, como na área social, com cursos de formação e assessorias às dioceses e paróquias. Em 2006, por diversos motivos, especialmente econômicos, a CNBB e a CRB - Conferência dos Religiosos do Brasil consideraram necessário encerrar as atividades do CERIS no Rio de Janeiro.

No segundo semestre de 2015, a CNBB criou um grupo de trabalho para repensar o CERIS. Participaram deste grupo membros da CNBB, da CRB, da ANEC, das PUCs, ex-funcionários do CERIS, advogados e outros. O grupo elaborou uma minuta de um novo estatuto para o que estão chamando de “Novo CERIS”. Essa minuta foi apresentada para apreciação do Conselho Permanente da CNBB, reunido no dia 10 de março deste ano, em Brasília, e para a presidência da CRB no dia 27 de fevereiro, mantenedores do CERIS.

A novidade no estatuto foi a inclusão da ANEC e dos Institutos de Ensino Superior como associados, e a criação de um Comitê científico que tem por competência propor diretrizes e projetos de linha de pesquisa a serem empreendidos pelo CERIS e articular as Instituições de Ensino Superior.

A presidência da CNBB e da CRB, juntamente com a presidência do CERIS, já haviam convidado algumas das Instituições de Ensino Superior que possuem cursos ligados na área da Ciências Sociais e Ciência da Religião, para uma reunião. Estiveram presentes 19 reitores e diretores das maiores Universidades Católicas do país. Na ocasião, a presidência do CERIS apresentou o formato do “Novo CERIS”, elaborado pela Prof.ª Dr.ª Silvia Fernandes, e fez, oficialmente, um convite para que as IES se associassem ao novo projeto. Houve boa acolhida para a proposta.

Outro tema foi sobre a Comissão Episcopal para a Amazônia.

Cardeal Dom Claudio Hummes (Arcebispo emérito de São Paulo e presidente da Comissão) descreveu algumas de suas visitas às Igrejas locais da Amazônia, citando encontros realizados nas Dioceses de Óbidos e Prelazia de Marajó. Em particular, descreveu os encontros feitos nas comunidades do interior do Pará e na Ilha de Marajó, em que pôde verificar o empenho profético da Igreja na defesa das crianças e adolescentes vítimas de abusos sexuais nas balsas, sobretudo pela ação de bispos como Dom José Luiz Azcona (Bispo de Marajó). Mencionou a fragilidade dos laços religiosos do povo da Amazônia, em que grande parte do povo opta pelas Igrejas evangélicas por falta de acompanhamento da Igreja Católica.

Apelou por um esforço maior em vista de uma Igreja de rosto amazônico, e a necessidade de haver maior audácia da Igreja do Brasil para apoiar as Dioceses na Amazônia, no fortalecimento de um clero autóctone, na solidariedade e acompanhamento dos povos indígenas. Falou dos desafios de se ter um clero indígena, capaz de ajudar os povos indígenas, e de ter fortalecidas suas raízes culturais e sua identidade. Recordou a devastação que vem sofrendo o território amazônico, colocando em risco seus recursos naturais, seus rios e o conjunto de sua diversidade biológica.

IHU On-Line - Que avaliação faz dos três primeiros anos do pontificado de Francisco?

Sérgio Coutinho - Um pontificado com mais surpresas agradáveis que desagradáveis. Ainda me incomoda uma certa demora na Reforma da Cúria, apesar de alguns passos quanto às questões econômicas e uma reorganização dos Dicastérios dedicados aos Leigos e à Família.

Penso ainda que o tema dos abusos de padres contra crianças e a criação de uma Comissão para atuar nestes casos ainda anda de forma muito lenta. Acho que precisaria dar sinais mais firmes neste ponto. Não basta parabenizar a vitória do filme Spotlight como se o problema estivesse encaminhado. Precisaria aqui de mais gestos proféticos.

Por outro lado, acho que, desde o início, Francisco vem procurando oferecer gestos e palavras de diálogo e de acolhida com todos. No campo político, tem agido com desenvoltura e maestria (vide a aproximação entre Cuba e EUA); no campo social, com sua Encíclica sobre a “Casa Comum” e os discursos aos movimentos populares enchem a todos de esperança, se tornando a voz mais crítica do capitalismo hoje; no campo ecumênico, muitos gestos de aproximação com os ortodoxos, metodistas-valdenses e luteranos, sem contar os encontros com lideranças muçulmanas e judias; e no campo propriamente eclesial, a beatificação de Dom Oscar Romero coloca fim há anos de perseguição à Teologia da Libertação em nosso continente.

Mas aqui, ainda neste último ponto, e isso também fica evidenciado na Exortação Amoris laetitia, o limite de seus gestos e palavras em relação à participação das mulheres na Igreja. No Sínodo um dos padres chegou a falar sobre a criação do ministério das “diaconisas”, mas isso não foi trabalhado no texto final. Penso que não basta ficar apenas dizendo que “Nossa Senhora é maior que os Apóstolos” e que a “Igreja é uma mãe”. Aqui precisaria de gestos bem mais ousados.

IHU On-Line - Como o pontificado de Francisco repercute na Igreja brasileira? Tem tido algum impacto especial, seja na Igreja de modo geral ou nas últimas assembleias dos bispos?

Sérgio Coutinho - Do ponto de vista formal, os últimos documentos e declarações da CNBB citam sistematicamente o Papa Francisco numa típica atitude de “comunhão com o papa”. No entanto, ainda vejo alguma inércia dos bispos da geração wojtyliana-ratzingeriana. A nova geração “franciscana” já começa a assumir alguns papéis de protagonismo.

Mas felizmente, como a Igreja não é só o clero, vejo entre o laicato e entre as ordens e congregações religiosas uma acolhida entusiasmada. De modo especial percebo muito entusiasmo entre aqueles que trabalham com a dimensão missionária. Em várias reuniões de missiólogos, o projeto eclesiológico de Francisco, de uma Igreja “em saída”, é amplamente debatido e levado em conta em seus planejamentos.

Nas Pastorais Sociais vejo o mesmo efeito. O lema “Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos” e a Laudato si’ são formidáveis incentivos para se continuar com o mergulho que a Igreja fez, desde fins dos anos 1960, no mundo dos pobres.

“Desde o início, Francisco vem procurando oferecer gestos e palavras de diálogo e de acolhida com todos

  

IHU On-Line - Como a Igreja brasileira tem se posicionado em relação à atual crise política? Você percebe alguma diferença no modo como a Igreja se posiciona hoje em relação a outros momentos de crise política do passado?

Sérgio Coutinho - Cabe bem o conceito de “hegemonia” elaborado pelo cientista político Antônio Gramsci.

Durante o Concílio Vaticano II e no imediatamente pós-concílio, no contexto de Medellín-Puebla e do Regime Militar, o grupo de “bispos nordestinos”, capitaneado por D. Helder Câmara, conseguiu unificar em torno do projeto eclesiológico de “Igreja dos pobres” um bloco mais amplo não homogêneo, marcado por contradições internas. O grupo “Igreja dos pobres” conseguiu ir além de seus interesses imediatos, para manter articuladas forças heterogêneas, numa ação essencialmente política, impedindo que irrompessem os contrastes existentes entre eles.

No entanto, nos anos 1990, esse bloco perdeu a hegemonia na CNBB. Outro bloco hegemônico assumiu direção da entidade com o projeto de “Nova Evangelização” e da “identidade católica”. A partir dos anos 2000, coincidindo com a primeira eleição de Lula e do PT, optou-se por uma espécie de “governo de coalisão”, isto é, uma presidência da CNBB bem mais ao “centro”, mantendo, pelo menos no discurso, “a opção preferencial pelos pobres”, mas preocupada com a perda de fiéis católicos e buscando garantir “direitos e privilégios” com o Estado brasileiro por meio do Acordo Brasil-Santa Sé.

Na conjuntura atual, após as últimas eleições presidenciais polarizadas e mesmo com um novo pontificado, parece que muitos bispos assumiram a posição “moralista” da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, típica posição no pré-golpe de 50 anos atrás.

No início desta 54ª Assembleia, foi apresentado um texto (“Pensando Brasil”), na forma de análise de conjuntura, por Dom Joaquim Mol (bispo-auxiliar de Belo Horizonte). O resultado foi um amplo debate onde se verificaram posições bem claras.

Dom Pedro Luiz Stringhini (Bispo de Mogi das Cruzes) gostou da apresentação de Dom Joaquim Mol e o mérito foi não ter sido imparcial, mas de ter tomado o lado, na conjuntura bipolarizada e conturbada do Brasil, dos pobres e da democracia, e criticando a postura parcial da mídia e segmentos que defendem interesses que não são do povo. Fez a sugestão de que a nota da CNBB seguisse esta linha apresentada.

Dom Roberto Francisco Ferreira Paz (Bispo de Campos-RJ) sugeriu fortalecer o projeto de reforma política necessário para superar o “Presidencialismo de Coalizão” e também a consolidação de uma democracia participativa, com mecanismos de controle social, e planejamento social.

Dom Enemésio Ângelo Lazzaris (Bispo de Balsas) viu no texto apresentado fidelidade à linguagem profética das Sagradas Escrituras, a doutrina Social da Igreja e aos discursos do Papa Francisco nos dois Encontros Mundiais com os Movimentos Sociais. E acrescentou: “Esse eterno medo do comunismo, da esquerda, da luta de classes é um campo aberto para o capitalismo”.

Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues (Arcebispo de Sorocaba), tomando uma posição diferente dos anteriores, disse que era preciso explicitar a contradição: um governo de esquerda valendo-se de empresas capitalistas para se perpetuar no poder e, no poder, “implantar uma revolução cultural privilegiando no ensino fundamental e médio elementos claramente contrários ao Evangelho”. Aqui faz-se ainda pulsar o trauma do PNDH 3.

No entanto, apesar das falas críticas, parece que a maioria dos bispos, parafraseando o ex-presidente Lula, se “acovardaram”.

No domingo, dia 10 de abril, após a benção final da missa, membros do movimento “Legislação e Vida” e do movimento “Missão Tarso” ergueram uma faixa com os dizeres: “Por uma Igreja livre do PT e dos comunistas”, durante a procissão final na saída dos bispos e cardeais da Basílica de Aparecida. Ainda na ocasião, foram entregues cópias da “Carta aberta aos Bispos”.

Neutralidade

Parece que o efeito foi imediato, pois o que se pode ler na “Declaração da CNBB sobre o momento nacional” é que diante do processo de impedimento da Presidente da República os bispos preferem não emitir qualquer juízo de valor, político ou jurídico, “pois tal procedimento cabe às instâncias competentes, respeitado o ordenamento jurídico do Estado democrático de direito”. Segundo a nota, o centro de todo o problema político são os “escândalos de corrupção sem precedentes na história do país” e também na forma fisiológica “como se realizam as campanhas eleitorais”.

Justamente quando muitas organizações da sociedade civil se colocam a favor da Democracia, pelo respeito às regras, criticando a forma como a imprensa e setores do Judiciário vêm conduzindo o tema em direção à queda do atual governo, e inclusive com muitas manifestações de bispos em suas dioceses, padres e religiosos nesta mesma linha, a CNBB, em conjunto, se posiciona por uma estranha “neutralidade”.

Como em 1964, quando a CNBB celebrou o golpe civil-militar que salvou o Brasil do Comunismo e muitos de seus membros pagaram com a própria vida, também na atual conjuntura, ela vai precisar se reconciliar com a história.

É decepcionante e um desrespeito à memória de muitos bispos e de agentes de pastoral que lutaram pelos direitos civis e políticos neste país, a posição da CNBB com esta Nota.

Por Patricia Fachin

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Amoris laetitia e a crise política brasileira repercutem na 54ª Assembleia da CNBB. Entrevista especial com Sérgio Coutinho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU