27 Março 2016
“É preciso reconhecer as dissensões que nos separaram ao longo dos séculos como igrejas e como pessoas crentes em Cristo. Só assim teremos condições de – superando divergências e idiossincrasias – proclamar com gestos e ações o evangelho que liberta”, ressalta o teólogo.
Foto: www.luteranos.com.br |
Além da passagem da importante data, também tem causado muitas expectativas o teor ecumênico da cerimônia, que será uma solenidade conjunta entre a Igreja Católica e a Federação Luterana Mundial. Conforme ressalta em entrevista por e-mail à IHU On-Line o teólogo Roberto Zwetsch, esse gesto “significa que duas igrejas históricas decidiram publicamente juntar-se para somar forças na busca por justiça, paz e reconciliação na caminhada cristã como caminho para a credibilidade de seu anúncio no mundo”.
Sobre o evento, o teólogo ainda chama a atenção para uma particularidade. Além de marcar uma relevante iniciativa das igrejas em buscar a conciliação e a misericórdia como meios para a vivência dos ensinamentos do evangelho, a cerimônia de outubro próximo torna-se ainda mais especial por reunir líderes que carregam histórias de vida significativas para a atmosfera de concórdia das celebrações.
“O Papa Francisco é argentino, um pastor que veio do ‘fim do mundo’ para coordenar o serviço da Igreja Católica ao mundo. O bispo Munib A. Younan, Presidente da Federação Luterana Mundial - FLM, da Igreja Luterana da Jordânia, é palestino e exilado de seu país. O Secretário Geral da FLM, pastor Martin Junge, é chileno e sentiu na pele as consequências da ditadura de Pinochet. Estas três autoridades vão se encontrar na periferia da Europa, na Escandinávia, para darem um sinal de que a Reforma não pode ser apenas um evento do passado, mas que o importante é torná-la mensagem viva de fé, de aposta na liberdade cristã, de serviço ao mundo em termos de misericórdia, compromisso com os mais pobres e vulneráveis deste mundo. Esta mensagem, convenhamos, é profundamente ecumênica”, analisa.
Roberto Zwetsch é mestre e doutor em Teologia e professor de Teologia Prática e Missiologia das Faculdades EST; também leciona no Programa de Pós-Graduação e no Programa de Formação do Conselho de Missão entre Indígenas da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB. Participa do Conselho Permanente do Fórum Mundial de Teologia e Libertação representando a Comunidade de Educação Teológica Ecumênica Latino-Americana e Caribenha – Cetela e Faculdades EST. Entre suas obras, destaca-se Missão como com-paixão. Por uma teologia da missão em perspectiva latino-americana (São Leopoldo: Sinodal; Quito: CLAI, 2008).
Confira a entrevista.
Foto: est.edu.br
IHU On-Line - O que representam os 500 anos da Reforma Protestante? Qual o significado de celebrar a data com um Jubileu Ecumênico?
Roberto Zwetsch – Celebrar a memória dos 500 anos da Reforma de 1517 é um desafio muito grande, pois facilmente se pode cair num triunfalismo exagerado e inepto. Se formos coerentes com a descoberta de Lutero e de outros reformadores antes dele e junto com ele – é bom tomar consciência de que a Reforma do século XVI não é fruto da força extraordinária de um indivíduo, mas resultado de um movimento de reforma da Igreja, isto é, de muito esforço por seguir o evangelho desde pelo menos a reviravolta que São Francisco causou na Igreja de Cristo no século XIII –, trata-se antes de um momento de profunda reflexão e mudança de rumos.
Lutero teve a dupla intuição de saber reler a mensagem do Novo Testamento e do significado da palavra evangelho com um olhar sensível e acurado para a realidade do povo de Deus em seu contexto. Imbuído da descoberta de que somos salvos por Deus – em Cristo – por graça que acolhemos na fé, teve a coragem de expor esta experiência ao mesmo tempo espiritual e teológica, defendendo publicamente o que pensava.
Esta coragem e abertura de espírito foi o que transformou Lutero num reformador da teologia e da igreja cristã. Ele sempre dizia que a Reforma se devia à força de Deus e não da sua força ou inteligência. Sentia-se até o fim da vida como um servidor do evangelho, mesmo que contraditório, impulsivo e até injusto, às vezes. E não há maior glória do que esta.
Celebrar 500 anos desta redescoberta num Jubileu Ecumênico pode ajudar-nos a reencontrar a fonte da liberdade cristã, da coragem para anunciar que este mundo mau não está perdido, mas é amado por Deus e que a misericórdia supera as forças da morte e da destruição.
IHU On-Line - Que relação é possível construir entre o Jubileu Ecumênico dos 500 anos da Reforma e o Ano Santo da Misericórdia?
Roberto Zwetsch – Brevemente, eu imagino que seria a renovada compreensão de que a liberdade cristã que encontramos e recebemos pela graça de Deus nos transforma num povo que aprende a viver da graça e do amor, isto é, no caminho da misericórdia, da compaixão, da solidariedade sem limites com todas as pessoas que sofrem, que são discriminadas, que não têm lugar e vez neste mundo. E este caminho é árduo, exige esforço, abertura de espírito, disposição para renunciar a muitas benesses para colocar o pé na estrada ao encontro do outro, seja quem for.
Institucionalmente, significa para mim que duas igrejas históricas decidiram publicamente juntar-se para somar forças na busca por justiça, paz e reconciliação na caminhada cristã como caminho para a credibilidade de seu anúncio no mundo. É preciso reconhecer as dissensões que nos separaram ao longo dos séculos como igrejas e como pessoas crentes em Cristo. Só assim teremos condições de – superando divergências e idiossincrasias – proclamar com gestos e ações o evangelho que liberta.
“É preciso reconhecer as dissenções que nos separaram ao longo dos séculos” |
IHU On-Line - Como analisa a Igreja Católica pós-Reforma? Quais as contribuições do protestantismo aos católicos?
Roberto Zwetsch - É uma pergunta abrangente e difícil de responder com brevidade. Diria então que a resposta católica com o Concílio de Trento foi importante, pois se percebe um esforço de considerar as afirmações da Reforma como dignas de apreciação. Mas a decepção vem com a concepção tridentina da contrarreforma que reforçou o poder centralizado da Igreja católica e desconsiderou alguns dos principais achados da Reforma de Lutero, como o lugar da Bíblia na vida de fé do povo de Deus e o sentido da comunidade como locus da experiência da fé e da autoridade cristãs.
Mesmo que as próprias igrejas da Reforma que acabaram por se separar da comunhão com a Igreja de Roma tenham mais tarde caído num período obscuro de dogmatismo e ortodoxia, algumas das contribuições relevantes que elas proporcionaram – não só aos católicos, mas a toda ecumene cristã – foram o resgate da leitura e interpretação atenta do texto bíblico, a relevância da autoridade do povo de Deus, uma concepção mais pastoral do ministério da igreja, a vida de culto como expressão da fé comunitária e não uma concessão do clero, por fim, quem sabe, a concepção de que a graça liberta para uma vida de amor, de doação e entrega para que o outro viva como pessoa digna diante de Deus e da sociedade.
IHU On-Line – Quinhentos anos depois, as diferenças entre católicos e protestantes estão superadas?
Roberto Zwetsch – Evidentemente, não. Basta uma visita às igrejas para que se constate isto. Mas auspicioso é que vivemos um tempo de diálogo, de busca de aproximação, de gestos concretos no rumo do acolhimento, da caminhada conjunta, no sentido de assumir este novo tempo como desafio e compromisso comuns. O longo esforço do debate teológico sobre as divergências teológicas fundamentais que resultaram na Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação, assinada em conjunto pela Federação Luterana Mundial e a Igreja Católica em outubro de 1999, na cidade de Augsburgo, Alemanha, foi um grande passo nesse sentido.
Outros gestos vêm sendo dados concretamente neste sentido positivo. O papa conservador João Paulo II, em 1989, visitou os países escandinavos e se encontrou em diversos momentos com os luteranos, como foi o caso do Encontro Ecumênico na Catedral Luterana de Uppsala, ou o encontro com universitários na Sala Magna da Universidade de Uppsala. Em sua visita ao Brasil, Bento XVI abriu espaço em sua agenda para um encontro com representantes das igrejas evangélicas, o que teve importante significado, por exemplo, para a caminhada do CONIC aqui no país e reafirmou a decisão das igrejas em realizar periodicamente a Campanha da Fraternidade Ecumênica, como neste ano novamente.
O Papa Francisco, no entanto, parece mais enfático ao dar sinais de abertura e de passos concretos para um diálogo efetivo. Desde o início de seu pontificado ele tem ido ao encontro de ministros protestantes. Em novembro de 2015 visitou a paróquia luterana de Roma, sendo recebido pelo pastor Jens-Martin Kruse, para quem esta visita do Papa significou um renovado impulso no caminho em direção à unidade da Igreja. Interessa lembrar aqui as palavras do Papa no encontro: “Esta também é a vocação e a missão ecumênica de católicos e luteranos e de todos os cristãos: um compromisso comum no serviço da caridade, sobretudo pelos menores e mais pobres, torna crível a nossa pertença a Cristo”.
“É hora de viver ressurreição” |
A questão que o ecumenismo coloca para nossas igrejas tem em vista a credibilidade do testemunho evangélico. E esta se decide na maneira como nos relacionamos – de forma amorosa e libertadora – com os mais pobres, com as pessoas discriminadas e invisibilizadas pelo sistema que domina o mundo hoje. Outro momento muito importante foi a visita de lideranças luteranas ao Vaticano em 2015 quando o Bispo Munib A. Younan, Presidente da Federação Luterana Mundial, e o Secretário-Geral da FLM, Pastor Martin Junge, junto com uma delegação, se encontraram com o Papa Francisco e lhe convidaram para participar em 31 de outubro próximo de uma celebração ecumênica conjunta, em Lund, na Suécia, como preparação para a grande celebração dos 500 anos da Reforma em 2017, na Alemanha.
O Papa aceitou o convite como mais um sinal de que a caminhada ecumênica é um desafio para renovar a fé no Cristo crucificado e ressuscitado. Dois documentos ultimamente servem de estímulo às comunidades locais para esta caminhada:
1) a publicação do documento “Do conflito à comunhão. Comemoração luterano-católica comum da Reforma”, que no Brasil acaba de ser publicado em conjunto pelas duas igrejas, numa tradução cuidadosa realizada pelo Dr. Érico Hammes, da PUCRS;
2) o livro da “Oração comum”, um guia litúrgico para ajudar as igrejas e comunidades locais a comemorarem juntas o aniversário da Reforma. Um registro especial merece a visita que a Arcebispa de Uppsala da Igreja Luterana da Suécia, Dra. Antje Jackelén, fez ao Papa Francisco em maio de 2015. Na oportunidade ela renovou a disposição da Igreja Luterana para o aprofundamento do diálogo ecumênico. Na audiência, Francisco recordou a importância dos 50 anos do Documento do Vaticano II sobre o Ecumenismo, e – surpreendentemente – a chamou de irmã, o que indiretamente pode significar um reconhecimento de que também as mulheres estão aptas para assumirem o ministério na igreja.
IHU On-Line – Como avalia a participação do Papa Francisco na abertura das celebrações dos 500 anos da Reforma? Como compreender esse momento de aproximação entre o Papa e a comunidade luterana? O que o ato diz a fiéis de ambas as igrejas?
Roberto Zwetsch – A confirmação de que Francisco irá a Lund, na Suécia, em outubro próximo para participar da Celebração ecumênica em preparação aos 500 anos da Reforma em 2017, é outro sinal claro de que o Papa acredita na caminhada da unidade de fé e testemunho. Evidentemente, não está no horizonte uma fusão de igrejas, o que seria algo impensável historicamente. O que está em jogo é a credibilidade da proclamação cristã que – devido à divisão entre as igrejas – se encontra diante de um impasse que só o tempo poderá nos ajudar a superar. O tempo e a ação profética, a meu ver.
Há uma circunstância inédita nesse evento de outubro. O Papa Francisco é argentino, um pastor que veio do “fim do mundo” para coordenar o serviço da Igreja Católica ao mundo. O bispo Munib A. Younan, Presidente da Federação Luterana Mundial - FLM, da Igreja Luterana da Jordânia, é palestino e exilado de seu país. O Secretário Geral da FLM, pastor Martin Junge, é chileno e sentiu na pele as consequências da ditadura de Pinochet. Estas três autoridades vão se encontrar na periferia da Europa, na Escandinávia, para darem um sinal de que a Reforma não pode ser apenas um evento do passado, mas que o importante é torná-la mensagem viva de fé, de aposta na liberdade cristã, de serviço ao mundo em termos de misericórdia, compromisso com os mais pobres e vulneráveis deste mundo. Esta mensagem, convenhamos, é profundamente ecumênica.
Mais ainda: é como se a renovação do cristianismo, mesmo apresentando-se na Europa, viesse da periferia do mundo, representada por pessoas que conhecem a dor, o sofrimento humano, a discriminação, a violência, a tortura e a morte. Parece que somente a partir dessa experiência se pode compreender – em profundidade – o sentido do evangelho da graça e da cruz de Cristo. A ressurreição só faz sentido quando se compreende que ela é o outro lado da cruz da ignomínia e do sacrifício humano imposto por todos os sistemas. É hora de viver ressurreição, portanto.
IHU On-Line - E que se pode dizer do livro sobre a “Oração comum”?
Curiosidade: Foi lançada uma versão em Playmobil de Martinho
Lutero. Na inscrição pode-se ler: “Os livros do Antigo Testamento.
O Novo Testamento traduzido pelo Dr. Martinho Lutero”.
Créditos da imagem: jornaltochadaverdade.blogspot.com.br
Roberto Zwetsch – Ainda não tive tempo para ler o livro, mesmo que sua versão em inglês e espanhol já esteja disponível na internet. Mas posso imaginar que este guia litúrgico será um importante instrumento para que nossas comunidades locais celebrem juntas este momento de memória da Reforma e de suas descobertas teológicas e práticas. Instrumento aqui até pode fazer-nos pensar na música, no canto, na dança. Situar a aproximação e a caminhada conjunta a partir da oração comum oferece a oportunidade rara de exercitar a fé e sua vivência não a partir de dogmas e afirmações teológica abstratas, ainda que dogmaticamente corretas e justas.
Assumir que – na oração – estamos juntos diante do Deus vivo e buscamos sua força e a renovação que vem do Espírito Santo, pode tornar-se uma experiência inédita de aprofundamento da fé e um estímulo para ações concretas que a realidade de hoje demanda com urgência de nossas igrejas. Parece-me assim um bom ponto de partida atual para retomar o que a Reforma trouxe de mais valioso e permanente: libertados pela graça, podemos servir ao mundo com amor genuíno e sem reservas. Sem esquecer, contudo, a advertência inteligente de Jesus: espertos como as serpentes e humildes como as pombas (Mateus 10.16).
IHU On-Line – O que a experiência da Suécia pode dizer ao diálogo inter-religioso entre as duas igrejas cristãs?
Roberto Zwetsch – Vamos esperar com grande expectativa os resultados desse evento. Tudo indica que ventos auspiciosos poderão soprar da Escandinávia. Lá se estará vivendo ainda em pleno outono, uma estação com suas belezas proporcionadas pela natureza que começa a se preparar para o inverno duro das terras do Norte. Aqui no Sul será tempo de primavera, com suas flores, cheiros e dias luminosos. O outono proporciona um tempo de reflexão e de concentração: qual o significado ainda atual da Reforma para a caminhada das igrejas e do mundo de hoje?
A primavera anuncia tempos de esperança e de festas junto com o povo de Deus. Francisco e as lideranças das igrejas luteranas – talvez – tenham a oportunidade rara de dar um testemunho vigoroso do que significa comunhão, respeito mútuo e compromisso com a verdade, a justiça e a paz num mundo cada dia mais injusto, conflagrado e perverso com os mais pobres e vulneráveis, isto é, a maioria dos habitantes deste planeta, que também dá seus sinais de dores de parto, como escreveu Paulo apóstolo (Romanos 8).
IHU On-Line – Como interpretar documentos como “Do conflito à comunhão” e a “Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação”?
Roberto Zwetsch – Primeiro, trata-se de tomar consciência de como é difícil reconhecer erros e injustiças mútuas. Somos por demais empedernidos como pessoas, como estudiosos, como igrejas. Só mesmo os novos ventos do Espírito conseguem nos fazer mudar de ideia e de perspectiva. Nesse sentido, o que aconteceu com o Concílio Vaticano II, apesar de todas as suas sombras, foi algo extraordinário, abrindo as portas, as janelas e o coração da Igreja católica num momento crítico da história mundial (1962-1965).
A aposta no ecumenismo do saudoso Papa João XXII, referendada pelo Papa Paulo VI, ganhou transcendência histórica que ainda hoje repercute nas relações entre as igrejas e as autoriza a dar continuidade aos estudos de aproximação teológica, pastoral e prática. A Declaração sobre a Justificação toca num dos motivos principais das divergências entre católicos e luteranos e encaminhou um consenso importante sobre a obra de Deus para salvar e libertar a humanidade do seu caminho errático.
O documento atual “Do conflito à comunhão” leva adiante aquele consenso, pavimenta o caminho do diálogo com afirmações teológicas consistentes e identifica aspectos teológicos que ainda deverão ser mais estudados daqui em diante, como, por exemplo, a questão do ministério das mulheres, a concepção da hierarquia magisterial na igreja cristã e outros temas correlatos. Importante seria que estes documentos não ficassem escondidos nas gavetas das paróquias e nos escritórios de pesquisa acadêmica.
Eles precisam ser estudados em pequenos grupos nas comunidades locais para que as pessoas os compreendam e assumam nos desafios que irão enfrentar na vivência concreta da fé. A partir desses estudos, as comunidades poderiam estabelecer seus próprios objetivos para uma caminhada conjunta. Nesse sentido, o livro da “Oração comum” poderá servir como elemento de ligação a desencadear ações conjuntas. Na caminhada ecumênica, o que fica na memória é a experiência vivida. Nisto precisamos apostar com ousadia.
“A ação como desafio e a misericórdia como princípio são as grandes lições do Papa Francisco” |
IHU On-Line – Quais os fundamentos teológicos acerca de Jesus Cristo que diferenciam as concepções de católicos e luteranos? Como compreender a coexistência de ambas as concepções?
Roberto Zwetsch – Não sei se a pergunta é esta quando se trata das diferenças. Pois me parece que, quanto mais nos aproximamos de Jesus de Nazaré, de seu ministério na Palestina e de sua mensagem de salvação, libertação e amor ao próximo, mais nos sentimos unidos e desafiados a segui-lo em conjunto. Pergunto-me se nossas diferenças não se encontram em outro lugar, na forma como nos apropriamos da mensagem de Jesus, na maneira como concebemos a herança da igreja primitiva, no entendimento do evangelho que procede da cruz e da ressurreição, loucura para gregos e escândalo para judeus, possivelmente até hoje.
Em minha formação teológica, fiz uma experiência que me marcou profundamente. Em 1974, ainda como estudante de teologia da EST, tive o privilégio de realizar um intercâmbio de estudos no ITER – Instituto de Teologia do Recife, na época em que Dom Helder Câmara era o arcebispo de Olinda e Recife e, portanto, seu reitor. Fui acolhido fraternalmente na casa do padre Reginaldo Veloso e seus irmãos, na periferia do Recife, no Córrego do Jenipapo. Por um ano vivenciei a espiritualidade católica em abertura ecumênica como nunca antes.
Li com avidez a teologia católica pós-Vaticano II e me surpreendia a cada passo das similitudes e convergências que ia encontrando. Jesus de Nazaré, do padre José Comblin, Jesus Cristo Libertador, de Leonardo Boff, a literatura que vinha sendo elaborada pelos grupos da teologia da enxada, sob a inspiração do padre Comblin, no interior de Pernambuco, o acompanhamento ao movimento Animação dos Cristãos do meio Rural - ACR, antiga Ação Católica Rural – sob a coordenação do padre José Servat. Ele me ofereceu um lugar de trabalho ao lado dos estudos, a descoberta do que seriam as, depois mundialmente conhecidas, Comunidades Eclesiais de Base - CEBs, nas vilas de Casa Amarela, grande bairro da capital pernambucana.
Também tive a oportunidade de assistir às aulas de Ivone Gebara e Maria Valéria Rezende, teólogas a nos inspirar para um novo tipo de cristianismo inclusivo e respeitador das diferenças, tudo isto mexeu profundamente comigo, com minhas convicções, com minha forma de perceber o mundo (conheci o Nordeste mais pelos poros do que pelas leituras ou pelos filmes do Cinema novo).
Agradeço profundamente por esta experiência que marcou minha vida, meu pensamento, minha forma de ser. Acredito que as diferenças teológicas – e elas existem – se encontram configuradas de outra forma, mais como pontos de vista diversos de pessoas que se sabem amadas e libertadas pelo mesmo evangelho. Esta humildade ajuda a trabalhar juntos, buscando permanentemente novas compreensões da teologia que atravessa os tempos e os lugares.
Nesse sentido, entendo que diferenças podem coexistir sempre, desde que preservemos na fé e por fé o que mais interessa, a vivência do amor que liberta e une. Paulo – justamente o teólogo da justificação – deixou isto bem claro na carta aos Romanos: “A ninguém fiqueis devendo cousa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros: pois quem ama ao próximo, tem cumprido a lei” (13.8).
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Roberto Zwetsch – Sim. Na parábola de Jesus sobre o samaritano na beira da estrada aprendemos, porém, que o próximo não é o que vem a nós, mas é justamente aquele ao encontro do qual nós nos dispomos a ir. Esta me parece a grande mensagem que o Papa Francisco vem transmitindo sistematicamente com sua atitude profundamente pastoral no exercício do mandato de referência maior da Igreja: para ele, a igreja se realiza no momento em que sai de si e vai ao encontro do outro, seja ele ou ela quem for, na medida em que se solidariza com o seu sofrimento e arrisca a sua dignidade e poder para libertar e tornar humanas as pessoas desprezadas e sem valor no mundo de hoje.
A ação como desafio e a misericórdia como princípio, estas me parecem ser as grandes lições que o Papa Francisco vem dando às igrejas e ao mundo de hoje, principalmente aos governantes cegos e surdos aos apelos de todas as pessoas que sofrem.
Por João Vitor dos Santos e Leslie Chaves
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Reconhecer as diferenças e conciliar pela fé em nome do evangelho vivo. Entrevista especial com Roberto Zwetsch - Instituto Humanitas Unisinos - IHU