04 Abril 2013
“Até agora, as discussões éticas da ciência genética têm sido restritas a pequenos círculos de “sábios” – através dos comitês de ética povoados, em geral, por cientistas e médicos. Entre os leigos, parece existir uma ideia de que a ciência não pode errar, que toda descoberta nova é um avanço para a humanidade e que, portanto, não é preciso debater grande coisa", constata a pesquisadora.
Confira a entrevista.
“A vida cotidiana é completamente tomada por artefatos da ciência moderna”. Diante desse contexto, como tratamos nossa identidade? “Quais são os limites moralmente aceitáveis da intervenção humana?”, pergunta Claudia Fonseca em entrevista concedida à IHU On-Line. Ao avaliar o desenvolvimento da genética – “o símbolo por excelência” da ciência –, ela pondera o desenvolvimento de benefícios para a sociedade, mas alerta para “consequências que extravasam o caso particular em pauta, tendo impactos muitas vezes imprevistos”.
Para ela, a “ciência, particularmente a ciência genética, age de maneira sutil para modificar nossa visão do mundo. Há pessoas que procuram a verdade de sua identidade no mapa de seus genes – se são mais característicos da Escandinávia ou do Mediterrâneo, se possuem mais indicadores da África ou da Europa”. Nessa discussão, assinala, as ciências jurídicas tentam “aplicar leis existentes a novas situações. Mas nem sempre existem leis adequadas”.
Claudia Lee Williams Fonseca é graduada em Letras e mestre em Estudos Orientais pela University of Kansas, e doutora em Sociologia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFGRS. Ela estará, na próxima terça-feira, 09-04-2012, na Unisinos, onde proferirá a conferência Imbricamentos de Direito e Genética. Imbróglios epistemológicos e éticos, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU, às 19h30min.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que maneira se estabelecem as relações entre direito os estudos genéticos?
Claudia Fonseca – Atualmente, a vida cotidiana é completamente tomada por artefatos da ciência moderna. A ciência genética é, para muitos, o símbolo por excelência dessa ciência. O que comemos, como tratamos nossas doenças, a nossa própria identidade (quem sou eu?, de onde venho?) são questões que, hoje, envolvem conhecimentos genéticos. No meio de tudo isso, nos confrontados com muitas dúvidas: Onde traçar a linha entre natureza e cultura? Quais são os limites moralmente aceitáveis da intervenção humana? É evidente que o direito, órgão democrático chamado, em muitos casos, ao avaliar esses limites, terá uma função importante no esclarecimento dessas dúvidas.
IHU On-Line – Que impactos socioculturais podem ser percebidos como estando ligados aos avanços tecnocientíficos relacionados à genética?
Claudia Fonseca – Em muitos casos, a ciência genética tem sido desenvolvida em claro benefício da sociedade. A medicina recorre à genética para entender melhor uma série de doenças, ajudando a evitar e até tratar essas moléstias graves. Graças à ciência genética, casais que sofrem de infertilidade involuntária podem aspirar a ter filhos. Usando a genética, cientistas contribuem para combater a poluição nos oceanos, criando bactérias capazes de decompor o petróleo. No domínio de direitos humanos, vimos como ativistas dessa área, na Argentina, usaram a genética para identificar os filhos de “desaparecidos” sequestrados durante a ditadura, contribuindo para um desfecho justo em termos da condenação dos malfeitores e a restituição de identidade dos filhos.
Entretanto, todas essas tecnologias genéticas carregam consequências que extravasam o caso particular em pauta, tendo impactos muitas vezes imprevistos. Por exemplo, durante os últimos anos, pesquisei a aplicação dos testes de DNA para determinar disputas de paternidade nos tribunais brasileiros. Em certas situações, a tecnologia ajudou a estabelecer um desfecho justo, permitindo que uma criança tivesse garantido seu direito a sustento e a uma identidade paterna. Mas também me dei conta de que a disponibilidade do teste estava atiçando dúvidas masculinas em grande escala, provocando uma mudança nas relações entre homens e mulheres no seio do casal. Em alguns casos, pais declarados estavam levando seus filhos para fazer testes sem que a mãe soubesse, pois não há restrições ao uso dessa tecnologia em laboratórios particulares. Comecei a me perguntar se não deveríamos estar refletindo mais sobre o uso e disponibilidade desse tipo de tecnologia (entre outros).
IHU On-Line – Qual o papel do direito nesse processo?
Claudia Fonseca – Em geral, o direito se contenta em aplicar leis existentes a novas situações. Mas nem sempre existem leis adequadas. Até pouco tempo atrás a invenção da vida era considerada ficção científica (basta pensar no caso de Dr. Frankenstein). O primeiro cientista a criar uma bactéria inteiramente nova em 1980 teve que enfrentar leis de patenteamento que, até então, só tinham tratado de objetos inanimados. A grande pergunta era: é possível ser “dono” de uma forma de vida? Pouco tempo depois, cientistas nos EUA estavam inventando mamíferos novos – um ratinho particularmente suscetível ao câncer, para facilitar pesquisas médicas. E dessa vez houve debates ainda mais acirrados. No contexto americano, aqueles que acreditavam que só Deus podia ser “dono” dos seres vivos tiveram que aceitar o julgamento de que é possível patentear qualquer coisa “feita pelo homem”. O direito, em particular o Direito Constitucional, ajuda a esclarecer a variedade de valores morais embutidos nesses debates.
IHU On-Line – Como os saberes do direito e dos estudos da genética dialogam?
Claudia Fonseca – É um diálogo profícuo e desafiador. As duas ciências têm coisas em comum, mas também têm diferenças importantes que nem sempre são levadas em consideração. A maioria dos cientistas vê a pesquisa como um processo nunca terminado, onde as “verdades” estão constantemente sendo reformuladas em função de novas evidências. O que faz a ciência avançar é certo “ceticismo organizado” – um questionamento constante mesmo das ideias mais consagradas. Os profissionais do direito estão numa situação inteiramente diferente. Têm que fazer decisões fechadas. Para tanto, querem certezas absolutas e procuram essas certezas na própria ciência. Em algumas situações, cria-se uma situação curiosa em que o próprio cientista pode ser chamado e desfazer a certeza da perícia jurídica.
IHU On-Line – Que influência tais saberes implicam no âmbito sociopolítico das pessoas?
Claudia Fonseca – A ciência, particularmente a ciência genética, age de maneira sutil para modificar nossa visão do mundo. Há pessoas que procuram a verdade de sua identidade no mapa de seus genes – se são mais característicos da Escandinávia ou do Mediterrâneo, se possuem mais indicadores da África ou da Europa. Pela mesma lógica, as pessoas também procuram a “verdade” da relação familiar (por exemplo, pai/filho) no laboratório genético. Nesse processo, é possível que a “verdade genética” passe a ofuscar a extrema importância de fatores sociais. Para cada um de nós, existe toda uma experiência de vida – uma história de relações pessoais – que, sem dúvida, desempenha um papel fundamental na questão de quem somos. Essa experiência também afeta a expressão de certos elementos genéticos. É preocupante qualquer tendência ao reducionismo genético, que declara a “verdade real” puramente com base em fatores genéticos.
IHU On-Line – Quais discussões éticas permeiam o tema?
Claudia Fonseca – Muitas. Levantei há pouco questões sobre patenteamento, sobre testes de paternidade. Existem também questões sobre os limites da pesquisa em termos de clonagem e o uso de tecidos humanos. Há ainda sérias questões sobre os limites da coleta, o controle e a divulgação da informação genética usada para identificar indivíduos. O trabalho da equipe de Taysa Schiocchet, professora do curso de Direito, da Unisinos, tem levantado uma série de dúvidas sobre a implementação, por exemplo, de um banco de perfis genéticos para persecução criminal. O problema é que o perfil genético não é uma mera impressão digital. Tem o potencial de revelar muito mais do que a identidade singular de um indivíduo. Esse “excepcionalismo genético” envolve elementos éticos que não penetram facilmente nos debates parlamentares.
Agora, as discussões éticas da ciência genética têm sido restritas a pequenos círculos de “sábios” – através dos comitês de ética povoados, em geral, por cientistas e médicos. Entre os leigos, parece existir uma ideia de que a ciência não pode errar, que toda descoberta nova é um avanço para a humanidade e que, portanto, não é preciso debater grande coisa. Quando surgem debates, por exemplo, sobre pesquisa com células tronco, ele descamba facilmente para brigas calcadas na aceitação ou rejeição de algum dogma religioso. Essas polêmicas não avançam o entendimento das diversas ramificações das ciências genéticas.
IHU On-Line – Como avançar no sentido de, ao mesmo tempo, proteger e promover a vida?
Claudia Fonseca – Ninguém tem resposta certa a essa pergunta. A resposta só pode emergir de um amplo e constante debate que envolve, entre outros, os cidadãos leigos. As pessoas devem se dar conta de que a ciência afeta profundamente suas vidas – e nem sempre da maneira que elas imaginavam. Essa consciência deve suscitar interesse no andamento da ciência e a possibilidade de um maior envolvimento nos próprios debates, levando-os para a legislatura. Assim, quem sabe, teremos políticas até mais vigorosas para o financiamento e promoção da ciência. Mas também teremos mais reflexão sobre as questões éticas da ciência e uma maior participação nas decisões quanto ao rumo que essa ciência deve tomar para proteger e promover a vida.
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Genética: a nova fonte da verdade? Entrevista especial com Claudia Fonseca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU