03 Abril 2013
“O agronegócio tem um interesse em buscar terras em Moçambique para expandir seus negócios, porque as terras no país são públicas, e os ruralistas podem consegui-las sob um regime de concessão”, assinala a coordenadora do Núcleo Brasil Sustentável da Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional – Fase.
Confira a entrevista.
Programa agrícola de investimentos entre Brasil, Japão e Moçambique para desenvolver a agricultura numa área de aproximadamente 14,5 milhões de hectares no país africano, o ProSavana está gerando polêmica. Segundo Fátima Mello, o programa é contraditório e ameaça a produção agrícola de 5,5 milhões de camponeses que vivem no Corredor de Nacala. “O ProSavana deriva do Prodecer, um programa que foi desenvolvido no Cerrado brasileiro, em Mato Grosso, realizado pela cooperação japonesa com o Brasil nos anos 1980 e que produziu as características que conhecemos no Cerrado: gigantescos monocultivos de soja em larga escala voltados para a exportação, intenso uso de agrotóxicos, expulsão de populações tradicionais, concentração da propriedade da terra, contaminação do solo e criação de um poderio econômico do latifúndio e do agronegócio”, informa em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone.
Fátima Mello visitou as comunidades camponesas que vivem no Corredor de Nacala e relata que elas precisam de incentivo para expandir a produção agrícola, mas estão apreensivas com a lógica do programa. “Nós também estamos preocupados porque ouvimos que haverá áreas onde será feita agricultura de larga escala, como acontece no Cerrado, e outras áreas em que se tentará fazer a convivência entre o sistema que existe hoje, de base familiar, e o grande negócio”, afirma. E dispara: “No Brasil, as experiências mostram que essa convivência é impossível, seja porque os camponeses são expulsos e o processo de concentração diária é uma regra, seja porque o pequeno proprietário é engolido pelo grande”.
Fátima Mello é secretária executiva da Rede Brasileira pela Integração dos Povos – Rebrip e coordenadora do Núcleo Brasil Sustentável da Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional – Fase. É graduada em História, pela PUC-Rio, onde também recebeu o título de mestre em Relações Internacionais.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que é o ProSavana, como e quem contexto surgiu esse programa?
Fátima Mello – O ProSavana é um programa de cooperação e investimentos entre três governos: Brasil, Japão e Moçambique. É um programa agrícola que abrange três províncias no norte de Moçambique, numa área estimada em 14,5 milhões de hectares, onde vivem aproximadamente 5,5 milhões de camponeses que produzem, a partir de um sistema de base familiar, alimentos. O ProSavana deriva do Prodecer, um programa que foi desenvolvido no Cerrado brasileiro, em Mato Grosso, realizado pela cooperação japonesa com o Brasil nos anos 1980 e que produziu as características que conhecemos no Cerrado: gigantescos monocultivos de soja em larga escala voltados para a exportação, intenso uso de agrotóxicos, expulsão de populações tradicionais, concentração da propriedade da terra, contaminação do solo e criação de um poderio econômico do latifúndio e do agronegócio, que se traduziu em poder político e elegeu posteriormente o governador do Mato Grosso.
IHU On-Line – Como Brasil, Japão e Moçambique participam do programa? Qual é o interesse de cada país no projeto?
Fátima Mello – Existem interesses múltiplos e contraditórios. O Japão, por exemplo, que não tem terras para cultivar, precisa fazer grandes investimentos em outros países para estabilizar o preço internacional da soja, que para eles é fundamental. Do lado moçambicano, Moçambique passa por um processo de tentativa de atração de investimentos para alavancar a renda e a sua produção interna, só que o governo moçambicano está atraindo investimentos sem critérios. Eu estive lá e vi uma forte presença de corporações brasileiras, chinesas e de outros países, e uma área grande de monocultivo de eucalipto de países europeus. Além disso, o governo também está tentando atrair projetos das mineradoras, tanto que a Vale tem uma presença enorme no país.
Do lado brasileiro, existem interesses contraditórios. De um lado, há o interesse do agronegócio, que fez o que fez com o Cerrado, e alimenta esse modelo de largo monocultivo para exportação. O agronegócio tem um interesse em buscar terras em Moçambique para expandir seus negócios, porque as terras no país são públicas, e os ruralistas podem consegui-las sob um regime de concessão, e avaliam que isso pode maximizar os lucros deles. Há avaliações de que de lá eles possam criar uma plataforma de exportação mais fácil para a China, por exemplo. De outro lado, existem setores da sociedade brasileira que têm o interesse de construir, com os camponeses moçambicanos, um esquema de cooperação genuíno de troca de experiências que visem a soberania alimentar de Moçambique. Então, existe hoje não só entre os movimentos sociais brasileiros como também em alguns setores do governo tentativas de levar para Moçambique propostas de trocas de experiências de agricultura no campo da agroecologia, da produção de alimentos com base familiar camponesa e sustentável, experiências de intercambio de sementes nativas etc.
O ProSavana está num ponto em que os interesses do agronegócio saíram na frente e nesse momento estamos alavancando a resistência e as proposições vindas dos movimentos sociais dos três países para tentar zerar a lógica desse programa.
IHU On-Line – Pode nos explicar o que é o Corredor de Nacala e quem são os camponeses que vivem nessa região?
Fátima Mello – O Corredor de Nacala abrange três províncias no norte de Moçambique e tem características físicas e ambientais parecidas com a do Cerrado; por isso o interesse do agronegócio na região. Percorremos o corredor e as províncias são povoadas ininterruptamente por camponeses, e um dos argumentos que temos de combater é o de que o corredor de Nacala é despovoado. Por isso nos preocupa muito a possibilidade de um “reassentamento”, ou seja, a expulsão dos camponeses de suas terras.
Em todas as comunidades camponesas que visitamos, ouvimos a mesma coisa: eles precisam, sim, de apoio para a produção agrícola e esperam que o ProSavana possa apoiar a produção, mas estão muito preocupados que a lógica do programa seja outra. Nós também estamos preocupados porque ouvimos que haverá áreas onde será feita agricultura de larga escala, como acontece no Cerrado, e outras áreas em que se tentará fazer a convivência entre o sistema que existe hoje, de base familiar, e o grande negócio.
No Brasil, as experiências mostram que essa convivência é impossível, seja porque os camponeses são expulsos e o processo de concentração diária é uma regra, seja porque o pequeno proprietário é engolido pelo grande. Nós visitamos comunidades em que camponeses que não têm recurso nenhum disseram: “Os governos do Japão e do Brasil passaram aqui e disseram que darão empréstimos para comprarmos máquinas a fim de participarmos da agricultura comercial que está chegando”. Imagina como um camponês, que não tem recurso, irá se endividar para comprar máquinas do agronegócio. Nunca mais ele conseguirá se libertar daquelas dívidas.
IHU On-Line – No Brasil há uma discussão sobre as leis ambientais. Como essa questão é tratada em Moçambique?
Fátima Mello – A principal legislação para os camponeses é a lei de terras, que dá o direito de uso ao camponês, e a legislação sobre sementes. Há certa preocupação, pois agora existe uma tentativa de revisão dessa legislação, e pensamos que podem ser introduzidas sementes transgênicas.
No entanto, o que mais preocupa os camponeses é como ficará a lei de terras e o direito de uso frente à chegada dessas grandes empresas. Eles estão sentindo que existe uma tentativa de alterar a legislação, porque o ProSavana tem como primeiro componente a reforma institucional. Eles estão reformando o principal instituto de agricultura de Moçambique, o IIAM para receber o ProSavana e fazer esse investimento. Portanto, está em curso no país uma reforma da institucionalidade da legislação para acolher esse boom de investimento de expansão da fronteira agrícola.
IHU On-Line – Em que fase de desenvolvimento está o ProSavana?
Fátima Mello – Estão elaborando o plano diretor. A GVagro, que já foi dirigida por Roberto Rodrigues, foi contratada para fazer o estudo-base para o plano diretor. Este plano está mapeando as áreas e fazendo uma espécie de zoneamento para identificar as culturas, os sistemas produtivos, as áreas onde as grandes empresas poderão se localizar etc.
Assim como setores do governo brasileiro responsáveis pelo ProSavana escutaram as empresas, queremos que os movimentos sociais do campo brasileiro sejam consultados, escutados e que possam propor que o ProSavana altere completamente a sua lógica e que passe a vigorar a lógica da segurança e soberania alimentar da população de Moçambique através do apoio à produção familiar e camponesa.
IHU On-Line – Os movimentos sociais moçambicanos são organizados? Eles se manifestam em relação ao ProSavana?
Fátima Mello – Os camponeses são muito organizados. Existem muitas organizações, plataformas, fóruns de organizações camponesas nas províncias. Ninguém pense que chegará a Moçambique e encontrará um campesinato desarticulado. É muito importante que as organizações camponesas sejam consultadas, sejam incluídas e que os seus interesses sejam levados em conta.
Os movimentos sociais aqui no Brasil estão muito preocupados, vigilantes e monitorando o ProSavana. Eles farão pressão para que esse programa atenda às propostas e interesses do campesinato em Moçambique.
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ProSavana: interesses múltiplos e contraditórios. Entrevista especial com Fátima Mello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU