16 Dezembro 2011
Depois de dez anos sem frequentar a Rocinha, o escritor Julio Ludemir voltou a um dos cenários de suas histórias e pode observar um contexto diferente ao caminhar com tranquilidade e segurança pelas ruas da favela. O poder paralelo deixou de operar, mas os traficantes continuam sendo atores políticos minoritários. Apesar da pacificação, ressalta, as pessoas ainda têm medo e "este fantasma de que o tráfico pode voltar depois de 2016 permanece na cabeça de todo mundo".
Favorável à pacificação das favelas cariocas, Ludemir destaca que a Unidade de Polícia Pacificadora – UPP está mudando o conceito de que "a Rocinha não era um local de passagem. Não se passava ali como se passa pela praia, como um local normal da cidade. (...) Acredito que essa é a maior vitória da UPP". Apesar de constatar a aprovação da sociedade e dos próprios moradores da favela em relação às UPPs, ele ressalta que a juventude da periferia ainda não aceita a presença policial na favela porque a polícia desrespeita os jovens. "A polícia incorporou plenamente aquele discurso "escroto’ da classe média: "Você sabe com quem está falando?’. Portanto, a polícia respeita o menino branco, bem vestido, porque tem medo da classe média e desta juventude desde o fim da ditadura militar. Por outro lado, dentro das comunidades populares, a polícia além de não respeitar os jovens, os despreza", esclarece em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.
Na avaliação do escritor, a presença do Estado nas favelas tem que transcender o aparato policial e, através de investimentos em cultura e educação, dialogar "com a juventude, oferecendo perspectiva de vida, para que os jovens também possam acreditar neste projeto das UPPs".
Julio Ludemir é jornalista e autor de Sorria, você está na Rocinha (São Paulo: Record).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – As favelas não são mais um bolsão de miséria? Como as favelas cariocas têm se transformado, especialmente a Rocinha?
Julio Ludemir – As favelas do Rio de Janeiro não são mais bolsões de miséria no sentido estrito da palavra, no sentido de barracão de zinco sem telhado. As favelas tradicionais do Rio de Janeiro ao longo dos últimos trinta, quarenta anos reivindicaram do Estado uma série de benefícios que tornam ridículas afirmações como a de dizer que as favelas são marcadas pela ausência do Estado.
No caso da Rocinha, eu cheguei a rir quando, no dia da operação policial que culminou com a ocupação da UPP, um jornalista de televisão falou da ausência do Estado, diante de uma escola pública. O Estado está presente na favela e na Rocinha têm mais de três escolas públicas, além de creches. Claro que essa presença se manifesta nas diferentes faces: uma delas é a corrupção policial. O Estado é tão corrupto no asfalto quanto na favela, mas, pelo menos desde que terminou a ditadura militar, a polícia não pode entrar nas nossas casas chutando a porta, como ela fazia cotidianamente na favela antes da implantação das Unidade de Polícia Pacificadora – UPPs.
A Rocinha é um dos maiores símbolos da emergência da classe C da era dos presidentes FHC e Lula. Eu morei na Rocinha em 2003, no início do governo Lula e, já naquela época, percebia que esta classe estava consumindo mais e tinha um desejo de consumir, de se inserir em tudo que diz respeito à sociedade.
IHU On-Line – Essa situação mudou depois da implantação das UPPs?
Julio Ludemir – A sociedade comprou a ideia generosa de UPP, mas a juventude da periferia não. Na verdade, o grande problema no que diz respeito à violência, à segurança pública, envolve estes dois atores: polícia e juventude da periferia, os quais precisam em algum momento se entender.
A polícia incorporou plenamente aquele discurso "escroto" da classe média: "Você sabe com quem está falando?". Portanto, a polícia respeita o menino branco, bem vestido, porque tem medo da classe média e desta juventude desde o fim da ditadura militar. Por outro lado, dentro das comunidades populares, a polícia além de não respeitar os jovens, os despreza.
Enquanto estes atores não se entenderem, a UPP não se consolida como um projeto generoso, não no sentido de oferecer algum grau de segurança para a sociedade, mas no sentido de promover mudanças sociais reais. É óbvio que é mais seguro frequentar as favelas ocupadas. Isso aconteceu comigo: depois de dez anos, pude ir à Rocinha com segurança, com tranquilidade, sabendo que, em último caso, poderia recorrer a essa entidade social chamada polícia.
Coordenei recentemente um projeto envolvendo o funk carioca, chamado a Batalha do Passinho, e andei no Salgueiro por volta das duas horas da madrugada. Estive em situações que seriam as mais perigosas do ponto de vista de uma sociedade pré-UPP, e me senti inteiramente à vontade, inteiramente protegido, como se estivesse em outro lugar qualquer da cidade.
IHU On-Line – Como foi essa experiência de retornar à Rocinha depois de tanto tempo?
Julio Ludemir – Foi uma experiência emocionante, me senti muito estranho; lembrei daquele conceito foucaultiano de Estado, que diz que você não precisa estar presente fisicamente para que as pessoas percebam a sua presença. No dia em que fui à Rocinha, não vi policial algum; no entanto, a comunidade já incorporou que existe UPP e que ela veio para ficar pelo menos até 2016. Não se vê policiamento nas ruas, mas também não se vê armamento ostensivo de bandidos, ainda que se saiba que o bandido continua na favela.
IHU On-Line – Depois da ocupação, o tráfico e as milícias deixaram de comandar a favela?
Julio Ludemir – Os bandidos mais visados saíram da favela, mas o tráfico continua lá. O que a UPP pretende não é acabar com o tráfico, mas terminar com o poder paralelo, com a percepção de que quem manda nas favelas são os bandidos. Hoje em dia, quando vou a uma favela pacificada coordenar algum projeto, não preciso me remeter a nenhum bandido. Dialogo com o policial, que é o poder dentro da favela, e com as lideranças comunitárias.
Ainda que a "boca" não tenha acabado, existe efetivamente um local pacificado. Talvez se tenha neste momento uma ideia de tráfico no Rio de Janeiro como a que se tem nos Estados Unidos e em São Paulo. O Rio de Janeiro era o único local do mundo em que a boca de fumo tinha endereço fixo. A ideia é que o tráfico seja uma coisa proibida e escondida da polícia. Isso é mais ou menos o que acontece agora. As bocas ainda funcionam na cidade e nas favelas, mas quem manda na favela não é mais o tráfico, o famoso poder paralelo, ainda que a relação das lideranças comunitárias com o Estado seja complicada. Porque, quando acaba o espetáculo, quando a mídia sai, o representante do bandido encosta ali; ele continua dialogando e sendo um ator político, embora minoritário e sem a expressão que tinha antes. Mas as pessoas ainda têm muito medo que aconteça o que aconteceu na década de 1990, quando ocorreu a Operação Rio, que promoveu intervenções na favela quase que tão expressivas quanto as atuais. Esse fantasma de que o tráfico pode voltar depois de 2016 permanece na cabeça de todo mundo.
IHU On-Line – Como vê a atuação das ONGs na favela e como elas se relacionam com o tráfico e as milícias?
Julio Ludemir – A favela é um espaço político como qualquer outro; é como o local onde você trabalha, por exemplo. Esta entrevista que estou concedendo é pactuada com alguém que controla este espaço em que você atua. A mesma coisa se dá em um espaço que é dominado pelas milícias ou um espaço que é dominado pelo tráfico de drogas. Se você disser que pode viver neste espaço, independentemente da existência da milícia e do tráfico de drogas, você está minimizando a força desses atores. É óbvio que é necessário dialogar, que é necessário negociar; é preciso fazer o jogo político do ator hegemônico daquele espaço. Você conhece o ator hegemônico dentro do seu espaço de trabalho; a mesma coisa se dá com as ONGs que atuam nas favelas.
No caso particular da Rocinha, existiu uma frente que se organizou em torno de um personagem notório, William Oliveira da Silva, que foi presidente da associação dos moradores da favela durante vários anos. Naquela ocasião, ele era assessor de uma das principais vereadoras da oposição do Rio de Janeiro. Portanto, pela manhã, ele atendia aos interesses das ONGs e do poder público, e à noite atendia aos interesses do tráfico de drogas. Nenhum desses atores consegue atuar naquele espaço sem negociar com o poder central. E o poder central, naquele momento e ainda em vários locais do Rio de Janeiro, é o tráfico de drogas e as milícias. As ONGs não são virgens, madres superiores; elas estão disputando um espaço político, verbas federais, estaduais e municipais, e para isso precisam de visibilidade. Esta visibilidade é conquistada também em um jogo político.
Incomoda-me esta leitura que alguns fazem de que as favelas cariocas não são um lugar político. É como se na favela morasse um bando de miseráveis que não têm a menor capacidade de articulação e não têm seus próprios interesses. Dentro deste espaço, as pessoas se relacionam com o tráfico de drogas, com as milícias e, neste momento, com a UPP.
IHU On-Line – Quais são as maiores dificuldades que os trabalhadores e moradores da Rocinha enfrentam com o tráfico e com as milícias?
Julio Ludemir – Como disse, o tráfico não é mais o poder paralelo. O tipo de dificuldade que se terá com a consolidação da UPPS passa pelo elemento tráfico de drogas. Vamos ver se o Estado vai continuar na favela além da sua face militar, e se as pessoas poderão ter uma vida cidadã.
O Estado não pode se limitar a ter uma presença militar: tem que investir em cultura, educação, saúde e precisa, fundamentalmente, criar um diálogo com a juventude, oferecendo perspectiva de vida, para que os jovens também possam acreditar neste projeto das UPPs. A sociedade, a mídia, a academia, as ONGs, os trabalhadores da favela, todos compraram a ideia de UPP, menos a juventude. Enquanto esta juventude não comprar essa ideia, não se pode considerar o projeto vitorioso definitivamente.
IHU On-Line – A mídia divulgou recentemente que o Rio de Janeiro tinha em torno de mil favelas, mas agora o número oficial é 600. Como o senhor interpreta esses dados?
Julio Ludemir – As pessoas tendem a incensar os números em torno dos quais elas vivem. Por exemplo, a sensação que tenho é de que a epidemia do crack é menor do que aquilo que as pessoas que querem decretar guerra ao crack estão dizendo. O perigo do terrorismo islâmico era menor e não estava no Iraque como Bush, que queria a guerra, dizia. Eu lembro que certa vez o Betinho foi para as ruas contar os menores moradores de rua e chegou a conclusão de que eram 800, num momento em que se cogitava a possibilidade de se ter 23 milhões de menores abandonados no Brasil. No início do filme Pixote, ele cita tais dados. Então, as pessoas que vivem em torno dessas indústrias aumentam ou diminuem os números para apressar as soluções.
IHU On-Line – Como foi a experiência de morar na Rocinha e o fato de ter deixado a favela?
Julio Ludemir – Tive a mesma sensação de todas as pessoas que vivem lá. Sou um escritor e não tenho um padrão de vida que me dê certeza que nunca vou precisar morar na favela. Morar ali foi como morar em Olinda, Pernambuco. Eu me sentia um nordestino a mais. Nasci em Pernambucano e tinha a impressão de estar no V8, o lugar onde eu jogava futebol. A principal identidade da Rocinha é que ela é uma comunidade nordestina, ela não é como a Mangueira que é uma comunidade consolidada desde o fim da abolição com a presença do negro, com uma cultura supersólida. A Rocinha tem uma particularidade nesse sentido.
Fiquei emocionado e muito feliz quando pude voltar lá, andar pelos lugares para ver o que tinha mudado. A UPP está mudando o conceito que as pessoas tinham de que a Rocinha não era um local de passagem. Não se passava ali como se passa pela praia, como um local normal da cidade. O Santa Marta neste momento é um ponto de encontro da cidade, um ponto da noite. Acredito que esta é a maior vitória da UPP.
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A UPP não convence a juventude da periferia. Entrevista especial com Julio Ludemir - Instituto Humanitas Unisinos - IHU