13 Dezembro 2011
Apesar de o artigo 6 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT garantir o direito à consulta prévia aos povos indígenas sempre que alguma medida legislativa ou administrativa afetá-los, o acordo não está sendo cumprido pelo governo federal brasileiro. "O erro" que interpreta o direito de consulta como um direito de veto consiste, segundo a advogada Biviany Rojas Garzon, "precisamente em interpretações limitadas da lei, que com o argumento de que uma minoria não poderia vetar as decisões mais importantes do Estado são negados espaços reais de participação obrigando aos índios a discutir fatos consumados".
Em sua avaliação, o governo apenas ouve os indígenas e ribeirinhos "na hora de definir o Plano Básico Ambiental – PBA", em vez de consultá-los durante o planejamento do projeto. "É um grave erro achar que o licenciamento de empreendimentos é um lugar adequado para fazer consulta sobre decisões que não são suscetíveis de mudança. Fazer isso é um ato de má fé". Referindo-se a Belo Monte, reitera: "Nesses últimos casos, o governo vai consultar o que, se tudo já está decidido? É um ato de má fé chamar uma consulta sem o intuito de consultar, somente reiterar uma decisão já adotada e em fase de execução".
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Biviany Rojas Garzon enfatiza que "depois de mais de 20 anos de redemocratização no Brasil, os direitos de uns valem mais que os de outros, o setor energético continua blindado sem participação nenhuma da sociedade civil, os processos de licenciamento ambiental são formais e irrelevantes e as decisões políticas anulam a atuação do poder Judiciário deixando povos indígenas e ribeirinhos indefensos diante do autoritarismo como o atual governo brasileiro pretende executar seus planos de obras na Amazônia".
Biviany Rojas Garzon é advogada e cientista política, mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília – UnB e assessora do Programa de Política e Direito do Instituto Socioambiental.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual foi sua reação ao saber que a desembargadora do Tribunal Regional Federal – TRF, Maria do Carmo, votou contra a realização da Consulta Prévia dos povos indígenas no caso de Belo Monte?
Biviany Rojas Garzon – Infelizmente, a desembargadora Maria do Carmo teve pouquíssimo tempo para compreender o objeto da ação. Ela foi convocada para participar do julgamento na última hora, no lugar do desembargador titular João Batista Moreira, que passou mal poucos minutos antes de seu início. A falta de conhecimento da desembargadora em relação à matéria ficou comprovada durante a leitura de seu voto, superficial e incoerente que tomou apenas 15 minutos.
A verdade é que Maria do Carmo proferiu tal voto sem sequer ter lido a legislação específica aplicável ao tema, o que é, no mínimo, temerário. A falta de compreensão acerca do projeto de engenharia da usina e do objetivo do parágrafo 3º, artigo 231 da Constituição, e da própria Convenção 169 levou a desembargadora a proferir um voto imprudente, num caso de grande significância para o futuro não só dos povos indígenas do país, mas também da democracia brasileira.
Maria do Carmo considerou suficiente verificar no mapa que nem a barragem nem os reservatórios projetados estão localizados no interior de terra indígena. Dessa forma, concluiu que a consulta às comunidades afetadas não seria necessária porque, segundo sua interpretação, nesse caso, a autorização para o Congresso Nacional seria dispensável. O que simplesmente comprova sua falta de entendimento tanto do projeto como do dispositivo constitucional que obriga ao congresso autorizar o aproveitamento de recursos hídricos de terras indígenas para a geração de energia. No caso de Belo Monte, o rio Xingu é desviado do interior das ierras indígenas Paquiçamba e Arara da Volta Grande, o que é mais que suficiente para a aplicação do dispositivo constitucional.
IHU On-Line – A desembargadora declarou que "pouco importa quando os índios serão ouvidos, se antes ou depois da autorização do Congresso". Qual a importância deles serem ouvidos antes de se iniciarem as obras?
Biviany Rojas Garzon – Provavelmente, foi a falta de conhecimento sobre direitos indígenas que levou a desembargadora Maria do Carmo a desconsiderar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, já incorporada à legislação brasileira. A simples leitura dessa norma poderia ter evitado que a desembargadora cometesse graves impropriedades jurídicas, tais como afirmar que a consulta tem um valor meramente informativo e que ela pode ser realizada posteriormente à decisão legislativa que afeta diretamente povos indígenas.
O artigo 6° da Convenção 169 afirma explicitamente que o Estado tem a obrigação de "consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente".
O texto do artigo diz ainda que "as consultas realizadas deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas".
A consulta deve existir a partir das próprias decisões de planejamento que envolvem terras indígenas ou regiões no entorno delas. É um grave erro achar que o licenciamento de empreendimentos é um lugar adequado para fazer consulta sobre decisões que não são suscetíveis de mudança. Fazer isso é um ato de má fé. O governo, que somente fala com os índios na hora de definir o Plano Básico Ambiental – PBA, não está consultando nada; somente está negociando mitigações e compensações de decisões sobre as quais os povos indígenas não tiveram nenhum poder de incidência e que vão mudar seus territórios, recursos e futuro coletivo para sempre.
O direito de consulta dos povos indígenas não significa vetar, mas sim implica um poder incontestável de influência por parte dos povos indígenas nas decisões aministrativas e legislativas que os afetam diretamente. Os acordos entre o governo e os povos indígenas são vinculantes e devem ser respeitados pelas partes. Isso faz parte de um princípio universal denominado pacta sunt servanda; ninguém deveria questionar o fato de que o produto de um acordo é obrigatório, nem insistir em interpretar isso como poder de veto para fazer aparecer a reclamação dos povos indígenas como radicalismo político e incompetência de negociação. Essa interpretação que justifica a negação do direito de consulta por considerar ele impraticável é tendenciosa.
As decisões submetidas à consulta tem que estar abertas a modificações. Não podem ser apresentadas decisões imutáveis ou fatos consumados aos processos de consulta. Nesses últimos casos, o que o governo vai consultar, visto que tudo já está decidido? É um ato de má fé chamar uma consulta sem o intuito de realmente consultar, negociar e modificar a decisão, objeto da consulta. Fazer o contrário é o que a desembargadora Maria do Carmo propõe sobre Belo Monte: consultar um fato consumado!
No licenciamento ambiental, o poder de influência dos povos indígenas está limitado às decisões sobre mitigação e compensação de danos. Eles têm o direito a ser consultados sobre a própria decisão de construir ou não os empreendimentos, não unicamente a aceitar as medidas de mitigação. Por isso a importância da consulta no momento da autorização do Congresso Nacional quando o projeto ainda está na fase de planejamento, assim como a evidente necessidade de consultar as decisões que fazem parte do processo de planejamento energético quando se avaliam bacias hidrográficas com presença de povos indígenas. É claro que uma consulta bem conduzida na fase do planejamento pode evitar que o Estado insista em empreendimentos com altos custos socioambientais, ao mesmo tempo que pode minimizar conflitos e prever alternativas para geração de energia em tempo hábil para viabilizar sua implementação. Grande parte dos conflitos a respeito tem sua explicação na forma em que o planejamento energético do país exclui instâncias participativas e deliberativas com a sociedade civil. É irônico afirmar isso, mas o principal problema do setor energético no Brasil é a ausência absoluta de democracia tanto no planejamento como na execução, e não só com relação aos povos indígenas, as também em relação à sociedade brasileira como um todo.
IHU On-Line – A senhora esteve em Altamira recentemente. Qual a situação das comunidades que moram na cidade? De que maneira as obras da hidrelétrica estão modificando a região?
Biviany Rojas Garzon – O caos é total. Nada funciona em Altamira. A cidade está enlouquecida. Se a empresa e o governo tivessem cumprido suas responsabilidades com relação às "ações antecipatórias", que deviam preparar a região para receber o empreendimento, tudo poderia ser muito diferente. Entre as condicionantes da Licença Prévia está incluída a obrigação de preparar a região com obras de saneamento básico, infraestrutura, saúde, educação, segurança pública etc. Nada disso foi feito. Devia acontecer antes das obras começarem. Por que não aconteceu? Por que essa pressa toda, se sabemos que a precariedade da presença do Estado região é incapaz de suportar um aumento de mais de 100 mil pessoas em 5 anos? A crise é tão evidente e foi tantas vezes advertida que a própria prefeitura de Altamira (historicamente a favor da implantação do empreendimento) solicitou parar as obras até o cumprimento dos acordos e compromissos das "ações antecipatórias" para mitigar os impactos sobre a população da cidade e, mesmo assim, a licença de instalação foi emitida pelo Ibama. Por quê? Muitas perguntas sem resposta.
Ninguém se explica para que foram incorporadas 40 condicionantes socioambientais na Licença Prévia. Independentemente de seu atendimento, o Ibama liberou as obras através da emissão de um licença de instalação "parcial", que nem existe na legislação brasileira, e posteriormente emitiu uma licença de instalação integral apesar de comprovar que as condicionantes da Licença Prévia não tinham sido atendidas. Ninguém que acompanha o processo entendeu nada. Os pereceres técnicos do Ibama e da Funai advertiram na época que as condições para instalar a obra não eram adequadas, não obstante as presidências dos respectivos órgãos autorizam sua instalação reiterando grande parte das condicionantes da Licença Prévia na Licença de Instalação. Infelizmente, Belo Monte é muito pior que a obra em si; ela é o símbolo do fim das instituições ambientais no Brasil. O licenciamento ambiental e seus instrumentos de controle foram jogados no lixo na pressa de construir a hidrelétrica a qualquer custo.
IHU On-Line – Como e quais comunidades indígenas serão afetadas pela construção de Belo Monte?
Biviany Rojas Garzon – As terras indígenas consideradas diretamente afetadas pela Funai são: Paquiçamba; Arara da Volta Grande do Xingu (Maia); Juruna do km 17; Trincheira Bacajá, Kararaô, Arawaté do Igarapé Ipixuna, Koatinemo, Cachoeira Seca, Arara e Apiterewa. Não obstante, todos os povos indígenas da bacia do Xingu e as comunidades ribeirinhas e extrativistas que moram na região terão que suportar as pressões derivadas do adensamento populacional sem estrutura adequada na região. É necessário lembrar que essa é a mesma região que ainda sofre os impactos da transamazônica e para a qual a Funai ainda não conseguiu executar as condicionantes básicas e anteriores à instalação do empreendimento, como a desintrusão das terras indígenas Cachoeira Seca e Apiterewa. Não tem sido garantido aos povos locais sequer a posse da suas terras em um contexto de acirramento dos conflitos agrários pelo aumento populacional.
IHU On-Line – Quais são os principais equívocos em torno da decisão de construir Belo Monte?
Biviany Rojas Garzon – O autoritarismo da decisão, sem consultar os indígenas diretamente afetados, sem realizar audiências públicas decentes e participativas, sem dar resposta aos estudos independentes que questionavam o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental, sem se manifestar à sociedade civil, que resiste aos barramentos dos rios na Amazônia e gostaria de ver a avaliação concreta de alternativas para atender à demanda de energia do país. Belo Monte é uma obra feita na força do poder e à margem da democracia.
IHU On-Line – Em que sentido Belo Monte demonstra, como a senhora diz, "as fragilidades do Estado de Direito" brasileiro?
Biviany Rojas Garzon – No sentido em que todas as instituições democráticas construídas depois da ditadura foram questionadas em sua integridade para insistir na construção da usina. Belo Monte quer ser construído pelo governo Dilma, apesar da 12a Ação Civil Pública do Ministério Público Federal; apesar de medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; apesar de pareceres técnicos do Ibama e da Funai contrários ao empreendimento; apesar de não ter empreendedores privados para tocar o empreendimento e garantir o financiamento público com o BNDES sem avaliação de risco; apesar de não produzir toda a energia prometida; e apesar dos direitos de mais de 300 mil pessoas que moram na região e que, hoje, são vitimas do caos de uma obra mal planejada e autoritária. Depois de mais de 20 anos de redemocratização no Brasil, os direitos de uns valem mais do que os de outros; o setor energético continua blindado sem participação nenhuma da sociedade civil; os processos de licenciamento ambiental são formais e irrelevantes e as decisões políticas anulam a atuação do poder Judiciário. Belo Monte é o grande monstro para a democracia brasileira. O rio Xingu, as populações ribeirinhas e os indígenas fazem parte de um patrimônio de sociobiodiversidade que a Constituição Federal de 1988 reconheceu e valorou, mas que o governo desdenha como um obstáculo ao "desenvolvimento do país".
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''Belo Monte é o símbolo do fim das instituições ambientais no Brasil''. Entrevista especial com Biviany Rojas Garzon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU